Originalmente publicado em Viento Sur | Tradução para o português: Semear o Futuro
O número crescente de catástrofes climáticas em todo o mundo é resultado de um aquecimento de apenas 1,1 ° a 1,2 ° C em comparação com a era pré-industrial. Da leitura do relatório especial do IPCC (Painel Intergovernamental sobre o Clima) sobre 1,5 ° C[1], qualquer leitor razoável concluirá que é preciso fazer tudo, absolutamente tudo, para manter a Terra bem abaixo desse nível. Além disso, os riscos aumentam muito rapidamente[2]. Há até a possibilidade crescente de que uma cascata de feedbacks positivos provoque uma mudança irreversível no planeta em direção a um regime que acaba causando uma elevação do nível do mar de treze metros ou mesmo várias dezenas de metros acima do atual[3]. Uma distopia inimaginável… certamente incompatível com a existência de sete bilhões de seres humanos na Terra!
Dado o tempo perdido desde a Cúpula da Terra (Rio, 1992) ― e desde Paris ―, não é certo que o limite de 1,5 ° C possa continuar a ser respeitado: ao atual ritmo de emissões, será ultrapassado em… 2030! No entanto, o que é absolutamente certo é que a corrida para o fundo do poço não pode ser travada sem a quebra do produtivismo inerente à economia de mercado. Como disse Greta Thunberg, “a crise climática e ecológica simplesmente não pode ser resolvida dentro dos atuais sistemas políticos e econômicos. Não é uma opinião, é simplesmente uma questão de matemática”[4]. Dado que a COP26 é realizada “dentro da estrutura dos sistemas econômicos e políticos atuais”, o prognóstico é claro: a conferência de Glasgow não parará a catástrofe mais do que as anteriores.
Isso significa que podemos ignorar o que vai acontecer na Escócia? Não, há temas importantes na agenda da cúpula. Por exemplo: quantos países irão aumentar o nível de suas ambições climáticas[5]? Em que medida a lacuna entre os compromissos dos países e o que deve ser feito globalmente para salvar o clima diminuirá?[6] Dos compromissos dos principais poluidores, que proporção dirá respeito à respetiva participação nas reais reduções de emissões nacionais, à “compensação de carbono” por sumidouros, à captura e sequestro florestal, e aos chamados investimentos limpos no Sul? Aplicar-se-á, e como, o “novo mecanismo de mercado” de carbono adotado na COP21[7]? Será adotado um preço global para o carbono ou os países ricos impo-lo-ão de facto por meio de um imposto fronteiriço sobre o carbono[8]? Será que esses países finalmente cumprirão a sua promessa de pagar cem bilhões de dólares anualmente ao Fundo Climático para ajudar o Sul global a enfrentar o desafio climático? Etc.
Essas questões serão objeto de acirradas disputas entre os representantes dos Estados, dependendo de seus interesses econômicos e rivalidades geoestratégicas. Tudo isso terá que ser analisado em detalhes para tirar lições sobre o estado do capitalismo e a gravidade da sua crise sistêmica. Sem esquecer que, em certos aspetos e até certo ponto, as mobilizações dos movimentos sociais podem pesar no resultado. Isso não é desprovido de importância. Por exemplo, não seria negativo colocar mais obstáculos à “compensação de carbono”, e se esse sistema pudesse ser banido, seria uma grande vitória. No entanto, não devemos ter ilusões: em geral, a COP26 permanecerá “dentro dos sistemas político e econômico atuais”, como diz Greta Thunberg. Portanto, podemos ser categóricos: basicamente, Glasgow não resolverá NADA.
