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MUNDO

Brasil e Itália: dois paralelos e um alerta

Henrique Canary
Agência Brasil

Ocorre hoje no parlamento italiano a primeira sessão da nova legislatura após a vitória da extrema-direita, encabeçada por Georgia Meloni. A coligação formada pelos Irmãos* da Itália da pós-fascista Meloni, pela Liga** de Matteo Salvini e pela Força Itália do magnata Silvio Berlusconi já chegou a um acordo sobre o novo governo e não deve encontrar qualquer dificuldade em nomear os presidentes da Câmara de Deputados e do Senado.

Georgia Meloni, admiradora de Benito Mussolini e herdeira do movimento fascista que sobreviveu na Itália após o final da Segunda Guerra Mundial, foi eleita no dia 25 de setembro último com 26% dos votos, o que, somado aos 8,8% da Liga e aos 8,1% da Força Itália, garantiu a ela uma vitória folgada sobre a direita tradicional. A coligação liderada por Meloni terá 237 cadeiras na Câmara de Deputados (de um total de 400) e 115 cadeiras no Senado (de um total de 200).

Geogia Meloni é mais uma figura eleita na esteira do ascenso mundial da extrema-direita. Seu lema, “Deus, a pátria e a família”, arregimentou sobretudo uma população cansada dos sucessivos escândalos de corrupção e aterrorizada com a campanha de ódio promovida contra os imigrantes e a comunidade LGBTQIA+.

Mas o que mais chamou a atenção na Itália foi o alto índice de abstenção, recorde histórico no país. Segundo dados do Ministério do Interior, a participação nas últimas eleições foi de 63,79% de uma total de 51 milhões de eleitores. Para se ter uma ideia, a participação nas eleições anteriores havia sido de 73%, ou seja, uma queda de quase 10% na participação popular.

É interessante lembrar também que, diferente da Alemanha, que passou por um processo de desnazificação após o final da Segunda Guerra Mundial, a Itália nunca acertou de fato suas contas com o passado. Movimentos considerados herdeiros diretos do fascismo começaram a surgir no país já em 1946, apenas dois anos depois da morte de Mussolini.

Essas duas realidades (alta abstenção nas eleições e permanência do passado) devem nos alertar sobre a situação brasileira. A abstenção no primeiro turno das eleições no Brasil foi de 20,95%, o que se aproxima da média histórica, mas ainda é considerada muito alta e esteve concentrada sobretudo no eleitorado de Lula. Se esse índice se repetir no segundo turno, quando muitas pessoas desistem de votar porque seus candidatos preferenciais não estão mais na disputa, isso pode prejudicar ainda mais o resultado do petista.

Além disso, o problema da relação com o passado também invoca um interessante paralelo entre o Brasil e a Itália, onde existe o que alguns especialistas chamam de “fascismo endêmico”. No Brasil, assim como na Itália, nunca houve um verdadeiro acerto de contas com o passado ditatorial. Enquanto outros países latinoamericanos conderam seus ditadores à prisão, o Brasil permitiu que as forças ligadas à ditadura militar se reciclassem sem maiores consequências e continuassem no jogo político. A Lei da Anistia, pensada para proteger aqueles que lutaram contra a ditadura, acabou beneficiando também os próprios agentes do regime. Isso, aliado ao fato de que a defesa da ditadura militar nunca foi criminalizada no Brasil, criou um clima propício para que a serpente do fascismo colocasse e chocasse seus ovos. E o resultado estamos vendo neste momento.

Assim, por um lado, o ativismo brasileiro tem diante de si uma dura luta não apenas pelo voto, mas para que as pessoas, principalmente a população mais pobre das periferias, vá votar no dia das eleições. Por outro lado, o Brasil como um todo permanece diante do desafio de condenar de vez o seu próprio passado e romper definitivamente com o golpe de 1964, o que só pode ser feito por meio da criminalização da defesa da ditadura militar.

* Tradução para Fratelli d’Italia, partido político italiano de extrema-direita.
** Tradução para Lega Nord, partido político italiano de extrema-direita.