No próximo domingo, 10/04, será realizado o primeiro turno das eleições francesas. Ao todo são 12 candidatos: na extrema-direita temos Marine Le Pen (Rassemblement National), Éric Zammour (Reconquête) e Nicolas Dupont-Aignan (Debout La France); no campo entre a direita e centro-direita temos Emmanuel Macron (La République en Marche), Valérie Pécresse (Les Républicains) e Jean Lassalle (Résistons); no campo da centro-esquerda temos Anne Hidalgo (Parti Socialiste) e Yannick Jadot (Les Verts); no campo entre a esquerda reformista e a esquerda radical temos Jean-Luc Mélenchon (La France Insoumise), Fabien Roussel (Parti Communiste Français), Nathalie Artaud (Lutte Ouvriére) e Philippe Poutou (Nouveau Parti Anticapitaliste).
Do ponto de vista internacional, as eleições são realizadas no marco da guerra na Ucrânia com a nova recomposição política da Europa, principalmente em relação à Rússia e aos EUA. A pandemia é outro processo que afetou fortemente o país com mais de 140 mil mortos e com uma alta de casos nas últimas semanas (média de 136 mil casos semanais em 4 de abril). Do ponto de vista interno, a França passa por uma inflação histórica com alta de 4,5% nos preços aos consumidores em março (maior índice dos últimos 25 anos). E nos últimos anos, ainda que Macron tenha conseguido aprovar a maioria das suas propostas ultraliberais, houve um recorrente estado de mobilizações, com destaque para os Coletes Amarelos em 2018-2019 que deixaram suas marcas nessas eleições, principalmente na rejeição a política tradicional (1).
Para entender a dinâmica atual das eleições, é necessário começar por um balanço da presidência de Macron.
O neoliberalismo a serviço dos ultrarricos
Como afirmamos quando da eleição de Macron, as eleições de 2017 colocaram fim no bipartidarismo francês: após 5 anos desastrosos de François Hollande (Parti Socialiste), um-ex ministro de seu governo, apresentando-se como um “gestor” (e não um político), venceu as eleições com um partido criado as vésperas (2).
Os cinco anos de Macron foram marcados por uma política neoliberal. Logo no início, o presidente realizou uma reforma trabalhista autoritária que fez diversas mudanças no Código de Trabalho francês, principalmente retirando direitos trabalhistas. Uma dessas medidas é o Acordo de Performance Coletiva (APC): em troca de não demitir, as empresas podem reduzir o salário e a jornada de trabalho a partir de um novo acordo coletivo (que pode ser aprovado por referendo, não por assembleia). Em 2020, por exemplo, na Airbus em Toulouse, os trabalhadores tiveram 20% de redução salarial, perderam auxílio alimentação e de transporte e aqueles que ganhavam mais de 3848 perderam o direito a ter 13º salário. Esse é só um exemplo dos mais de 880 APC assinados em 2020 e que foram permitidos pela reforma trabalhista de Macron (3). No campo do emprego, apesar de ter diminuído a taxa de desemprego nos últimos anos, os empregos novos criados são muito mais precários, com menos direitos e com um poder de compra mais baixo.
Nos últimos dez anos, a França continuou seu processo de desindustrialização: a participação do setor industrial no PIB recuou de 20% para 10%. Como ressalta Martine Orange, “a exceção de Chipre, Malta e Luxemburgo, nenhum outro país da zona do euro apresenta uma taxa assim tão baixa” (4). Nesse período, mais de 1 milhão de empregos foram perdidos na indústria. Com o fechamento e o deslocamento de tantas indústrias, a economia francesa concentrou suas atividades no setor de serviços que passou, pela primeira vez na história, de 20 milhões de trabalhadores empregados.
O programa eleitoral anunciado por Macron é exatamente a continuação das contrarreformas neoliberais. Entre elas, uma reforma da previdência que pretende subir de 62 para 65 anos a aposentadoria dos trabalhadores franceses, acabar com programas especiais de aposentadoria, além de anunciar alterações no seguro-desemprego (valores menores quando o desemprego for baixo e maiores quando o desemprego for alto), entre outras medidas. A forma de governar para Macron é a partir da retirada dos direitos e da redução do papel do Estado.