Mais energia renovável … e mais emissões
Diante desse ponto de vista radical, às vezes é objetado que a irrupção de energias renováveis poderia oferecer uma saída para a crise. Esse avanço é real, principalmente no setor de geração de energia. Nos últimos vinte anos, a participação das energias renováveis na matriz energética mundial aumentou em média 13,2% ao ano. O preço do kWh verde tornou-se muito vantajoso (especialmente em energia eólica onshore e fotovoltaica). De acordo com a AIE (Agência Internacional de Energia), na próxima década, mais de 80% dos investimentos no setor elétrico serão direcionados para energias renováveis. Mas é completamente errado concluir que “o processo global de abandono dos combustíveis fósseis está muito avançado”, como escreveu recentemente a Comissão Europeia[9]. Na verdade, essa afirmação é uma grande mentira. Em dez anos, a participação dos combustíveis fósseis na matriz energética mundial diminuiu apenas impercetivelmente: de 80,3% em 2009 para 80,2% em 2019[10]; em vinte anos, apenas a participação do carvão diminuiu, mas muito ligeiramente (-0,3% em média anual); o do gás natural aumentou 2,6% e a do petróleo 1,5% (de 2014 a 2019). Não há a menor indicação de que um “processo global de afastamento” dos combustíveis fósseis tenha começado! Como resultado, as emissões globais de CO2 continuam a aumentar inexoravelmente (exceto durante a crise de 2008 e a pandemia de 2020).
Porque existem mais energias renováveis e mais emissões fósseis ao mesmo tempo? Porque as energias renováveis não substituem os combustíveis fósseis: elas cobrem apenas uma parte crescente do consumo mundial de energia. Este consumo continua a crescer à mesma taxa que a acumulação de capital (em particular, a digitalização crescente e a maior complexidade das cadeias de valor internacionais são duas dinâmicas com grande intensidade energética[11]). Assim, a política climática burguesa tem duas faces, como Janus. Por um lado, os governos capitalistas competem entre si com belas declarações sobre a transição energética e a neutralidade de carbono inspiradas na melhor ciência. Mas os seus compromissos são mais orientados para favorecer as empresas que ingressam no mercado de tecnologia verde do que para salvar o clima. Portanto, este é o outro lado, esses mesmos governos puxam o travão na transição cada vez que é necessário manter o crescimento do PIB. Assim, a lei do lucro prevalece sobre as leis da melhor ciência da física. Isso é o que as tensões no fornecimento de energia da China revelaram.
Quando os preços da energia sobem na fábrica do mundo…
Conhecemos o contexto: a potência chinesa em ascensão quer impor-se como líder geoestratégica mundial. Essa ambição tornou-se inseparável de uma política climática responsável, como o capitalismo verde. É por isso que Xi Jiping prometeu em Davos que as emissões de seu país começariam a diminuir antes de 2030; um pouco depois, ele acrescentou que a China pararia de construir centrais termoelétricas a carvão no exterior. Até agora o que foi dito para a galeria. Na prática, a tinta dos jornais que relatam essas declarações ainda não tinha secado quando Pequim aumentou em 10 % a produção de carvão na Mongólia Interior. Esta decisão é o resultado de uma combinação de metas climáticas mais ambiciosas e recuperação pós-Covid. Os pedidos de produtos fabricados na China estão a chegar, causando uma relativa escassez de eletricidade. As exportações russas de combustíveis fósseis ― especialmente gás, que também é um fardo para a Europa ― são insuficientes para cobrir a escassez, então os preços estão a subir… o que ameaça a recuperação global. A estagflação é uma ameaça. Portanto, Pequim está reativando suas minas de carvão.
A análise do Financial Times sobre essa situação é clara: A China, como outros mercados de energia que enfrentam escassez, deve encontrar um equilíbrio: usar o carvão para se manter no negócio e ao mesmo tempo mostrar-se comprometida com as metas de descarbonização. Às vésperas da COP26, isso soa incómodo, mas a realidade de curto prazo é que a China e muitos outros não têm escolha a não ser aumentar o consumo de carvão para atender à procura por eletricidade[12].
Notavelmente, os Estados Unidos e a Europa tiveram o cuidado de não criticar a decisão chinesa. Por uma razão óbvia: um aumento descontrolado do preço da energia na fábrica do mundo capitalista teria consequências em cascata globais. Os líderes chineses também são muito pragmáticos: embora tenham imposto um embargo ao carvão australiano ― para punir Canberra pela sua postura em relação a Taiwan, Hong Kong e outras questões ― eles fazem vista grossa quando os cargueiros australianos descarregam seu carvão nos portos chineses. Conclusão: não confiemos nas promessas climáticas dos políticos capitalistas, mesmo que se cubram com a bandeira do comunismo. Afinal, é o capital que terá a última palavra, não o clima. Tanto na República Popular da China, como em outros lugares.
