O mundo está cada vez mais afundado na crise climática. Depois do último verão repleto de catástrofes no hemisfério Norte, o início de 2022 no hemisfério Sul é marcado pela sua própria onda de eventos extremos. No Brasil, já presenciamos chuvas destruidoras na Bahia e Minas Gerais, além de uma forte onda de calor que vem devastando o interior do Rio Grande do Sul com secas estarrecedoras. Como já está bem claro — menos para um punhado de negacionistas — a crise climática é um problema sério e que chegou para ficar, exigindo mudanças drásticas e imediatas. Não é de agora que o IPCC vem alertando sobre a necessidade de mantermos o aquecimento da Terra abaixo de 1,5 °C, uma meta que impediria os efeitos mais catastróficos das mudanças climáticas. Ao que tudo indica, infelizmente, esta meta fica mais longe a cada ano e estamos todos em risco. Um dos grandes obstáculos para alcançarmos a meta de 1,5 °C é a chamada “Indústria Fóssil”, um dos pilares do capitalismo e da forma como a sociedade é organizada atualmente. Dentro disto, o setor de energia é um dos mais cruciais, já que depende enormemente da extração e utilização de combustíveis fósseis. Portanto, dentre diversas mudanças que precisamos aplicar em um curto espaço de tempo, a transição energética é uma das mais espinhosas e vitais. O Brasil pode ocupar um lugar de destaque e vanguarda nessa luta contra o tempo.
A urgência da transição energética
Um dos grandes motes do nosso século é a “descarbonização da economia”. Mesmo os setores ligados ao capitalismo já admitem essa necessidade. De todo modo, as saídas do capitalismo verde são velhas apostas, como o “mercado de carbono” e os “fundos de investimento verde”. O máximo de solução que consegue apontar é a financeirização da natureza. São medidas aplicadas a décadas que jamais demonstraram qualquer resultado palpável no combate às mudanças climáticas, se tratando apenas de um mecanismo para o lucro privado às custas da nossa própria existência. Mais do que isto, são uma forma do centro do capitalismo seguir poluindo e destruindo o planeta, deslocando a responsabilidade para as periferias do capitalismo, elaborando novas modalidades de imperialismo e dominação destes países.
A aposta central na financeirização é um passo a mais no investimento em medidas ineficazes do “capitalismo verde”, submetendo a proteção ecológica e enfrentamento à crise climática aos interesses de investidores e acionistas. De tal modo, qualquer iniciativa para mitigar os efeitos da emergência que vivemos deverá primeiro ser aprovada não nos critérios científicos em relação à ciência climática, ou sociais em relação à justiça ambiental, mas antes de tudo em critérios econômicos dentro dos padrões do capitalismo. No fim das contas, é como se a nossa casa estivesse em chamas e estivessem optando por tentar apagar com um copo d’água ao invés do extintor de incêndio.
Além das saídas de financeirização, o que vemos corriqueiramente são megaempresas multinacionais fazendo uma falsa diversificação dos seus investimentos. Enquanto parcelas tímidas de investimento vão para o setor de energia renovável e alternativa, montantes tremendamente superiores são destinados para seguir explorando combustíveis fósseis. Assim, há uma enganadora visão de que o mercado está se “ecologizando” e a economia está cada vez mais “verde”. Na verdade, o que vemos é a impregnação das cores do carvão e do petróleo.
Enfrentar a questão energética de frente diz respeito a diversos elementos da crise climática atual, mas um que é pouco lembrado é a questão da desigualdade do acesso à energia elétrica. Como já mencionamos, o setor de energia é um dos maiores responsáveis pela emissão de gases do efeito estufa. O mínimo que se poderia esperar, é que a oferta de energia cobrisse a totalidade da população, mas 1,5 bilhões de pessoas não possuem acesso a energia. Dentro desse número gigantesco de pessoas fora do consumo de energia, quase a totalidade está localizada nos países da periferia do capitalismo. Trata-se de um cenário no qual países do centro do capitalismo possuem níveis altíssimos de consumo — especialmente, é claro, dentro das classes dominantes — enquanto outros países não conseguem consolidar estruturas básicas de geração e distribuição de energia. O estudo Tracking SDG 7: The Energy Progress Report aponta que se não ocorrerem mudanças estruturais de grande porte, 660 milhões de pessoas ainda não terão acesso à eletricidade até 2030.
