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Lázaro: operação policial desastrosa confirma uma morte anunciada

Lázaro: operação policial desastrosa confirma uma morte anunciada

Em entrevista à TV Bandeirantes, o ex-secretário nacional de Segurança Pública coronel José Vicente Silva afirmou que a operação policial de busca a Lázaro Barbosa pode ter custado mais de 3 milhões de reais. Ela envolveu 270 policiais, 4 helicópteros, dezenas de viaturas, cães farejadores, drones com visão térmica, rádios especiais com alcance de 30 quilômetros e antenas amplificadoras de sinal. O resultado foi mais um corpo negro morto com 38 furos de bala que não poderá contar quem são os mandantes dos crimes. Sejamos sinceros: a operação falhou.

Uma política criminal falida resulta em Lázaros

Lázaro tinha extensa ficha criminal, era um sujeito perigoso e disso não tenho dúvidas. Cometeu roubos, estupros e assassinatos cruéis na Bahia e em Goiás. Solidarizo-me com as vítimas e seus parentes, porém, nada disso consegue afastar a ideia de que seu caso é exemplar para concluirmos sobre a falência do modelo de segurança pública do Estado brasileiro e, mais especificamente, goiano.

Não falo da incompetência em prender e matar pessoas, pois nisso somos campeões. O Brasil tem a terceira população carcerária mundial e um índice alarmante de mortes pelas mãos de policiais. Ao contrário, refiro-me à insistência e até mesmo idolatria por essa política criminal com ares de justiçamento ao estilo velho oeste, que hoje encontra seu maior defensor no genocida que ocupa a principal cadeira no Palácio do Planalto. 

Esse modelo faliu, não há dúvidas estatísticas quanto a isso. Segundo o Anuário de Segurança Pública, em 2019 Goiás era o oitavo lugar entre os estados que possuíam mais presos, com quase 26 mil atrás das grades. O mesmo estudo aponta que ocupava a terceira posição em mortes causadas por policiais. A contradição é que houve 28 mil homicídios de 2008 a 2018 (Atlas da Violência do IPEA, 2020), ou seja, prender e matar bandidos indiscriminadamente não deu resultado e isso é evidente. A tolerância zero gerou criminalidade mil.

Entretanto, é só aparecer um Lázaro da vida para que ressuscitem discursos contraproducentes e repugnantes de apologia a prisões, armas, pena de morte, mais policiamento e militarização. E nesse “olho por olho, dente por dente” do Brasil, todos vamos ficando cegos e banguelas.

A crônica de uma morte anunciada há 14 anos atrás

Lázaro Barbosa de Sousa nasceu em Barra do Mendes (BA), a 534 quilômetros de Salvador, e foi criado na roça em meio a 13 irmãos. Um deles, o caçula Deusdete, foi morto num acerto de contas aos 21 anos, pois também era envolvido com roubos e homicídios. A família sempre foi muito pobre.

Os familiares descrevem Lázaro como uma criança carinhosa, que frequentava a igreja. Depois de cometer alguns crimes, tentou se reabilitar, mas não conseguiu seguir este caminho. Tinha problemas com drogas e bebida. Trabalhou como caseiro e depois voltou aos delitos. De um relacionamento anterior, concebeu um filho que hoje tem 4 anos, e do último se originou uma filha, que está com 2. 

Em 2021, aos 32 anos, cometeu seus crimes mais graves e se tornou famoso, mas os primeiros relatos de seu envolvimento com ilegalidades são de 2007, recém-saído da juventude, ainda na Bahia. Nos 14 anos seguintes viveu uma rotina de registros criminais e fugas de prisões. 

Alguns, que apenas papagaiam o discurso tosco e fácil de Bolsonaro, do CPF cancelado e outras barbaridades, dizem que deveria ter sido morto pela polícia logo jovem ou nunca ter saído da cadeia, mas nada me tira da cabeça que se o país tivesse investido aqueles 3 milhões de reais da operação policial em alguma tentativa de reabilitação e tratamento durante esses 14 anos (ou mesmo antes de ter entrado para o crime) havia uma chance de que muitas vidas fossem poupadas, inclusive a dele. 