…estão sendo consumidos mais combustíveis fósseis em nome da transição ecológica!
Essas tensões no mercado de energia revelam as contradições insolúveis da transição energética capitalista. Na verdade, a China é o principal fornecedor mundial de painéis fotovoltaicos (a maioria dos quais são fabricados em Xinjiang, com trabalho forçado). É também o principal produtor daquelas terras raras cuja exploração e transformação requerem grandes quantidades de energia e que são indispensáveis para muitas tecnologias verdes …. Enquanto a humanidade está à beira do abismo climático, a lógica capitalista do lucro leva a esse absurdo óbvio: queima-se mais carvão e, portanto, emite-se mais CO2… para manter os lucros… dos quais depende a transição para as energias renováveis!
Como a China é a oficina do mundo, o problema torna-se global. Como é que isso afetará a política climática em geral? A COP26 é considerada mais ambiciosa. Isso pode ser verdade no papel, para convencer as pessoas de que a situação está sob controlo, mas ainda há um longo caminho a percorrer. Sem ir mais longe, um relatório recente da ONU indica que 15 países (incluindo Estados Unidos, Noruega e Rússia) projetam que a produção de combustíveis fósseis em 2030 será mais do que o dobro do limite compatível com o Acordo de Paris! No total, em 2030 o limite seria ultrapassado em 240% para o carvão, 57% para o petróleo e 71% para o gás[13].
Questionado pelo Financial Times, um especialista não acredita que “a escassez de carvão e a alta dos preços da energia sejam um problema cíclico e de curto prazo na China”. Em vez disso, diz ele, este episódio destaca que “os desafios estruturais e de longo prazo da transição para sistemas de energia mais limpos”. O especialista está certo. O desafio estrutural é o seguinte: não há mais espaço de manobra, as emissões têm que ser reduzidas de imediato, radicalmente. Portanto, não é suficiente dizer que as energias renováveis podem substituir os combustíveis fósseis. Há que dizer como se vai compensar as emissões adicionais resultantes do fato de se ter que usar combustíveis fósseis para fazer a conversão para energia renovável, especialmente no início. Tecnicamente, esse desafio só pode ser superado com a redução da produção global e do transporte[14]. Socialmente, esta solução técnica só pode ser considerada se o trabalho, o tempo e a riqueza necessários forem massivamente distribuídos. Voltaremos a isso na conclusão, mas é claro que os dois ramos ― técnico e social ― da solução são totalmente incompatíveis com a lógica capitalista de competição no mercado. É com base neste contexto que as promessas de neutralidade de carbono devem ser examinadas.
A verdadeira face da neutralidade de carbono e dos acordos verdes
Desde que Trump passou o testemunho a Biden, os principais poluidores do mundo declararam sua intenção de atingir a neutralidade do carbono até 2050 (2060 para a Rússia e a China) aplicando diferentes variantes de acordos verdes. Mas, na prática, essa neutralidade de carbono é um engodo. Em tese, o conceito parte da ideia de que é impossível eliminar completamente todas as emissões antropogénicas de gases de efeito estufa, portanto, o restante terá que ser compensado com a remoção de carbono da atmosfera. Mas, na prática, os capitalistas e seus representantes políticos chegam à conclusão de que podem mandar para o inferno as reduções drásticas de emissões que são urgentemente necessárias, porque, um dia no futuro, um deus ex machina tecnológico removerá todos os anos da atmosfera não o remanescente, mas 5, 10, até 20 Gt de CO2. Consequentemente, embora a União Europeia e os Estados Unidos devessem reduzir suas emissões em pelo menos 65% até 2030 (para ficar abaixo de 1,5 ° C e cumprir suas responsabilidades históricas), os seus compromissos sob o quadro de neutralidade do carbono consistem apenas em reduzi-las em 55 % e em 50 ou 52%, respetivamente[15].