Uma face importante dessa forma de governar é o uso de expedientes autoritários para impor sua política. A repressão aos coletes amarelos foi gigantesca, porém a violência policial contra as periferias e os imigrantes também. Em todo momento essa repressão foi justificada, ou ao menos, minimizada pelo Ministério do Interior ou pelo próprio Macron. Vale lembrar do caso de Alexandre Benalla, coordenador da segurança do presidente Macron, e que agrediu manifestantes em 2018, além de ter acesso a passaportes diplomáticos. Somente depois de muita pressão dos movimentos e da mídia, é que ele foi condenado em 2021 a 3 anos de prisão.
A chegada de Macron a presidência significou também uma grande transformação do sistema partidário francês. Ele deslocou a direita tradicional, representada pelos Les Républicans (LR) e também a esquerda tradicional representada pelo Parti Socialiste (PS). Durante todo o período presidencial, Macron flertou com o LR (maior partido da França), indicando ministros que eram quadros ou que saíram do partido. Nesse sentido, políticos importantes como o ex-presidente Nicolas Sarkozy (LR) não declararam apoio a candidata de seu partido e agem nas “sombras” costurando um apoio para Macron.
Mesmo com todos esses ataques, nas eleições desse ano, Macron é o favorito. Na última pesquisa pela Ipsos, Macron obteve 26,5% das intenções de voto no primeiro turno. Porém, sua tendência atual é de queda: entre o início de fevereiro e março, quando da crise entre Ucrânia e Rússia, Macron chegou a 33,5% (pesquisa Elabe de 7 e 8 de março). Essa tendência de queda joga alguma incerteza no resultado desse domingo. Ainda na direita, a candidata da LR, Válerie Pécresse deve terminar as eleições em 4º ou 5º lugar: ela que já disputou nas pesquisas o 2º lugar, agora pontuou na última pesquisa Ipsos 8,5%, atrás dos dois candidatos da extrema-direita.
O crescimento da extrema-direita
A destruição dos direitos na França, o empobrecimento dos franceses, a desindustrialização, a crise dos refugiados e a volta do nacionalismo econômico e político, principalmente desde 2008, são a dinâmica de fundo do crescimento da extrema-direita na França. Esse crescimento é sustentado, apesar da derrota de Trump, principal representante internacional dos nacionalismos de direita e neofascismos pelo mundo.
No final de 2021, o ex-apresentador de televisão Éric Zemmour despontou como o favorito para hegemonizar a extrema-direita francesa (5): em pesquisa feita pela Harris Interactive, entre 28 e 31 de dezembro, Zemmour e Le Pen apareciam empatados com 16% de intenção de votos. Um pouco antes, em outubro, Jean-Marie Le Pen, pai de Marine Le Pen, tinha declarado abertamente a possibilidade de fazer campanha para Zemmour caso ele tivesse melhor colocado nas pesquisas que ela (6). Porém, se tudo que é sólido se desmancha no ar, aquilo que é gasoso evapora mais rápido: as declarações e ações desastrosas de Zemmour, somado a falta de uma base política e social, fizeram que o candidato caísse rapidamente nas pesquisas. Ma última pesquisa Ipsos, Zemmour pontua apenas 9% das intenções de voto. Por mais que seja derrotado, conquistou um lugar no sistema político francês.
Já Le Pen conseguiu uma recuperação impressionante: se em algumas pesquisas ela tinha caído para terceira ou até a quarta posição (perdendo também para Valérie Pécresse), considerando a margem de erro, atualmente ela está numa dinâmica crescente e ameaça inclusive Macron no primeiro e no segundo turno. De acordo com a última pesquisa Ipsos, Le Pen alcançou 22,5%, crescendo no último mês, pelo mesmo Instituto, 6,5%. Se considerarmos os dados da mesma pesquisa temos um cenário ainda mais indefinido nesse primeiro turno: a extrema-direita, Zemmour e Le Pen, estão com 31,5% do votos; e 69% daqueles que vão votar em Zemmour, declararam ter como segunda escolha Le Pen – o que pode provocar uma pressão forte pelo voto útil nas eleições de domingo.
Por outro lado, é importante destacar o crescimento de Le Pen também nas intenções de voto no segundo turno. Em 2017, as eleições terminaram com 66% a 34% para Macron, o que representou uma vitória larga, ainda que um índice extremamente importante de votos para a extrema direita. As últimas pesquisas de intenção de voto aponta para um empate técnico no segundo turno: a Harris Interactive apontou 51,5% a 48,5% para Macron, enquanto a Elabe registrou 51% a 49% – ambas realizadas entre 7 e 8 de abril. Pela primeira vez na história da França, a extrema-direita neofascista pode entrar no segundo turno com chances reais de ganhar a presidência.