E que esse dinheiro teria sido muito bem gasto, pois além das pessoas que matou e agrediu, as vidas de sua esposa, filhos e demais familiares não estariam devastadas, assim como a da comunidade goiana.

Na “batalha entre o bem e o mal”, a mídia racista torceu pela briga

Os 20 dias de procura por Lázaro foram uma jornada de aberrações midiáticas em sequência, um verdadeiro show de sensacionalismo e horror, a partir da ultrapassada narrativa da “batalha do bem contra o mal”. O personagem construído foi o de um serial-killer selvagem ligado à bruxaria e o satanismo, misturando-se aí um discurso contra religiões de matriz africana. 

É normal ver veículos como Jornal do Commercio, Metrópoles e Jornal de Brasília divulgando baboseiras sem sentido para vender jornais, mas outros, que, teoricamente, trabalham com mais profissionalismo e verificam suas fontes como o G1, o UOL e o Nexo embarcaram na mesma jangada, divulgando manchetes e fotos dessa história. Depois tiveram que se retratar. Até mesmo a revista/portal adolescente Capricho, que entende tanto de satanismo quanto de jornalismo policial, soltou essa fake news.

Acontece que esse “erro” da imprensa não ficou de graça para os praticantes dessas religiões, que nada têm de satanistas. Em Águas Lindas, Girassol, Cocalzinho e Edilândia, policiais invadiram pelo menos dez casas religiosas com truculência, apontaram armas e depredaram altares. O pai de santo Ricardo de Óxossi denunciou que houve agressões físicas e ofensas a algumas pessoas. 

Ao Correio Braziliense, o pai de santo André Vicente, de 81 anos, afirmou que as fotos de símbolos religiosos que circularam como sendo da casa de Lázaro são, na verdade, de um terreiro que o religioso comanda. O idoso foi conduzido ao IML para apuração de agressão policial em exame de corpo de delito. Fica a pergunta: será que a imprensa não verificou as fontes das fotos ou não quis verificar?

A tentativa de associar candomblé e umbanda com satanismo, sacrifícios humanos e crimes graves tem origem no racismo e ganhou força com o boom das igrejas neopentecostais na década de 90. Num país semiletrado e cristão como o Brasil, crie um personagem negro serial-killer macumbeiro que se esconde no mato e desafia a polícia e pronto! Você tem aí uma bela história que vai render muito dinheiro e circular massivamente no grupo de zap da família. 

A realidade, no entanto, é outra. De fato, Lázaro foi um assassino cruel e cometeu outros crimes muito graves, mas candomblé e umbanda nada têm a ver com satanismo, sacrifícios, assassinatos e estupros, e há muitas dúvidas sobre a real motivação para os crimes cometidos. As suspeitas de que ele tenha sido ajudado por fazendeiros indicam a probabilidade de que havia mandantes interessados em alguma vantagem econômica como a desvalorização imobiliária das terras da região. Infelizmente, a operação da polícia resultou na morte do único que poderia realmente contar toda a história.

Lázaro: demônio, jagunço ou apenas um meme de whatsapp?

Geraldo Luís, uma das maiores excrescências da TV atual ao lado de Sikêra Jr., Datena e outros abutres do telejornalismo, leu uma carta supostamente assinada por Lázaro que foi encontrada em uma das casas por onde ele passou. No papel, garranchos questionavam a versão dos fatos apresentada pelo âncora do Balanço Geral.

A cena era lamentável. Geraldo lia trechos dessa carta que nem havia sido confirmada como escrita pelo homem procurado pela polícia de Goiás. O âncora iniciou uma espécie de lição de moral na frente dos telespectadores saturada de menções a Deus, ao trabalho e à família. 

No ápice desse teatro ridículo, o apresentador lembrou a própria infância quando perdeu o pai aos dois anos na véspera do Natal. Fazia isso olhando várias vezes para o lado, provavelmente buscando saber como estava a audiência. A cena é tão constrangedora que se Datena fosse adolescente chamaria Geraldo de “cringe”, porém mais constrangedor é saber que milhões de telespectadores caíam nessa encenação de quinta categoria.

