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MOVIMENTO

Sobre a greve da Saúde em Juazeiro do Norte e os horizontes da luta pelos mínimos direitos da classe trabalhadora em tempos de neoliberalismo e o bolsonarismo

Edson Xavier, de Juazeiro do Norte, CE

Já são dois anos de pandemia e três de Bolsonaro. Um período repleto de ataques do bolsonarismo e neoliberalismo em suas variadas cepas cuja combinação mortal tem colocado em xeque a sobrevivência de centenas de milhões. Tempo mais que suficiente para minar a influência obtida em 2018 quando o presidente foi eleito – o Brasil e os brasileiros de 2002 são outros. O bolsonarismo e o neoliberalismo seguem fazendo estrago, mas a esquerda voltou a ter audiência de massas. Desde que Lula teve seus direitos políticos restituídos, retornou à sua condição de favorito na eleição presidencial de outubro próximo. E todas as pesquisas recentes indicam que são fortes as possibilidades de uma vitória do Partido dos Trabalhadores ainda no primeiro turno. Com Lula como preferencia nacional e provável próximo presidente, a mídia empresarial, porta-voz de parcela mais poderosa da burguesia, se movimenta tentando apresentar uma “terceira via”. Até agora, tais tentativas têm fracassado. Na primeira pesquisa do ano, Bolsonaro é reprovado por 57% e seu governo por 61% dos brasileiros.

Houve uma inflexão, contudo, ainda não passamos para uma situação de ofensiva. Há muitas incertezas no seio da classe e dialeticamente também nas direções das nossas organizações. Não por acaso há na esquerda uma polêmica sobre Lula ter ou não um vice que sinalize para o mercado que um novo governo do PT vai manter a formula da conciliação de classes. Parte significativa dos quadros dirigentes de esquerda vacila ao avaliar que o andar de cima não vá permitir um terceiro mandato que ameace por abaixo todas as reformas estruturais realizadas pela classe dominante a partir da operação lava jato e do golpe. Tais incertezas tem feito a mão tremer.

Veremos nesse texto como essa realidade defensiva em dinâmica de inclinação tendencial à esquerda, se expressa sobre a categoria dos trabalhadores de saúde, em particular na greve em curso em Juazeiro do Norte-CE, diante de uma gestão com apelo bolsonarista e no contexto de uma maioria social na região que se consolida contra Bolsonaro e seus representantes.

Quem de fato enfrenta a pandemia e em que condições?

No Brasil, há atualmente na linha de frente no combate a pandemia um batalhão de 3,5 milhões de enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, odontólogos, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais, médicos, e mais um tanto de técnicos e auxiliares em enfermagem, laboratoristas, socorristas, condutores de ambulâncias, maqueiros, agentes comunitários, entre outros. O nosso sistema de saúde, o SUS, se estrutura com mais de 200 mil estabelecimentos de saúde, sejam ambulatoriais ou hospitalares que juntos oferecem a população mais de 430 mil leitos nos 5.570 municípios das cinco regiões do país (CNES, 2017).

É com essa estrutura que o Brasil tem enfrentado os últimos 2 anos de pandemia da Covid-19. Contudo esse quadro está longe de oferecer serviços suficientemente para atender as necessidades da população frente a introdução das variantes ômicron do coronavírus e o H3N2 da gripe. Voltamos a registrar filas de atendimentos nos hospitais, clínicas e postos de saúde. Além do sofrimento da população em geral, os trabalhadores da saúde, em especial, sofrem em demasia. No Ceará, onde a infecção por ômicron já predomina, entre dezembro de 2021 e janeiro deste ano, cerca de 10 a 15% dos que atuam na rede de saúde do Estado foram colocados em quarentena por terem apresentado sintomas gripais. Nos dois anos de pandemia, mais de 25,7 mil profissionais da saúde contraíram a Covid-19 em todos os 184 municípios cearenses. No total, 98 mortes foram computadas, segundo mostra o IntegraSUS. Ainda há cerca de 1,1 mil casos em investigação. As cinco categorias com maior confirmação de casos foram técnicos ou auxiliares de enfermagem (6.845), enfermeiros (3.891), agentes comunitários de saúde (2.206), médicos (1.975) e agentes de combate a endemias (966).

Na análise por gênero, chama atenção a predominância de casos entre mulheres, que representam 72% do total de diagnósticos positivos. São aproximadamente 18,5 mil casos, contra 7,2 mil de pessoas do sexo masculino. Já por faixa etária, a maioria dos casos se concentra nos grupos de 35 a 39 anos (4.398) e de 30 a 34 anos (4.270). Já em relação aos óbitos, os homens são maioria entre o total de vítimas (60%). Em relação à faixa etária, não há concentração apenas nas idades mais avançadas, como se pregava no começo da pandemia. Os números indicam que, profissionais acima de 60 anos respondem por 51% dos óbitos, enquanto os que têm idade entre 25 e 59 correspondem a 48%. Em Juazeiro do Norte já são 713 casos de Covid-19 entre profissionais da saúde, o 4º lugar em termos dessa ocorrência entre as cidades cearenses.

