O debate com os companheiros do MES sobre os rumos do país e do PSOL, sobre a relação com o PT e o antipetismo e o balanço da Lava Jato assume uma interessante dinâmica: à medida que o congresso do partido se aproxima, a posição dos companheiros torna-se cada vez mais radicalizada. Os companheiros agora escrevem textos “exigindo respostas”, já que “seus questionamentos não foram totalmente respondidos”. Não se pode mais compartilhar um editorial do Esquerda Online em paz no facebook sem entrar em uma polêmica interminável com os companheiros do MES. Tem-se a sensação de estar “discutindo em círculos”. Essa não é uma boa forma de fazer um debate.
O debate entre correntes não pode ser a repetição ad infinitum dosmesmos argumentos e citações simplesmente para ver “quem fica com a palavra final”. Como as posições já são evidentes, não resta aos companheiros outra alternativa a não ser levantar espantalhos: “vão entregar o PSOL nas mãos de Lula”, “estão negociando cargos no governo do PT”. É triste dizer, mas temos uma caracterização sobre esse tipo de acusação: ela é utilizada para mobilizar a base do MES para o congresso do partido, onde, além dos rumos políticos do PSOL, está em disputa também o aparato da organização. Alertamos os camaradas do MES de que há um limite que não se pode cruzar no debate político: o das calúnias.
Do último texto dos companheiros, não entendemos bem quais os questionamentos ficaram sem resposta. Em todo caso, decidimos produzir o presente artigo com o objetivo de sistematizar, pela positiva, as posições da Resistência na presente situação política. Esperamos que essa sistematização possa servir para tirar as últimas dúvidas sobre o que defendemos de fato. Em traços gerais, a política da Resistência se caracteriza pelo seguinte:
A necessidade da Frente Única
Frente Única quer dizer que as principais organizações da classe trabalhadora estão unidas para defender o proletariado contra os ataques do capital. Ora, se as organizações estão momentaneamente unidas, é exatamente porque existem em separado, levam uma vida independente. Aqui entra em cena a primeira base concreta da Frente Única: ela é fruto da divisão objetiva/subjetiva da classe. A classe trabalhadora não é homogênea nem social, nem politicamente. Isso se expressa em distintas organizações de distintas características: desde as mais radicais e revolucionárias até as mais moderadas e reformistas.
A Frente Única não foi uma necessidade até o início do século 20 porque a classe trabalhadora era muito mais homogênea. Até 1914, o movimento operário internacional, a despeito de suas diferentes correntes de pensamento, era essencialmente unificado em torno do movimento socialista da Segunda Internacional. Mas em 1914, uma parte do movimento social-democrata decidiu apoiar a matança capitalista na Primeira Guerra Mundial e isso dividiu o movimento no mundo inteiro. Ainda assim, não estava colocado o problema da Frente Única porque a classe trabalhadora, apesar da guerra, rapidamente passou à ofensiva: veio a Revolução Russa de 1917, a Revolução Alemã e a Revolução Húngara, ambas em 1919. A unidade da classe frente à ofensiva do capital não era necessária simplesmente porque não havia ofensiva do capital. Era a classe trabalhadora que detinha a iniciativa. No imediato pós-Primeira Guerra, a burguesia estava dividida, amedrontada e perdida.
Mas a partir do início dos anos 1920, as coisas mudaram de figura. A revolução socialista internacional não veio (os proletários alemão e húngaro, assim como o italiano, que protagonizara o “biênio vermelho”, foram derrotados) e o capital retomou a iniciativa e iniciou uma nova ofensiva contra a classe. Nesse momento, a recém-fundada Terceira Internacional, ou Internacional Comunista, surgida exatamente da ruptura da Segunda Internacional, percebeu que o momento mudou, abandonou a linha ofensiva e propôs algo inimaginável para os revolucionários mais radicais da época: a unidade entre as forças comunistas e social-democratas para barrar o avanço do capital. Os protestos foram imensos no seio do movimento comunista. Lenin e Trotski, adeptos da Frente Única, foram acusados de moderados, traidores e até de querer “jogar a Internacional Comunista nos braços da Segunda Internacional”.