Mélenchon o melhor colocado à esquerda
No campo que vai da centro-esquerda até a extrema-esquerda, o cenário é muito mais pulverizado. O principal candidato aqui é Jean-Luc Mélenchon com a frente L’Union Populaire. O programa de Mélenchon é um importante conjunto de reformas como a saída da OTAN, recuperação orçamentária dos países em relação a União Europeia, aposentadoria aos 60 anos, imposto progressivo, aumento dos salários e limite para os salários mais altos, entre outras medidas. Esse programa representa um conjunto de medidas reformistas progressivas, porém, não é uma proposta de ruptura com o sistema. Como explica a deputada Danièle Obono, a estratégia é uma “transformação social, democrática e ecológica” que passa pela “tomada do poder democrático e majoritário, nos quadros das instituições burguesas parlamentares contemporâneas” (7).
A dinâmica de Mélenchon é a melhor entre todos os candidatos. Se compararmos a pesquisa da Ifop de março e abril, Mélenchon saiu de 10,5% para 17,5% na última pesquisa realizada entre 4 e 7 de abril – na Ipsos, aparece também com o mesmo índice. Nessa última pesquisa, vale pontuar que Mélenchon também pode se beneficiar do voto útil: principalmente do deslocamento de voto de Jadot (35% dos seus eleitores escolheram Mélenchon como segundo candidato) e de Roussel (o mesmo percentual). Apesar da distância entre Le Pen e Mélenchon ser grande, 5%, não podemos descartar uma aproximação na hora que as urnas abrirem.
Ainda mantendo-se nesse campo entre centro-esquerda e extrema-esquerda, o segundo candidato melhor colocado é Yannick Jadot pela Europe Écologie Les Verts. Jadot aproveita-se do ascenso do movimento ecologista dos últimos anos, da crise do Parti Socialiste, da importante conquista eleitoral dos Verdes nas municipais de 2020 (cerca de 12% dos votos a nível nacional). Os Verts fizeram uma escolha estratégica de tentar se consolidar como partido político nacional para disputar melhor nos próximos anos. No ano passado, nas pesquisas, Jadot ameaçou a posição de Mélenchon, apresentando 9% de intenção de votos. Porém, com a campanha nas ruas, as intenções de voto foram caindo e Jadot aparece com 5% nas últimas pesquisas. Deve consolidar-se como a segunda candidatura nesse campo político – 6º no geral.
O desastre do mandato presidencial de François Hollande, somado a manobra de Macron, retiraram definitivamente o Parti Socialiste da disputa nacional. Anne Hidalgo, prefeita de Paris desde 2014, tentou relançar o partido após o fracasso de Benoît Hamon em 2017 (6,36% no primeiro turno). Porém, a tendência atual é justamente que ela tenha uma votação mais baixa: se no início do ano ela já apareceu com 4%, aproximando-se de Jadot, na última pesquisa Ipsos ela teve apenas 2% das intenções de voto. Apesar dessa queda nacional, é importante lembrar que o PS é ainda o maior parte em número de eleitos na esquerda se considerarmos municípios, departamentos e câmaras nacionais.
Outro candidato à esquerda é Fabien Roussel pelo PCF. A decisão do PCF de ter um candidato tem a ver com o espaço que perdeu na L’Union Populaire fortemente hegemonizada por Mélenchon (que foi apoiado pelo PCF em 2012 e 2017). Roussel nunca conseguiu passar dos 4,5% de intenção de voto e com a proximidade das eleições, a pressão do voto útil fez essas intenções diminuírem: na última pesquisa Ipsos, Roussel aparece com 3%. Por mais baixo que essa intenção possa ser, ela demonstra uma determinada continuidade histórica do PCF.
Na extrema-esquerda temos duas candidaturas que se repetem desde 2012: Poutou (NPA) e Artaud (LO). Ambas apresentam um programa de ruptura anticapitalista e de transformação radical. Porém, o espaço de ambos está bastante reduzido: Poutou pontuou 1% na última pesquisa Ipsos (o máximo que chegou foi 2%) e Artaud tem 0,5% (máximo de 1% em pesquisas anteriores).