Com os dados em mãos, podemos tranquilamente afirmar que a crise climática que enfrentamos é causada pela acumulação dos recursos naturais por uma elite que representa parcela extremamente minoritária da população. A classe dominante e sua lógica consumidora e destrutiva tem um impacto extremamente desmedido sobre a questão climática. Além disso, as respostas oferecidas pelo sistema atual acabam acelerando e aprofundando o ritmo dessa desigualdade, abrindo cada vez mais espaço para o setor financeiro inserir-se no combate às mudanças climáticas, o que significa uma financeirização da natureza que antagoniza diretamente com os direitos das populações mais periféricas e precarizadas, assim como dos povos originários.
Além de apontar a desigualdade no consumo de energia, o relatório supracitado também aponta que todo avanço na democratização da eletricidade se dá não pelos métodos tradicionais, mas pela expansão das energias renováveis. Segundo o estudo, na última década meio bilhão de pessoas foram incluídas no consumo de energia via o uso de fontes renováveis. Portanto, uma matriz energética baseada em combustíveis fósseis reforça não apenas a destruição da natureza e toda violência decorrente dos impactos das mudanças climáticas, mas também uma desigualdade global referente ao acesso à energia e toda gama de serviços e estruturas básicas da qual a população depende. Uma sociedade diferente, justa, igualitária e que não tenha na sua base a concentração de um lado e miséria do outro, passa determinantemente por uma transformação total da sua matriz energética.
O que deve ficar claro em todos estes processos é a necessidade de propor uma alternativa real à questão. Não um “equilíbrio” entre lucro e preservação, mas um projeto que coloque a vida no centro de qualquer iniciativa e preocupação. O capitalismo não é capaz de oferecer qualquer solução que vá neste sentido. A gravidade da crise climática nos impõe o desafio histórico de transformar completamente as bases da sociedade atual.
Transição no Brasil e o papel da Petrobrás e da Eletrobrás
O Brasil possui um invejável potencial para a geração de energia limpa. Por ser um país de extensão continental e abrigar diversos climas diferentes, com uma diversificada dinâmica de biomas e condições naturais, o país possui a possibilidade de explorar diversas formas de produção de energia renovável, podendo localizar em diferentes regiões do país quais métodos são mais adaptáveis a elas. A energia eólica é um exemplo do que já vem sendo explorado no Brasil, com estruturas onshore instaladas no nordeste e sul do país, mas a utilização deste tipo de energia ainda está muito aquém da capacidade existente. Outro tipo de fonte renovável diz respeito à energia solar, que num país como o Brasil possui muito campo para sua utilização. Mesmo em áreas que possuem menos presença de irradiação solar por dia, já seria possível captar mais do que em muitos países da Europa que já exploram de maneira ostensiva o recurso.
As condições naturais do Brasil que possibilitam esta variedade de métodos para geração de energia renovável, também abrem a possibilidade do País despontar como um exportador de energia limpa para toda a América do Sul, tornando-se ponta de lança num processo de integração energética regional. É claro, seria necessário um profundo projeto de construção de infraestrutura física que possibilitasse o transporte de eletricidade entre países, além da instituição de marcos regulatórios mutuamente firmados. De todo modo, é uma possibilidade real que seria um importante passo para a independência econômica e energética dos países sul-americanos, um processo do qual o Brasil poderia ser protagonista.