De fato, a unidade com a social-democracia era “difícil de engolir”. Ela havia traído a Revolução Alemã e entregado os grandes revolucionários Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht nas mãos da repressão para serem assassinados. Na Rússia, havia se negado a apoiar o poder soviético e no mundo inteiro primava pelo reformismo e moderação, temperados com uma boa dose de traição e covardia. Ainda assim, Lenin e Trotski insistiam na necessidade da unidade entre essas duas forças. E estavam certos. Logo surgiu o fascismo – primeiramente na Itália, em 1922 – e a classe trabalhadora do mundo inteiro, mas principalmente a da Europa, pagou um alto preço pela ausência de unidade entre comunistas e social-democratas. E, 1933, Hitler venceu na Alemanha e em breve afogaria a Europa em sangue – não sem antes apoiar o banho de sangue particular de Franco na Espanha
Por que agora, cem anos depois, a Resistência insiste tanto na necessidade da Frente Única? Tentamos aqui recuperar uma velha e boa tradição do movimento operário: a unidade para a luta defensiva. Essa tradição foi perdida porque muitas organizações da esquerda radical se tornaram seitas fechadas em si mesmas e incapazes de um mínimo de pensamento político dialético. Nossa caracterização é de que a burguesia brasileira, a despeito de suas divisões internas, se encontra unificada na agenda de ataques econômicos e sociais à classe trabalhadora. E o próprio Bolsonaro, apesar da queda de popularidade dos últimos meses, ainda se encontra no poder, com a caneta na mão. Quem duvida disso, observe as iniciativas do governo no Congresso Nacional, agora com o apoio de Lira e do Centrão. Além disso, possuem uma legião de fanáticos dispostos a muita coisa, inclusive a construir milícias ilegais para combater o movimento social.
A classe trabalhadora sofre um poderoso ataque e precisa se unificar na defesa de seus interesses. O PT governou o país por 13 anos com um programa, cujas principais medidas progressivas foram políticas sociais compensatórias, sem reformas estruturais, e muito longe de qualquer tipo de ruptura com a ordem capitalista. Foram aplicadas muitas contrarreformas que retiraram direitos da classe trabalhadora, como todos nós sabemos e contra as quais todos nós lutamos na oposição de esquerda aos Governos Lula e Dilma. Entretanto, oposição de esquerda não se confunde com oposição de direita. Lembremos também que o PT mantém ainda uma ampla base na classe trabalhadora, no movimento estudantil, nos movimentos feminista, antirracista, no movimento LGBTQIA+ e em vários outros movimentos sociais. Por isso, faz todo o sentido chamar o PT à unidade para lutar contra os ataques de Bolsonaro e do capital.
O PT e a Frente Única
A direção do PT tem se mostrado extremamente resistente à conformação de uma verdadeira Frente Única no Brasil. É compreensível. O PT não é um partido que reivindica a construção do socialismo como o PSOL. A estratégia de sua direção é o desgaste de Bolsonaro até as eleições de 2022. Por isso, quanto mais eles puderem “se manter longe de confusão”, tanto melhor para eles. Isso quer dizer que os chamados à Frente Única de nossa parte devem cessar? Devemos desistir? De forma alguma. Como dissemos mais acima, o PT não é somente a sua direção. É também a sua base social. E a sua base social está disposta a resistir. Esse é um fato inequívoco se olharmos a participação da militância do PT nos atos contra Bolsonaro.
Seria muito fácil e confortável para a direção do PT se o PSOL decidisse “seguir seu próprio caminho” e abrisse mão do chamado à Frente Única. Isso é tudo que a direção do PT quer: que nós paremos de importuná-la com a ideia de atos, assembleias e comitês. Seus dirigentes querem esperar até 2022 e até lá construir uma unidade policlassista em torno da candidatura de Lula (já falaremos disso).
Mas a verdade é que é impossível resistir aos ataques do capital organizando somente uma parte minoritária da classe. A Frente Única precisa do PT, ainda que a direção do PT não precise e nem queira a Frente Única. Nosso dever é fazer o chamado paciente a essa unidade, nos dirigindo tanto à base, quanto à cúpula do PT, já que a primeira dificilmente vai se mover com força sem o aval de sua direção – aliás, se as bases petistas se movessem apenas por nosso chamados já não seriam mais propriamente “bases petistas”, e a própria questão da frente única talvez não estivesse assim colocada.