Subjacente a esta estratégia está um cenário completamente maluco, o chamado “reembasamento temporário” [reembasiamento temporal no original, NdT.]. Um cenário que contempla que o mercúrio suba acima de 1,5ºC e aposta que, mais tarde, a Ciência irá resfriar a Terra com “tecnologias de emissões negativas” (TNE)[16]. No entanto, 1) a maioria dessas TEN estão apenas em fase de protótipo ou teste; 2) estamos muito perto do ponto de inflexão da camada de gelo da Gronelândia, que contém gelo suficiente para elevar o nível do mar em sete metros[17]; e 3) portanto, supondo que as TEN funcionem, é bem possível que sejam implantadas após o início de um degelo massivo. Nesse caso, o dano será óbvio: “reembasamento temporário” terá causado um cataclismo permanente…
Suponhamos, no entanto, que o “reembasamento temporário” continue sendo muito limitado (o que, em qualquer caso, exigiria reduções de emissões muito mais severas do que as que estão sendo discutidas): nesse caso, cataclismo à parte, como seria o mundo sujeito a uma estratégia de crescimento com base na neutralidade de carbono?
Podemos ter uma ideia desse cenário a partir das propostas da Agência Internacional de Energia (AIE)[18]. Eles são edificantes. Na verdade, de acordo com a AIE, para chegarmos a zero emissões líquidas em 2050, precisaríamos de dobrar o número de centrais nucleares; aceitar que um quinto da energia mundial continue a vir da queima de combustíveis fósseis (que emitem 7,6 Gt de CO2 / ano); capturar e armazenar esses 7,6 Gt de CO2 no subsolo a cada dois anos em depósitos geológicos (que não podemos garantir que serão estanques); dedicar 410 milhões de hectares a monoculturas industriais de biomassa energética (isso representa um terço da área agrícola em cultivo permanente!); usar essa biomassa em vez de combustíveis fósseis em centrais de energia e outras instalações de combustão (novamente capturando o CO2 emitido e armazenando-o no subsolo); produzir hidrogênio azul a partir do carvão (novamente capturando CO2!) na esperança de que mais tarde a eletrólise industrial da água permitirá a produção de hidrogênio verde a um preço competitivo; dobrar o número de grandes barragens; e… continuar destruindo tudo ― até a Lua ― para monopolizar as terras raras essenciais para os gigantescos investimentos que serão feitos em tecnologias verdes. Quem quer viver nesse mundo?
Políticas de mercado, catástrofes sociais e ecológicas garantidas
A AIE tem um plano, outros também têm planos, mas ninguém pensa em planear. O neoliberalismo determina que o mercado deve coordenar a evolução para a neutralidade de carbono através de impostos, incentivos e um sistema generalizado de direitos de emissão permutáveis. A União Europeia está na vanguarda com o seu plano Fit for 55. Pioneira na aplicação de direitos de emissão nos seus principais setores industriais, a UE irá alargá-los aos setores da construção, agricultura e mobilidade. Quanto pior o isolamento da casa ou quanto mais poluente for o veículo, maior será o aumento do preço para o consumidor. Os alugueres baixos serão penalizados. As economias do Sul também serão penalizadas ― e por meio delas, as suas populações ― por meio de compensação de carbono e impostos fronteiriços de carbono[19]. E tudo isso por um plano que (a menos que nos enganemos a nós próprios) nem mesmo alcançará seu objetivo insuficiente, que não pode ser alcançado pelos mecanismos de mercado.
Reduzir as emissões em 52% ou 55% é melhor do que nada, dir-se-á. Mas, ao contrário do que até mesmo alguns especialistas dizem[20], planos como o Fit for 55 não estão “no caminho certo”. Do ponto de vista do clima, eles não nos colocam no caminho de ficarmos abaixo de 1,5 graus de aquecimento: há uma lacuna significativa entre a trajetória de 55% e a de redução de 65% até 2030, e essa lacuna não pode ser fechada mais tarde, pois o CO2 acumula-se na atmosfera. Socialmente, planos como o Fit for 55 também não vão na direção certa, pois supõem uma acentuação dos mecanismos coloniais de dominação, a mercantilização da natureza e as políticas neoliberais em detrimento das classes trabalhadoras. Assim, não há tempo para cometer o mínimo de erros. Para estar no “caminho certo”, temos que definir o curso certo desde o primeiro passo.
