“Beberam meu sangue e não me deixam viver
Tem o meu destino pronto
não me deixam escolher;
Vêm falar de liberdade pra depois me prender
Pedem identidade pra depois me bater
Tiram todas minhas armas,
como posso me defender?
Vocês venceram está batalha,
Quanto à guerra, vamos ver.”
(Legião Urbana)
Jorge Luiz Souto Maior
Valdete Souto Severo
Seis fundações foram extintas em votação na madrugada desta terça-feira, no estado do RS.
Nunca o parlamento gaúcho, seguindo o exemplo de seu similar nacional, trabalhou tanto contra o povo.
Enquanto em frente à Assembleia os servidores, que perderão seus empregos em 180 dias, reivindicavam, tal como lhes autoriza a Constituição de 1988, os deputados seguiram a votação.
Às 5h30min da manhã de hoje, com 30 votos a favor e 23 contrários, aprovaram a extinção da Fundação de Ciência e Tecnologia (Cientec), da Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan), da Fundação Zoobotânica (FZB), da Fundação de Economia e Estatística (FEE), da Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura) e da Fundação para o Desenvolvimento de Recursos Humanos (FDRH).
Na rua, a declaração de guerra ganhava a sua forma mais evidenciada da violência. Não era o mero caos: era o massacre. O batalhão de choque da polícia militar, usando a cavalaria, armados com artilharia pesada e bombas de gás lacrimogênio, investiram contra os manifestantes, que tratados por esta expressão até deixam de ser o que de fato e de direito – e mesmo biologicamente – são: pessoas que possuem sentimentos e direitos; cidadãos!
Na mídia “oficial” a notícia é de que os “manifestantes” jogaram rojões em direção à polícia militar, para transformá-los em transgressores, enquanto os que verdadeiros transgressores estavam no parlamento.
Duas “manifestantes” foram presas e no parlamento…
Quantos foram os “manifestantes” espancados? É uma conta difícil de ser feita, pois o espaçamento se faz também de forma simbólica, por meio da violência da supressão de direitos feita nos escombros dos conchavos políticos.
Vídeos e fotos espalhados pelas redes sociais revelam o avanço da polícia em direção aos manifestantes. A truculência, a arrogância e o completo desequilíbrio de forças foram justificados pelo secretário estadual de Segurança Pública, Cezar Schirmer, que informou seu integral apoio à ação fascista dos policiais. Em suas palavras: “Foi feito com o meu consentimento e com o meu apoio. Por uma razão óbvia: o parlamento, o poder legislativo, é um dos pilares da democracia. Qualquer atentado ao parlamento é um atentado à democracia”.
Eis um conceito peculiar de democracia. A Assembleia Legislativa, a casa do povo, foi fechada ao povo e o secretário considera que foi democrático o que se realizou no parlamento sem participação popular, assim como a utilização de força policial para impedir o povo de adentrar em sua casa.
A votação, que solapa o direito ao trabalho, à informação, à pesquisa, à cultura e à educação, contrária ao que clama a população gaúcha, foi feita de madrugada, a portas fechadas, a exemplo do que tem ocorrido no Congresso Nacional. A necessária, devida e mais que compreensível reação das pessoas que serão concretamente atingidas pelo que a mídia oficial denomina “medidas de austeridade” do governo Sartori foi repelida à bala.
De que democracia se está falando, portanto?
O que estamos vivendo, já há alguns anos no Brasil, e que se potencializa neste triste final de 2016, é a atuação do Estado, por todos os seus tentáculos, para retirar garantias sociais e oprimir as forças sociais de resistência, em nome do capital.
Das medidas provisórias que retiram direitos trabalhistas às decisões constrangedoras do STF ou às votações a portas fechadas, assistimos a um agir coordenado e empenhado em promover o retrocesso social.
Enquanto isso, os trabalhadores, destituídos de qualquer espécie de garantia contra a despedida, pulverizados e divididos por meio do processo de terceirização, estão sendo literalmente sufocados, o que pode ser visto, de forma mais representativa, como uma espécie de genocídio. No máximo, conseguem alguma força para tentar preservar direitos; não conseguem mais lutar pela melhoria de suas condições sociais. E quando se organizam, são brutalmente atacados.
Não se trata de caso isolado. As greves e manifestações sociais têm sido repelidas como se fossem movimentos criminosos. É difícil compreender em nome do que é possível aceitar que manifestantes sejam agredidos, durante um ato de resistência legítimo, protegido como direito fundamental em nossa Constituição.
A estranha harmonia na lógica de atuação dos agentes de Estado precisa ser urgentemente confrontada com a ordem constitucional; enfrentada pela palavra e pelo ato.