A composição da Frente Única seria uma vitória gigantesca da classe trabalhadora como um todo e uma correspondente derrota para a posição eleitoralista da direção do PT. Mas ela só acontecerá se derrotarmos a direção do PT em sua estratégia. Nisso não há nada de anormal. Foi assim com Lenin e Trotski em 1921. É assim no Brasil de 2021. A social-democracia do início do século não era menos reformista do que a direção do PT e mesmo assim a Terceira Internacional insistia na unidade. Isso só quer dizer que a luta pela Frente Única é exatamente isso: uma luta. Seus resultados não estão garantidos a priori. Se a direção do PT estivesse naturalmente inclinada à Frente Única, isso seria maravilhoso para nós e para a classe. Mas isso é o desejo, e não a realidade.. A Resistência propõe ao PSOL travar uma luta pela Frente Única. Em nenhum momento dissemos que a Frente Única está dada ou será fácil, exatamente pela negativa da cúpula do PT.
Aqueles que propõe abandonar a ideia da Frente Única porque “a direção do PT não quer” (fato inegável) acabam abrindo mão exatamente do sentido da política: a luta.
A formação e consolidação do Comitê Fora Bolsonaro, que reúne a Frente Povo Sem Medo, a Frente Brasil Popular, a Coalizão Negra por Direitos e diversos outros movimentos, foi o mais próximo que chegamos da Frente Única. Por isso, nosso papel deve ser fortalecer esta unidade, organizar reuniões estaduais e municipais, ser um instrumento útil para que ela seja cada vez mais orgânica. Seria impossível fazer os atos sem esta unidade. Basta comparar como foram as mobilizações unitárias e as outras mobilizações, organizadas em paralelo pelo MES e seus aliados.
A Frente Única e a Frente de Esquerda nas eleições
Mas a política da Resistência não se encerra com o chamado à luta defensiva. Vemos com alegria o fato de que milhões de trabalhadores (alguns até que votaram em Bolsonaro) olham ao seu redor e se perguntam: “Bolsonaro não deu certo. Quem deve governar?”. Mas nós sabemos que, em sua esmagadora maioria, esses trabalhadores não olham para o PSOL como uma alternativa de poder neste momento. Olham para Lula e o PT. É aqui que a política da Resistência dá um passo a mais e diz aos trabalhadores: “Vocês querem derrotar Bolsonaro. Nós do PSOL também. Vocês acham que Lula é a única figura capaz de fazê-lo. Nós não vamos atrapalhar dividindo a esquerda, mas alertamos: se Lula repetir a fórmula de 2002 e construir uma frente com partidos de direita, isso só vai abrir o caminho para a volta da direita ao poder, ainda que se derrote Bolsonaro em 2022. Façamos o seguinte: lutemos juntos por uma Frente de Esquerda nas eleições. Uma frente que se oponha frontalmente a todos os ataques sociais e econômicos que sofre a nossa classe, uma frente com um programa de esquerda, de reversão radical dos rumos da sociedade brasileira. Essa frente deve englobar apenas os partidos da classe trabalhadora, para que não repitamos os erros dos governos petistas”. Sinceramente, é preciso estar muito contaminado com o antipetismo para considerar esse chamado tão singelo uma “traição ao PSOL”. Trata-se de simples política, ao invés de proclamação abstrata de princípios e verdades.
“Mas o PT está articulando uma frente com os partidos tradicionais, aos moldes de 2002”, dizem os companheiros. E alguém achou que seria diferente? A Frente de Esquerda, assim como a Frente Única, só ocorrerá com a derrota da direção do PT. Isso é evidente e não deveria ser motivo de polêmica entre pessoas sérias. A questão é: o que propõem os contrários à Frente de Esquerda? Muito simples: o caminho livre para a direção do PT. E o que é decisivamente pior: entregar todo esse movimento extremamente progressivo, pela base, nas mãos da direção do PT. Lula poderá arrastar tranquilamente para a colaboração de classes um setor que hoje é aberto ao discurso do PSOL e que pode ser uma força decisiva para nossa organização, agora, no ano que vem e depois. Os contrários à Frente de Esquerda propõem uma “terceira via”, sendo que o país estará completamente polarizado em 2022, praticamente sem espaço para o debate político por fora da oposição “Lula x Bolsonaro”.