Sim, é uma simples questão de matemática
Vamos voltar à citação de Greta Thunberg no início deste artigo. A jovem ativista sueca tem toda a razão em dizer que é “uma simples questão de matemática”. Os números da equação climática são perfeitamente claros: 1º) ficar abaixo de 1,5° C requer uma redução nas emissões globais líquidas de CO2 de 59 % até 2030 e 100% até 2050[21]; 2º) 80,2 % dessas emissões são devidas à queima de combustíveis fósseis; 3º) em 2019, os combustíveis fósseis continuaram a cobrir 84,3 % das necessidades energéticas da humanidade (já se sabia há anos que 9/10 das reservas deveriam permanecer debaixo do solo, mas a exploração e a exploração continuam como se nada fosse!); 4°) Infraestruturas fósseis (minas, oleodutos, refinarias, terminais de gás, centrais elétricas, etc.), cuja construção não está a abrandar, constituem investimentos de capital a longo prazo (40, 50 anos); 5°) o valor do sistema de energia fóssil é avaliado em 1/5 do PIB mundial, mas, amortizado ou não, esse sistema deve ser descartado, pois as renováveis exigem outro.
Assim, com três bilhões de pessoas sem o básico e os 10% mais ricos da população emitindo mais de 50 % do CO2 do mundo, a “simples questão matemática” leva a uma série de implicações políticas sucessivas:
- Deixar os combustíveis fósseis no subsolo e mudar o sistema energético, ficando abaixo de 1,5 ° C e dedicando mais energia para satisfazer os direitos legítimos dos pobres é estritamente incompatível com a perpetuação da acumulação capitalista;
- A catástrofe só pode ser travada por um movimento duplo planeado, que reduz a produção mundial e a redireciona ao serviço das necessidades humanas reais e democraticamente determinadas, respeitando os limites naturais;
- Este duplo movimento passa necessariamente pela supressão da produção inútil ou prejudicial e dos transportes supérfluos, e pela expropriação dos monopólios de energia, finanças e agroindústria;
- Obviamente, os capitalistas não o querem: segundo eles, é um crime destruir o capital, até para evitar um monstruoso cataclismo humano e ecológico;
- Assim, a alternativa é dramaticamente simples: ou uma revolução permite à humanidade liquidar o capitalismo para se reapropriar das condições de produção da sua existência, ou o capitalismo liquidará milhões de inocentes para seguir seu curso bárbaro em um planeta mutilado e talvez inviável.
Essas implicações estratégicas não significam que podemos simplesmente repetir “uma solução, a revolução!”. Querem antes dizer que não há nada a esperar dos governos neoliberais, de suas COPs, do seu sistema e das suas leis. Por mais de trinta anos, os legisladores afirmaram ter compreendido a ameaça ecológica, mas não fizeram quase nada. Ou melhor, fizeram muito: políticas de austeridade, privatização, desregulamentação, deram ajudas para maximizar os lucros das multinacionais e apoio ao agronegócio, fragmentaram consciências, erodiram a solidariedade, arruinaram a biodiversidade e desfiguraram ecossistemas, ao mesmo tempo que pressionaram para a beira do abismo climático. Esses políticos nada mais são do que gestores a serviço da lógica mortífera do capital. É inútil esperar convencê-los de outra política: na melhor das hipóteses, eles só podem retroceder em função da correlação de forças.
A esperança está nas lutas
É necessária uma alternativa e, portanto, um programa reivindicativo. Não existe solução chave na mão, mas deve ser desenvolvida passo a passo, a partir do movimento propriamente dito. Para tanto, não devemos nos preocupar principalmente com o nível de consciência das classes trabalhadoras, mas em propor (o início de) uma resposta global coerente com a situação objetiva diagnosticada pela física do clima. Resumindo: precisamos de um plano para ficar abaixo de 1,5 ° C de aquecimento, deixando os fósseis no solo, sem reembasamento temporário, sem compensação de carbono e salvando a biodiversidade; um plano que exclui tecnologias perigosas como BECCS e nuclear; um plano que desenvolva a democracia, divulgue a paz, respeite a justiça social e climática (princípio das responsabilidades e capacidades diferenciadas); um plano que fortaleça o setor público; um plano que faz com que o 1% pague para produzir menos, transportar menos e dividir mais: trabalho, riqueza e recursos. Este plano deve eliminar a produção desnecessária e prejudicial, garantindo ao mesmo tempo a reconversão coletiva dos trabalhadores em atividades úteis, sem perda de salário; deve, em particular, afastar-nos do agronegócio e da indústria da carne em direção à agroecologia. É claro que este é um plano anticapitalista. Mas a sua força reside no facto de ser vital, no sentido literal da palavra: é essencial para salvar a vida.