Por isso é importante não calar diante do que está ocorrendo. E não se intimidar perante a truculência de uma lógica fascista que tenta dominar as instituições. Se não insistirmos em lutar por nossos direitos agora, indo para as ruas, promovendo manifestações tão pacíficas quanto possível diante da agressão institucionalizada a que somos sujeitos, a irracionalidade destrutiva do capital triunfará sobre o que ainda resta de humano, impondo a fazendo crer serem naturais a miséria, o medo, o silêncio e até mesmo a barbárie.
A consolidação do pacote de maldades do governo Sartori implicará a imediata perda do emprego para mais de 1200 pessoas. Interromperá pesquisas científicas, retirará do ar a TV e a rádio públicas, acabará com o jardim botânico do Estado.
Portanto, ao contrário do que falaciosamente afirma o secretário de segurança pública, ainda estamos muito longe de vivenciar a prática democrática e assustadoramente próximos das experiências políticas negativas que marcaram a nossa história recente.
O que estamos vivendo em 2016 é o aguçamento de uma lógica de exceção que não mais disfarça. Ao contrário, exibe-se de modo ostensivo, ignorando a ordem constitucional em nome de objetivos econômicos autofágicos.
Exemplo disso é o ressurgimento da ideia de alteração do artigo 7º da Constituição. A PEC 300/2016, apresentada ontem, 20 de dezembro, pretende: retorno à jornada de dez horas; prevalência do negociado sobre o legislado e redução drástica do prazo prescricional. Efetivamente, não vemos, mesmo no contexto político atual, como ser aprovada uma aberração como esta. Mas só a existência da proposta já representa uma forma grave de violência à classe trabalhadora e ao Estado de Direito, pois, se aprovada fosse significaria um retorno aos séculos XVIII e XIX, reeditando parâmetros, quanto ao tempo de trabalho e ao acesso à justiça, que simplesmente jogam fora toda a já tão parca evolução social conquistada nas últimas décadas.
O que se tem, portanto, é uma autêntica declaração de guerra contra a classe trabalhadora. Uma guerra disfarçada sob o manto de uma também falsa democracia, pois não há Estado Democrático em uma realidade na qual as pessoas não podem se manifestar. Não há democracia quando o parlamento legisla por interesse econômico, à revelia da vontade declarada nas ruas.
É preciso compreender, de uma vez por todas, que os movimentos sociais constituem o alimento necessário da democracia, conforme garante expressamente a Constituição de 1988, cuja eficácia tem sido constantemente negada e agora, por fim, se pretende eliminar.
A polícia militar do RS, com as bênçãos do governador Sartori e do seu secretário de segurança, seguindo os “ensinamentos” de Beto Richa no Paraná e Geraldo Alckmin em São Paulo, promoveu terror entre os manifestantes ontem. Atacou cidadãos que “ousavam” defender uma realidade diversa da que vivemos. Trata-se de uma ação de índole antidemocrática, para dizer o mínimo, que decorre do reconhecimento de que o Estado não consegue, em face dos limites da própria forma capital, cumprir os preceitos mais rudimentares de uma “vida boa”.
A reação social é, então, inevitável e mesmo necessária, para que se evite a usurpação do poder. O maior recado desses movimentos é o de que “a democracia tem que ser reinventada”, para que seja minimamente experimentada, como forma, inclusive, de possibilitar críticas sérias e consistentes ao modelo de sociedade capitalista.
O fato incontestável é que a ordem jurídica do Estado Social deve estar do lado daqueles que não estão dispostos a suportar calado as truculências autoritárias que visam impor retrocessos, ainda mais diante de uma realidade na qual pouco se concretizou das promessas constitucionais. A população tem que conviver com transporte público deficiente, educação e saúde públicas destroçadas e relações de trabalho precarizadas, com baixos salários, assédio moral institucionalizado pela lógica das metas etc.
A agressão institucionalizada promovida contra a classe trabalhadora talvez seja uma demonstração de que o Estado intui as próprias impossibilidades de fazer valer os direitos sociais e, por isso, reage com a força, sobretudo nos momentos em que a luta pela efetivação de direitos se concretiza. O que se explicita com isso é que, preservando-se a lógica do capital, não há como efetivar as garantias sociais, senão para uma parcela cada vez menor da humanidade, restando claro que este não é um sistema feito para todos.
A lição que o dia de ontem nos deixa, sobretudo pela forma como os fatos foram deturpados pela mídia e pelos burocratas do Estado, é a dificuldade insuperável de se integrarem a um mesmo discurso as expressões democracia e capitalismo, pois a defesa dos interesses do capital não encontra limites, mesmo que estejam fixados na Constituição.
Os usurpadores do poder, ao demonstrarem que a democracia e a ordem constitucional não lhes impõem limites, nos ensinam que a efetivação da justiça social e dos valores fundamentais da condição humana requer a superação da forma capital. Toda essa onda de retrocessos deve servir, portanto, ao necessário despertar dessa consciência, cuja construção é favorecida pela ação dos próprios opressores, e que se qualifica como condição de possibilidade para mudanças radicais.
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