De todo modo, para alcançar este nível de esforços internacionais, primeiro o Brasil precisa consolidar um processo de transição energética no próprio país. Como mencionamos, já existe um pouco de estrutura neste sentido, mas os últimos anos têm sido de profundo retrocesso na pauta. A grande questão é que não é o bastante processos desordenados de iniciativas referentes à energia renovável. Multiplicação de iniciativas do setor privado não obterão resultados profundos ou permanentes na forma que a matriz energética no país se constitui. É preciso um processo de transformação conduzido por um comando político coeso e coerente, ou seja, que o Estado dê conta de iniciar e conduzir esse processo, pois os interesses privados sempre estarão submetidos à vontades particulares e, especialmente no caso de países como o Brasil, à pressões estrangeiras. O governo Bolsonaro, entretanto, tem agido constantemente contra a soberania nacional ao entregar à iniciativa privada parcelas vitais do setor energético. Segundo o Observatório Social da Petrobras, o governo Bolsonaro é responsável por 56,7% da venda de ativos da empresa, sendo um recordista na privatização. Esse número é maior que a soma das vendas durante o governo Dilma e o governo Temer — sendo que este último já havia dobrado o número do governo Dilma. Fica claro que o golpe de 2016 deu início ao desmonte da Petrobras e que Bolsonaro intensificou de forma bárbara o processo.
O processo de privatização da Petrobras corresponde aos interesses do capital internacional, que sempre teve grande obsessão pelo pré-sal brasileiro. Em termos de combate às mudanças climáticas, é imperativo que o pré-sal siga, na medida do possível, intocado. Se antes o pré-sal era visto como uma possibilidade de desenvolvimento econômico nacional dentro de uma lógica desenvolvimentista que não leva em consideração as consequências climáticas, agora é visto como um recurso pronto para a entrega para potências internacionais. O cenário vai de mal a pior e o governo Bolsonaro se apresenta como o signo do entreguismo no Brasil. A privatização leva, portanto, a um extrativismo extremado sem nenhum retorno para o país. Qualquer projeto de descarbonização no país passa necessariamente pela Petrobras, fazendo com que a entrega da empresa ao setor privado destrua a possibilidade de decisões soberanas em relação à uma transição energética para o Brasil.
A privatização da Petrobras também possui grande impacto em outra questão que é muito importante para a transição energética: pesquisa e inovação. A empresa possui um gigantesco arcabouço técnico e científico, além de uma refinada estrutura, que possibilitaria colocar a Petrobras naquilo que existe de mais avançado no que diz respeito à exploração de novas possibilidades para a transição energética. Colocar a empresa sob a gestão privada significa submeter toda essa potência para a inovação a interesses guiados meramente por aumento de lucro privado. Assim, não seria priorizada a inovação para melhoria das condições da população, ou uma relação muito mais harmoniosa com a natureza, sendo colocado como único critério aquilo que corresponde aos interesses dos acionistas.
Outro processo de privatização extremamente preocupante é a da Eletrobras. A privatização torna ainda mais agudos os elementos já mencionados de desigualdade em relação à energia. O Brasil tem enfrentado esse problema e avançado, isso graças a natureza estatal da Eletrobras. O projeto de privatização aumenta a tarifa para a população, além de tirar das mãos do Estado o planejamento para que a cobertura energética chegue até aqueles que ainda não tem. Sem contar que existem diversos exemplos de como o setor privado é ineficiente no fornecimento de energia, basta lembrarmos dos recentes apagões em 2018 e 2020 em regiões abastecidas pelo setor privado, apagões que só foram remediados pelo socorro de equipes técnicas da própria Eletrobras.