Não adianta negar: hoje estamos longe desse plano. Vai ser preciso muita determinação e esforço para o convencimento, superando a dificuldade das derrotas sofridas pelo nosso campo social. Infelizmente, os obstáculos a serem superados são numerosos. Em tal situação, o risco de desespero em massa não pode ser descartado. Mas a estupefação melancólica não resolve nada. Como disse Gramsci, só se pode prever a luta, não seu resultado. Não esqueçamos as terríveis lições do século xx: no capitalismo, o pior é sempre possível. Portanto, devemos repetir: só a luta coletiva pode reverter a tendência e nunca é tarde para lutar. Claro, o que está perdido está perdido, e as espécies extintas não retornarão. Mas não importa o quão longe caiamos na catástrofe, a luta sempre pode reabrir o caminho da esperança.
Para lutar, devemos estar cientes não apenas dos perigos terríveis, mas também do que pode reforçar a alternativa. A simples magnitude do perigo pode fortalecer-nos, desde que vejamos nele a possibilidade de uma mudança revolucionária necessária. A surpreendente crise de legitimidade do sistema e de seus representantes reforça-nos: eles permitiram que a catástrofe ecológica crescesse sem fazer nada, embora estivessem informados. Os diagnósticos da ciência das mudanças climáticas reforçam-nos: eles argumentam objetivamente a favor de um plano como este. A crescente mobilização da juventude internacional fortalece-nos: eles levantam-se contra a destruição do mundo em que terão de viver amanhã. A nova onda feminista fortalece-nos: sua luta contra a violência difunde uma cultura de cuidado, o oposto da mercantilização dos seres humanos. A admirável resistência dos povos indígenas fortalece-nos: sua visão de mundo pode nos ajudar a estabelecer outras relações com a natureza. As lutas dos camponeses fortalecem-nos: ao dizer não ao agronegócio, eles colocam em prática modos de produção alternativos todos os dias. Podemos vencer a batalha ética e erguer montanhas.
Trata-se de articular e fazer convergir as lutas contra todas as formas de exploração e opressão e fazer circular o conhecimento que as acompanha. Essa confluência é decisiva. É a única forma de lançar um movimento tão massivo que nos permite vislumbrar novamente a possibilidade concreta de uma mudança profunda na sociedade, ao mesmo tempo ecológica, social, feminista e ética. Sem dúvida, no contexto atual, uma poderosa corrente social será essencial para que o mundo do trabalho e suas organizações rompam o compromisso produtivista com o crescimento capitalista, que os está mutilando. De qualquer forma, essa rutura é um grande desafio: não venceremos a batalha pela Terra se os produtores não se levantarem contra o produtivismo. Temos que nos preparar para este levante. Por meio de discursos e exigências que combinem vermelho e verde (em particular a redução massiva da jornada de trabalho sem perda de salário), mas isso não basta: iniciativas concretas devem ser multiplicadas para reunir e articular sindicatos de esquerda, ambientalistas, feministas, camponeses e povos indígenas.
Nesse contexto, uma atenção especial deve ser dada às lutas territoriais contra os megaprojetos produtivistas que destroem a natureza e as pessoas. É aqui que o social e o ambiental enfrentam o desafio de superar as barreiras que o capital levanta entre eles. Naomi Klein, em seu livro sobre a crise climática, propôs chamar essas lutas com o termo geral de Blockadia[22]. É no cadinho dessa Blockadia ecológica, e da sua convergência com uma Blockadia social do tipo dos Coletes Amarelos, onde surgirá uma alternativa ao rolo compressor do Capital: um projeto ecossocialista para bem-viver nesta Terra, limpando-a das manchas de capital, e a nós com ela.
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