No dia 05 de maio, os vereadores da cidade de Porto Alegre Fernanda Barth (PSC), Comandante Nádia (PP), Psicóloga Tanise Sabino (PTB) e os vereadores Alexandre Bobadra (PL), Ramiro Rosário (PSDB), Jessé Sangalli (Cidadania) e Hamilton Sossmeier (PTB) levaram ao plenário e aprovaram por 20 votos favoráveis e 11 contrários o projeto de lei 077/21 que veta “o uso e o ensino de linguagem neutra” nas escolas do município. A base de apoio do prefeito Sebastião Melo se dedicou mais uma vez a implementar aquilo que eles chamam de agenda da “moral e dos bons costumes”.
Nada de novo no horizonte: esse projeto faz parte do arcabouço discursivo do bolsonarismo onde a chamada – e inexistente – “ideologia de gênero” são soberanas e servem de espantalho para aprovar qualquer barbaridade que dificulte a vida da população LGBTQIA+ e a garantia de seus direitos. Infelizmente, esse PL não é uma cortina de fumaça: esses projetos de cunho “ideológico” que há, pelo menos, quatro anos vemos se desenvolver desde o governo federal são prioridades dos governos de extrema-direita e estão alinhados com as políticas de privatizações e terceirizações. Quando a vereadora Fernanda Barth afirma que “é estranho aprovar um projeto que garante o óbvio” e que “professor em sala de aula deve falar o português correto”, a insinuação é a de que os professores nas escolas do município não estão falando nem ensinando o uso padrão da língua portuguesa e a substituíram pela “linguagem neutra”. Nessa lógica, essas seriam, evidentemente, as causas do mau desempenho dos alunos nas escolas. Logo, o problema da educação pública não são as suas condições estruturais e a desvalorização dos professores que, ano após ano, enfrentam a dura realidade da perda salarial e constantemente têm o seu plano de carreira ameaçado. Ou ainda o fato de que os nossos alunos estejam tendo que deixar a escola para ajudar no sustento da família e sofrem, na pele, com o aumento do preço dos alimentos e a retirada massiva de direitos que ocorre no Brasil desde o golpe de 2016. A culpa, de acordo com essa lógica bolsonarista, só poderia estar no currículo ou na figura do educador que não fala o “português correto”, mas ensina “linguagem neutra”.
Em primeiro lugar, a primeira falácia dos partidários do projeto está em associar o ensino de língua portuguesa com o ensino da gramática prescritiva. Discutir sobre as transformações que as línguas sofrem ao longo do espaço e do tempo, bem como a sua variação, é um dos alicerces do ensino de Língua Portuguesa em todo o Brasil e está garantida em todos os documentos oficiais. Os seis períodos garantidos de ensino de língua materna não estão a serviço apenas do ensino uso de crase e da ortografia. Aprender a ler e interpretar é um exercício mais complexo que apenas decodificar sílabas e conhecer o nome das classes gramaticais.
É um debate sobre garantir a representação simbólica de muitas formas de existir que foram sistematicamente ignoradas.
Em segundo, a “proibição” do uso da “linguagem neutra” expressa pouco ou nenhum conhecimento do que é a linguagem neutra. O uso de estruturas de neutralização próprias do sistema linguístico brasileiro para que a língua possa refletir e incluir a existência de outros sujeitos vai muito além de trocar o morfema “a” ou “o” pelo “e”, como no caso de amigues: é um debate sobre garantir a representação simbólica de muitas formas de existir que foram sistematicamente ignoradas. As línguas humanas são objetos vivos e em constante mudança. Muitas das suas transformações, inclusive, são fruto de reivindicações e de demandas sociais. E, se o debate sobre o gênero neutro nas línguas nas quais o sistema linguístico não permitia.
O verdadeiro objetivo da proposta é impedir o debate sobre qualquer matéria relacionada a gênero e sexualidade. Esse projeto é mais um dos velhos projetos engavetados que já passaram pelo mesmo plenário, como a Escola Sem Partido que tinha como objetivo restringir não só o direito democrático de posicionamento político de professores como também de cercear toda tentativa de debate sobre a realidade social dentro da sala de aula. A única intenção do projeto é apagar a existência simbólica das pessoas LGBTQIA+ e contribuir para que a violência cometida contra essa população se intensifique. Negar o direito aos alunos da rede básica de compreenderem como as desigualdades de gênero se expressam na língua é inviabilizar a possibilidade de existência dessas pessoas para além da realidade linguística e, mais ainda, de compreender e respeitar a diversidade inerente a todas as sociedades humanas. Não se pode esquecer que a expectativa de vida de uma pessoal travesti ou transsexual no Brasil é de 35 anos quando a média é de 75,5, segundo aponta o IBGE em 2017 e que, só em 2021, foram 316 mortes notificadas por homofobia, segundo um estudo do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+. Ao invés de garantir políticas públicas para transformar esse cenário de extrema violência, o plenário da Câmara aprovou uma proposta que vai na contramão do simples direito de existir. Esse projeto, além de tudo, é mais uma das falhas tentativas de evitar o inevitável: que a língua siga o seu curso inerente de transformações ao longo do espaço do tempo.
Em qualquer época e tempo histórico, os conservadores e a extrema-direita se ocuparam de legislar sobre a matéria da língua. Em busca de um ideal de língua pura, estéril, abstrato, sem falantes e cujas regras seriam um par de normas que se reproduz ao longo do tempo sem nenhuma variação tentam impedir, através da legislação, que a língua siga o seu movimento histórico. Para a infelicidade dos reacionários a língua é um fenômeno vivo, concreto, com falantes que a transformam com o uso ao longo do espaço e do tempo e cuja única verdade é a sua variação. E, muitas dessas variações, são reclamações históricas de povos pelo simples direito de existirem também na linguagem. E, quer queiram ou não, a língua não precede a realidade concreta e, graças a essa contraditória lei, cabe nela o uso da linguagem neutra e todos os desusos dos termos que oprimem.
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