A entrega da Eletrobras também significaria a entrega da enorme capacidade de armazenamento de energia da empresa. Isto significa colocar nas mãos do setor privado toda rede hidrelétrica do país, transferindo para grandes multinacionais o controle sobre estes importantes reservatórios. A quantidade de energia gerada tem influência direta na flutuação dos preços da energia elétrica, fazendo que as decisões sobre o uso da água para outras atividades que não sejam a geração de energia — como por exemplo, o abastecimento de cidades e irrigação de pequenos agricultores — tornem-se centro de disputas no futuro próximo. Assim, a mercantilização do setor e a privatização de grandes reservatórios reforçam a tendência de grandes disputas sobre a questão da água, opondo de um lado as comunidades que irão sofrer os impactos da gestão do setor guiado pelo lucro e do outro lado os grandes empresários que irão lucrar com a nova lógica imposta.
Um programa de transformação para o Brasil
Fica claro que o Brasil possui tudo para ser o país-guia num processo de transformação de matriz energética. De todo modo, para conseguir chegar a este patamar, é necessário dar uma virada de 180º no que tem sido aplicado atualmente. Um programa de reconstrução do país, que é necessariamente uma mudança radical nas nossas matrizes energética e econômica, necessita desfazer muito do que tem sido feito desde 2016. Neste sentido, é necessário reverter o rumo que a Petrobrás tem tomado no governo Bolsonaro. Isto deve significar a estatização da empresa e a criação de mecanismos de controle por parte dos seus trabalhadores. Só assim será possível que a empresa seja a ponta de lança num processo de transição justa, isto é, que garanta a saída da lógica de combustíveis fósseis e que também firme a garantia de empregos aos trabalhadores da empresa. Assim, a Petrobras poderá se tornar o modelo de inovação tecnológica e transformação em direção a rumos sustentáveis com a diversificação das atividades da empresa em energias renováveis, além de se tornar o exemplo de iniciativa em direção a uma sociedade ecológica e voltada para os trabalhadores, fazendo com que a conta da crise climática seja paga pelas classes dominantes.
A Eletrobras, como mencionado, também possui um papel preponderante em um projeto de transição energética no país. Manter a empresa sob controle estatal possibilitaria proteger os estratégicos reservatórios de água do país e garantir nossa soberania nas decisões relacionadas ao manejo da água e as prioridades para a sua utilização. O controle estatal também garantiria soberania nas decisões relacionadas ao próprio uso de hidrelétricas para geração de energia, assegurando a possibilidade de transitar para outras formas mais limpas. A garantia de uma empresa pública também daria maior capacidade de segurança energética, já que, como nos casos supracitados, o setor privado demonstra pouca qualificação para isto.
Em suma, precisamos de um programa radical para o Brasil. Além de garantir uma transformação radical da matriz energética do país, a partir das bases aqui explicadas, precisamos de uma transição na própria matriz econômica do país. Ir para longe dos combustíveis fósseis e outras formas de produção de energia poluentes, deve vir combinado com um combate aos pilares extremamente destrutivos da nossa economia: o agronegócio, a mineração e outras formas de extrativismo. No Brasil, o desmatamento é um ator protagonista na crise climática, assim como evitar o desmatamento e avançar numa lógica de reflorestamento e preservação é uma das principais colaborações que o país pode dar no combate às mudanças climáticas. Combinado a isto tudo, o país também deve avançar numa reforma agrária de caráter agroecológico, sustentando a produção familiar e acabando com as práticas tão nocivas de monocultura e a lógica de commodities.
Ao olhar para os desafios para o Brasil, é evidente que o programa necessário é um programa de profundo enfrentamento aos poderes estabelecidos no país. Um programa que enfrente a indústria fóssil, os latifúndios e os garimpos. Um programa que transforme a coluna vertebral do país, indo contra os pilares do capitalismo em terras brasileiras e o interesse do capital internacional nos nossos recursos. Um programa que enfrente a violência no campo e o genocídio dos povos indígenas, além de transformar a lógica que ordena as nossas cidades. Em outras palavras, o programa de transformações estruturais que necessitamos é um programa guiado pelos princípios e objetivos estratégicos do ecossocialismo.
*Matheus Hein é Militante ecossocialista do Afronte.
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