Nós da Resistência propomos que o PSOL seja parte desse movimento progressivo. Todos nós, marxistas-leninistas-
O que acontecerá com o PSOL?
O reconhecimento de que a experiência das massas retrocedeu não significa questionar o papel do PSOL, e muito menos a sua existência, como querem fazer acreditar os nossos críticos “de esquerda”. O PSOL se construiu no momento certo da história e cumpre um papel decisivo, estratégico, para a constituição de uma contra-hegemonia socialista e radical no Brasil. Mas o mérito do PSOL não reside unicamente em que lutou contra o PT. O mérito do PSOL reside também em que se posicionou corretamente diante de um dos eventos mais importantes da década: o golpe que destituiu Dilma Rousseff em 2016. O PSOL poderia ter “surfado a onda” lavajatista, mas preferiu ter uma posição de princípio contra o golpe da direita. E acreditem, não seria difícil surfar aquela onda. Muita gente sincera estava irritada com o PT, era fácil chamar Lula de ladrão e concordar com o impeachment. Mas o PSOL não fez isso. O PSOL reconheceu o movimento dos amarelinhos como um movimento essencialmente reacionário e se posicionou contra o golpe. Isso lhe rendeu um enorme respeito político por parte das próprias bases populares petistas e demais parcelas da militância, o que se expressa até hoje no aumento constante do número de filiados e no fortalecimento de suas posições parlamentares.
A mesma coisa a Resistência propõe agora: manter o PSOL como uma força independente, tal como sempre foi. Ao mesmo tempo, reconhecer que a situação política do país exige uma relocalização temporária em relação ao maior partido de massas de esquerda do Brasil: o PT.
O que propõem nossos críticos “de esquerda”? Isolar o PSOL, que o PSOL fale para si mesmo, que pregue para os já convertidos. Isso representará um retrocesso na localização política do PSOL que muito em breve trará consequências em termos de filiados e votação. O espaço se reduzirá. O PSOL será reconhecido como mais um partido marginal da esquerda, incapaz de dialogar com os sentimentos sinceros de unidade hoje predominantes em nossa base social.
Conclusão: localizar corretamente o PSOL diante da realidade concreta
Há apenas um único ponto de nosso último artigo polêmico que gostaríamos de insistir: a necessidade de localizar corretamente o PSOL diante dos fatos concretos da realidade, e não diante do mundo e do Brasil que nós gostaríamos que existisse. Há pressão do PT sobre o PSOL? Sem dúvida! E por que há essa pressão? Exatamente porque a realidade mudou! No auge de seu poder de Estado, ou seja, quando governava, o PT não exercia nem um décimo da pressão que exerce hoje sobre o nosso partido. Por que isso é assim? Porque mudou a relação do PT com as massas. O PT foi derrubado por um golpe e passou à oposição. Isso não muda tudo, mas muda muita coisa. Não se relocalizar diante desse fato do tamanho de um elefante é negar a própria política. É proclamar princípios e caracterizações, que podem até já terem estado corretos historicamente, mas, como não se ajustam à realidade histórica presente, tornam-se politicamente errados. Em nossa opinião, esse é o mal que acomete nossos companheiros do MES: confundem as leis da história, dialéticas por excelência, com normas e preceitos atemporais, portanto abstratos. Guiados metafisicamente por imperativos categóricos, acabam por se negar a observar os imperativos concretos da luta de classes, se perdendo por completo na arena da luta política pelo poder. Com isso, esses companheiros ameaçam transformar nosso partido em uma seita turbinada com alguns deputados e vereadores, mas ainda assim uma seita. De nossa parte, defendemos um partido que luta, faz alianças temporárias, avança, recua, enfim, que é vivo e atuante. E que importa, que faz diferença. Que não seja mais uma voz no coro das seitas antipetistas.
Esta é, em grandes traços, a atual política da Resistência para o PSOL.
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