Um cenário provável, mas ainda incerto
O cenário mais provável do segundo turno está entre o candidato neoliberal Macron e a neofascista Le Pen. Isso representa uma consolidação do sistema político francês entre a extrema-direita neofascista e a direita neoliberal. Infelizmente, esse deve ser o resultado das urnas desse domingo.
Apesar disso, existe três elementos importantes nesse jogo eleitoral que pode mexer com esse cenário: a taxa de participação eleitoral, os eleitores indecisos e também aqueles que não estão 100% seguros de seus votos. De acordo com a última pesquisa Ipsos, a taxa de participação eleitoral deve ser em torno de 72%, ainda que 80% se interesse pela campanha eleitoral (6% menor do que as eleições de 2017). Existe 3% de eleitores que afirmaram que vão votar, porém que ainda não escolheram candidatos e que podem ser decisivos para alterar as posições dos candidatos. Ainda existe 23% dos eleitores que responderam a pesquisa e afirmaram terem decidido seus votos, porém não estão seguros desses votos. Esses eleitores podem migrar entre Zemmour e Le Pen, ou entre Pécresse e Macron, ou entre Jadot, Roussel, Hidalgo e Mélenchon. Nesse sentido, ainda que as pesquisas retratem bem o momento, ainda há uma margem para surpresas. Acredito que dois cenários podem se desenhar. Ainda que pouco provável, são tendências que podemos perceber a partir das pesquisas.
A primeira surpresa e que tem alguma probabilidade de acontecer é Le Pen chegar em primeira nas eleições de domingo. A tendência de crescimento sustentado nas últimas 6 semanas, a pressão pelo voto útil, a diminuição das intenções de voto nos candidatos da direita e da extrema-direita, podem fazer com que as posições se invertam entre ela e Macron. Não é o mais provável, mas não está fora de cogitação, principalmente pelo alto número de eleitores que não estão seguros de seus votos. Esse seria um resultado terrível.
A segunda surpresa seria uma virada de Mélenchon. Aqui a possibilidade é menor, porém não podemos descartá-la: uma migração de votos na ordem de 20% de Jadot, Hidalgo e Roussel para o candidato da L’Union Populaire o colocaria na porta da disputa pelo segundo turno. Em 2017, quando foi realizada a última sondagem antes da eleição, Mélenchon cresceu apenas 0,5%, porém os votos em Le Pen caíram 2% em relação a pesquisa. Um outro fato para pensar nessa possibilidade, é que os candidatos à esquerda tinham uma porcentagem conjunta menor em 2017 do que atualmente (29% agora contra 26,5% em 2017).
O cenário principal é a possibilidade de enfrentamento entre o neoliberalismo de Macron e o neofascismo de Le Pen, tendo uma chance pequena de haver uma inversão entre quem ganha e quem perde o primeiro turno. Nos dois casos, um resultado terrível para a classe trabalhadora francesa e europeia que tanto resistiu nos últimos anos. Já no outro cenário, ainda que com todas as suas contradições, seria uma vitória das greves, das mobilizações, dos enfrentamentos ao desmantelamento dos direitos sociais e uma boa sinalização na Europa e para aqueles que resistem ao neoliberalismo e sua nova roupagem neofascista.
Notas
1 Para compreender um pouco o início do movimento recomendamos ler os artigos publicados no Esquerda Online sobre o movimento: https://esquerdaonline.com.br/tag/coletes-amarelos/.
2 Macron venceu. E agora? – https://esquerdaonline.com.br/2017/05/08/macron-venceu-e-agora/
4 https://www.mediapart.fr/journal/economie/110222/dix-annees-de-desindustrialisation-la-sauce-macron
5 Sobre o candidato Zemmour, ver o texto de Christina Ziakka: https://esquerdaonline.com.br/2021/12/13/eleicoes-presidenciais-francesas-quem-e-a-extrema-direita-de-eric-zemmour/
6 Para transformar a extrema-direita em algo mais “palatável” para o sistema político, Marine Le Pen afastou-se do pai, inclusive expulsando o mesmo do partido em 2015. Sobre a posição de Jean-Marie Le Pen, ver: https://www.lemonde.fr/election-presidentielle-2022/article/2021/10/02/jean-marie-le-pen-soutiendra-eric-zemmour-s-il-est-mieux-place-que-marine-le-pen_6096818_6059010.html
7 A entrevista é bastante interessante para pensar a estratégia da L’Union Populaire e pode ser lida na íntegra no site da revista Contretemps: https://www.contretemps.eu/entretien-daniele-obono-elections/.
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