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MUNDO

A mundialização, de Cristóvão Colombo, Vasco da Gama e Fernão Magalhães até aos nossos dias (parte 2)

por Eric Toussaint

Original publicado em 29 de Dezembro de 2021 em http://www.cadtm.org/A-mundializacao-de-Cristovao-Colombo-Vasco-da-Gama-e-Fernao-Magalhaes-ate-aos?fbclid=IwAR0jNwajEWTIqeNGN-ZY8QoaCeXzqFP4RPjrsxQqX0vNj69v9XLTG03u2fI#segunda_viagem_intercontinental_de_vasco_da_gama_1502

Parte I

Parte II

A ascensão e o domínio do mundo pela Grã-Bretanha

A Grã-Bretanha junta-se às outras potências europeias na conquista pelo Mundo

No século XVI as principais actividades da Inglaterra fora da Europa eram a pirataria e as viagens de descobrimento tendo em vista o estudo das possibilidades de criar um império colonial. A sua jogada mais ousada foi o apoio real à expedição de Drake (1577-1580), que, com cinco navios e 116 homens, contornou o estreito de Magalhães, capturou e pilhou navios espanhóis carregados de tesouros ao largo da costa chilena e peruana, estabeleceu contactos úteis nas ilhas de especiarias das Molucas, Java, dobrou o cabo da Boa Esperança e passou pela Guiné no seu regresso. [18]

Em finais do século XVI a Grã-Bretanha marca um ponto decisivo para a afirmação definitiva da sua potência marítima ao infligir uma derrota naval à Espanha, ao largo da costa britânica.

A partir desse momento, lança-se à conquista do Novo Mundo e da Ásia. No Novo Mundo, cria as colônias açucareiras das Antilhas e, a partir da década de 1620, participa activamente no tráfico de escravos importados de África. Simultaneamente instala, entre 1607 e 1713, quinze colônias de povoamento na América do Norte, das quais treze acabam por declarar independência, tornando-se os Estados Unidos; as duas restantes mantiveram-se na esfera de influência britânica e viriam a fazer parte do Canadá.

Na Ásia, a coroa britânica adota outra política: em vez de recorrer à criação de colônias de povoamento, instaura um sistema de colônias de exploração, a começar pela Índia. Para isso o Estado britânico oferece protecção à Companhia das Índias Orientais em 1600 (uma associação de mercadores concorrente de outros agrupamentos do mesmo tipo na Grã-Bretanha). Em 1702 a Companhia das Índias Orientais obtêm do Estado o monopólio do comércio e lança-se à conquista das Índias, que acaba vitoriosa na batalha de Plassey, em 1575, o que lhe permite passar a controlar Bengala. Durante pouco mais de dois séculos, a Grã-Bretanha aplica uma política econômica protecionista pura e dura. Após tornar-se a potência económica dominante durante o século XIX, impõe uma política imperialista de livre-cambismo [19]. Por exemplo, impõe a tiro de canhão à China a «liberdade de comércio» a fim de forçar os Chineses a comprarem o ópio indiano e permitirem aos Britânicos adquirir, com os proventos da venda do ópio, o chá chinês, para depois o venderem no mercado europeu.

Entretanto a Grã-Bretanha expande as suas conquistas na Ásia (Birmânia, Malásia), na Australásia (Austrália, Nova Zelândia etc.), na África do Norte (Egipto), no Próximo Oriente, e por aí fora…

Ao nível da África Subsariana, até ao século XIX, o comércio dos escravos constitui o seu interesse dominante. Depois lança-se à conquista.

Na Índia, como noutras partes da Ásia, os Ingleses foram antecedidos pelos Portugueses, que conquistaram pequenos territórios indianos. Aí instalaram entrepostos comerciais e instauraram o terrorismo religioso. É assim que vemos aparecer em Goa em 1560 o tribunal da Inquisição, que se mantém activo até 1812. Em 1567 foram banidas todas as cerimónias hinduístas. Em pouco mais de dois séculos o tribunal da Inquisição fez 16.000 julgamentos em Goa e milhares de indianos pereceram na fogueira.

A conquista da Índia pelos Britânicos

Para se apoderarem da Índias, os Ingleses procuraram sistematicamente aliados entre as classes dominantes locais

Os Britânicos, durante a conquista da Índia, expulsaram os outros concorrentes europeus, holandeses e franceses. Estes tentaram impor-se, mas falharam. A sua derrota em meados do século XVIII, durante a guerra de sete anos que os opôs aos Britânicos, deveu-se principalmente à falta de apoio do Estado francês  [20].