O negacionismo do governo Bolsonaro faz a saúde sofrer. O aumento de infecções tem sobrecarregado a rede de saúde. O vírus atinge crianças que ainda não começaram a ser vacinadas e lotam as unidades de saúde. Há escassez de testes e o ritmo de vacinação desacelerou. E para complicar ainda mais, há um apagão dos dados dificultando planejamento do setor. Nesse contexto, os profissionais e trabalhadores da saúde estão muito mais vulneráveis: o volume de trabalho cresceu, os equipamentos de proteção estão em falta e mais trabalhadores adoecem e precisam ficar afastados de suas atividades – estão chegando ao limite da exaustão.

Pode parecer inacreditável, mas essa atividade essencial e reconhecida pela população pelo empenho, competência e até heroísmo tem enormes dificuldades em garantir uma simples e merecida remuneração condizente ao volume extenuante de trabalho e extensas jornadas que levam ao esgotamento físico e mental. No limite, desfalcadas, fragilizadas e a beira do esgotamento devido à batalha diária infindável contra a pandemia e diante da situação de precariedade da profissão, as equipes de saúde em todo país protestam e ameaçam parar. O caso da greve que ocorre em Juazeiro do Norte é ilustrativo desse processo.

Contra quem lutamos e quem são os nossos aliados?

Depois de 9 meses de negociações frustradas com o prefeito Glêdson Bezerra (Podemos), no último dia 3 de janeiro as equipes de saúde resolveram parar e deflagraram greve sob a direção do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais (Sisemjun). Na pauta de reivindicações consta o básico: implantação do adicional de insalubridade, a criação da gratificação de desempenho e a implementação das jornadas de 30 horas.

Em resposta, o prefeito seguindo o receituário da terceira via neoliberal e do bolsonarismo vem assediando moralmente os profissionais, atacando o sindicato e mentindo publicamente nos meios de comunicação local tentando fazer com que a população se volte contra o funcionalismo público. Vale lembrar que o Podemos, atual partido do ex-juiz Sérgio Moro, além do prefeito Gledson, tem também no Ceará o senador Eduardo Girão, famoso durante a “CPI da Covid” por defender o chamado “tratamento precoce” e querer “ouvir os dois lados”. É um caso onde o morismo (lavajatismo) e o bolsonarismo que andavam de mãos dados, agora seguem separados. Girão chega a afirmar “Pelo amor de Deus, não cabe me chamar de governista, muito menos de bolsonarista”. 

De fato, sob a gestão Gledson, o município juazeirense reflete o caos vivido pela ciência brasileira durante o governo Bolsonaro com cortes orçamentários milionários e ataques contínuos à autonomia das instituições. Um desmonte que afeta profundamente a educação, a saúde pública, o meio ambiente e a cultura. Na realidade, esse é um processo de longo prazo, mas que se tornou mais intenso com o governo Bolsonaro. Somente essa semana, depois de criticar vacinação em crianças, Bolsonaro (PL) afirmou que a variante ômicron seria “bem-vinda” por sinalizar o “fim da pandemia”. O bolsonarismo como corrente política neofascista subestima a seriedade da pandemia, estimula a desinformação como estratégia política. Reforçam assim, o discurso negacionista e pseudocientífico que se traduzem em políticas para a morte.

Os rumos da greve se cruzam com os da conjuntura nacional

A dinâmica onde as políticas locais se correlacionam fortemente com aquilo que ocorre nacionalmente continua valendo desde a posse de Bolsonaro. Em toda parte, os trabalhadores e trabalhadoras da saúde lutam e resistem contra a mercantilização das políticas sociais, em especial da saúde, e possuem muitos motivos para fazer greve. Portanto, a questão de fundo é a luta por barrar a implantação no Brasil do projeto privatista cuja lógica é orientada pelas regras de mercado e pela exploração da doença como fonte de lucros.

Essa luta é duríssima e a conjuntura pesa. A decadência acentuada do governo Bolsonaro depois de três anos de mandato foi determinante. A insatisfação provocada pela forma como a gestão municipal tratou a saúde minou em ritmo acelerado a popularidade do prefeito Gledson, eleito ainda na onda bolsonarista e lavajatista. A existência de um sindicato com tradição de luta e a presença de partidos da esquerda radical no seio da classe foram decisivos. E a combinação de tais fatores permitiu a greve. Nesse sentido, ao quebrar a inércia e a apatia que prevaleceu na classe nos anos iniciais do governo, o movimento paredista já pode ser considerado vitorioso.

Essa greve em particular e as que estão em ebulição para ocorrer no funcionalismo público federal cumprem um papel educativo fundamental – em um ano decisivo, onde teremos eleições logo mais, a mobilização coloca em evidência os horizontes das possibilidades e arma a classe trabalhadora para entender e se posicionar diante das disputas em curso entre os três projetos para o país – esquerda, terceira via e bolsonarismo.

É possível para a classe pensar um futuro que não esse que se inscreve no marco do desenvolvimento do sistema capitalista em sua fase neoliberal, com diminuição de direitos para os que vivem do trabalho e participação cada vez maior do mercado, em todos os aspectos da vida social? A greve mostra que sim. Em síntese: um governo de esquerda deve e pode ter um programa de esquerda.