Para conseguirem controlar a Índia, os Ingleses procuraram sistematicamente alianças junto das classes dominantes e dos senhores locais. Não hesitaram, quando lhes pareceu necessário, em utilizar a força, como sucedeu na batalha de Plassey, em 1757, ou aquando da violenta repressão da revolta dos Sipais em 1859.

Puseram ao seu serviço as estruturas locais de poder e na maior parte das vezes deixaram os senhores locais no poder, prometendo-lhes a possibilidade de continuarem a ter uma vida de ostentação, ao mesmo tempo que lhes impunham as regras do jogo (não dispunham de poder real face aos Britânicos). Foi mantida e até reforçada a divisão da sociedade em castas, que tem um peso terrível na sociedade indiana até aos dias de hoje. Assim, à divisão da sociedade em classes e ao domínio do sexo masculino sobre as mulheres acresce uma divisão em castas baseada no nascimento.

A divisão da sociedade indiana em castas foi mantida e até reforçada pela Grã-Bretanha. Por via da cobrança de impostos e do comércio desigual entre a Índia e a Grã-Bretanha, o povo indiano contribuiu para o enriquecimento da Grã-Bretanha como país e das suas classes ricas (comerciantes, industriais, pessoal político). Mas os Britânicos não foram os únicos a enriquecer: os banqueiros, os comerciantes, os patrões das manufacturas indianos acumularam igualmente fortunas colossais. Graças a isso a Companhia das Índias Orientais (EIC) e o Estado britânico conseguiram manter durante muito tempo uma dominação que suscitava um profundo repúdio junto da população.

O exemplo da indústria do algodão

Os têxteis de algodão produzidos na Índia tinham uma qualidade inigualável em todo o mundo. Os Britânicos tentaram copiar as técnicas indianas de produção e produzir no país deles algodões de qualidade comparável, mas durante muito tempo o resultado foi medíocre. Sob pressão nomeadamente dos proprietários de manufacturas têxteis britânicas, o governo de Londres proibiu a exportação de tecidos de algodão indianos para os territórios do Império Britânico. Londres proibiu também a Companhia das Índias Orientais de comerciar tecidos de algodão indianos fora do Império. Assim a Grã-Bretanha tentou encerrar todos os pontos de venda dos têxteis indianos. Foi graças a estas medidas que a indústria britânica de algodão conseguiu ser rentável.

Embora actualmente os Britânicos e as outras potências mais industrializadas recorram sistematicamente, no âmbito da Organização Mundial do Comércio, a acordos comerciais relativos ao direito da propriedade intelectual, para dominarem países em desenvolvimento como a Índia, há pouco menos de três séculos não hesitaram em copiar os métodos de produção e de design dos Indianos, nomeadamente no domínio dos têxteis de algodão  [21].

Por outro lado, para aumentarem os seus lucros e serem mais competitivos que a indústria algodoeira indiana, os patrões britânicos das empresas algodoeiras foram levados a introduzir novas técnicas de produção: utilização da máquina a vapor e de nova maquinaria de fiar e tecer. Recorrendo à força, os Britânicos transformaram a Índia a fundo. Enquanto até finais do século XVIII a economia indiana era exportadora de produtos manufacturados de alta qualidade e satisfazia largamente a procura interna, nos séculos XIX e XX foi invadida por produtos manufacturados europeus, em particular britânicos. A Grã-Bretanha proibiu a Índia de exportar os seus produtos manufacturados, forçou a Índia a exportar cada vez mais ópio para a China no século XIX (tal como impôs militarmente à China a compra do ópio indiano) e inundou o mercado indiano de produtos manufaturados britânicos. Em suma, induziu a Índia ao subdesenvolvimento.

A destruição e a apropriação dos bens comunitários

Desde o dealbar do capitalismo que os bens comuns foram sistematicamente postos em causa pela classe capitalista e sujeitos à apropriação privada

Desde o dealbar do capitalismo que os bens comuns foram sistematicamente postos em causa pela classe capitalista e sujeitos à lógica da mercantilização e da apropriação privada. Entre os objetivos dos capitalistas, quando começaram a investir em manufacturas na Europa, há vários séculos: suprimir as fontes vitais de subsistência ao maior número possível de camponeses, que constituíam de longe a maior parte da população, a fim de os obrigar a migrarem para as cidades e aceitarem trabalhar por um salário miserável nas fábricas capitalistas. Entre os objetivos perseguidos nos países dos outros continentes submetidos à conquista das potências europeias: roubar as terras das populações locais, as suas matérias-primas e, portanto, os seus recursos vitais, instalar colonos e obrigar as populações ao trabalho forçado.

Nos séculos XVI a XIX, os diversos países cujas economias foram progressivamente dominadas pelo sistema capitalista viveram um vasto processo de destruição dos bens comuns. Autores como Karl Marx (1818-1883) no livro 1 de O Capital  [22], Rosa Luxemburgo (1871-1919) no seu livro A Acumulação do Capital  [23], Karl Polanyi (1886-1964) em A Grande Transformação  [24], Silvia Federici (1942) em Calibã e a Bruxa [25] trouxeram esse facto à luz. O belo filme de Raoul Peck sobre o jovem Karl Marx [26] começa com imagens muito fortes mostrando um dos múltiplos casos de destruição dos bens comuns: a repressão brutal de pobres que estão a apanhar lenha caída nas florestas do Reno, na Alemanha, e a tomada de posição de Karl Marx em defesa das vítimas de perseguição judicial, por terem exercido um direito colectivo milenar que entrou em contradição com a lógica capitalista. Daniel Bensaïd consagrou-lhe um pequeno livro intitulado Les Dépossédés: Karl Marx, les voleurs de bois et le droit des pauvres [Os Despojados: Karl Marx, os Ladrões de Lenha e o Direito dos Pobres], no qual mostra o processo de destruição dos bens comuns. [27]

Em O Capital, Karl Marx resume certas formas assumidas pela imposição do sistema capitalista na Europa: «O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Tais métodos conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente livre.» [O Capital, Livro I, Cap. 24, segundo a já referida tradução de Rubens Enderle]

Pilhagem de terras comunitários, eis um dos procedimentos idílicos da acumulação primitiva capitalista

Ao mesmo tempo que se impunha progressivamente como modo de produção dominante na Europa, o capitalismo estendeu o seu reino ao resto do planeta: «A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista.» [O Capital, Livro I, Cap. 24, secção 6, ibid.]

Notas da parte II

[18] Ver Maddison, 2001, p. 110.

[19] O livre-cambismo abole ou reduz as barreiras tarifárias à troca internacional de mercadorias. É o oposto de proteccionismo. Alguns autores usam também as expressões «livre-troca» e «livre-comércio».

[20] Ver Gunder Frank, 1977, p. 237-238.

[21] Os Holandeses fizeram o mesmo com as técnicas de produção cerâmica chinesas, que copiaram e apresentaram depois como cerâmica, faiança e porcelana azul e branca de Delft.

[22] Karl Marx. 1867. O Capital, livro I. Além de várias edições impressas, portuguesas e brasileiras, estão disponíveis para consulta na rede digital, no Arquivo Marxista na InternetCaps. I e VII, e Cap. XXIV – A Acumulação Original. Também disponível em linha: O Capital, livro 1, ed. Boitempo, trad. Rubens Enderle (consultado em 19/12/2021), embora faltem nesta edição alguns capítulos.

[23] Rosa Luxemburgo. 1913. A Acumulação do CapitalFac-símile da ed. Zahar descarregável em linha (consultado em 19/12/2021).

[24] Polanyi, Karl. 1944. Em versão portuguesa: A Grande Transformação. As Origens Políticas e Económicas do Nosso Tempo, Edições 70, Portugal, 2021; A Grande Transformação, as Origens da Nossa Época, ed. Campus, Brasil; descarregável em linha (consultado em 19/12/2021).

[25] Silvia FEDERICI (2004), Calibã e a Bruxa, ed. Orfeu Negro, Portugal, 2020; ed. Tadeu Breda, Brasil, 2017.

[26Le Jeune Karl Marx (O Jovem Karl Marx) é um filme biográfico franco-germano-belga realizado por Raoul Peck, estreado em sala em 2017.

[27] Daniel Bensaïd, Les dépossédés. Karl Marx, les voleurs de bois et le droit des pauvres, La Fabrique, Paris, 2007, 128 p.