Assim como Geraldo, todos tiraram uma casquinha do homem morto na segunda-feira (28). A perseguição policial ganhou tanta proporção que secundarizou temas como a CPI da covid-19 e a Copa América. Na manhã de sua execução, a hashtag #lazaro chegou ao primeiro lugar dos trending topics com 370 mil tweets. Portais internacionais como Le Figaro, El País e BBC noticiaram sua morte. Os programas policiais bateram picos de audiência.

Nos 20 dias de procura, uma histeria coletiva tomou conta dos aplicativos de conversa e das redes sociais. Milhares de memes circularam com sua foto e dezenas de páginas de Instagram e Facebook surgiram com seu nome. Até a entrega do superpedido de impeachment de hoje, o assunto Lázaro era o mais buscado no G1. Sua figura já se tornou um ícone pop no país, assim como o Bandido da Luz Vermelha e o Maníaco do Parque. 

A lição que podemos extrair, muito diferente das idiotices vomitadas por Geraldo Luís, é que a espetacularização do caso e a criação desse personagem servem para encher o bolso de empresários de comunicação e a urna com votos em políticos que só sabem propagar discursos de ódio e nada resolvem em termos de política social e criminal. É uma pena que seja assim.

*Stephano Azzi Neto é jurista e militante da Resistência/PSOL

Em entrevista à TV Bandeirantes, o ex-secretário nacional de Segurança Pública coronel José Vicente Silva afirmou que a operação policial de busca a Lázaro Barbosa pode ter custado mais de 3 milhões de reais. Ela envolveu 270 policiais, 4 helicópteros, dezenas de viaturas, cães farejadores, drones com visão térmica, rádios especiais com alcance de 30 quilômetros e antenas amplificadoras de sinal. O resultado foi mais um corpo negro morto com 38 furos de bala que não poderá contar quem são os mandantes dos crimes. Sejamos sinceros: a operação falhou.

Uma política criminal falida resulta em Lázaros

Lázaro tinha extensa ficha criminal, era um sujeito perigoso e disso não tenho dúvidas. Cometeu roubos, estupros e assassinatos cruéis na Bahia e em Goiás. Solidarizo-me com as vítimas e seus parentes, porém, nada disso consegue afastar a ideia de que seu caso é exemplar para concluirmos sobre a falência do modelo de segurança pública do Estado brasileiro e, mais especificamente, goiano.

Não falo da incompetência em prender e matar pessoas, pois nisso somos campeões. O Brasil tem a terceira população carcerária mundial e um índice alarmante de mortes pelas mãos de policiais. Ao contrário, refiro-me à insistência e até mesmo idolatria por essa política criminal com ares de justiçamento ao estilo velho oeste, que hoje encontra seu maior defensor no genocida que ocupa a principal cadeira no Palácio do Planalto. 

Esse modelo faliu, não há dúvidas estatísticas quanto a isso. Segundo o Anuário de Segurança Pública, em 2019 Goiás era o oitavo lugar entre os estados que possuíam mais presos, com quase 26 mil atrás das grades. O mesmo estudo aponta que ocupava a terceira posição em mortes causadas por policiais. A contradição é que houve 28 mil homicídios de 2008 a 2018 (Atlas da Violência do IPEA, 2020), ou seja, prender e matar bandidos indiscriminadamente não deu resultado e isso é evidente. A tolerância zero gerou criminalidade mil.

Entretanto, é só aparecer um Lázaro da vida para que ressuscitem discursos contraproducentes e repugnantes de apologia a prisões, armas, pena de morte, mais policiamento e militarização. E nesse “olho por olho, dente por dente” do Brasil, todos vamos ficando cegos e banguelas.

A crônica de uma morte anunciada há 14 anos atrás

Lázaro Barbosa de Sousa nasceu em Barra do Mendes (BA), a 534 quilômetros de Salvador, e foi criado na roça em meio a 13 irmãos. Um deles, o caçula Deusdete, foi morto num acerto de contas aos 21 anos, pois também era envolvido com roubos e homicídios. A família sempre foi muito pobre.

Os familiares descrevem Lázaro como uma criança carinhosa, que frequentava a igreja. Depois de cometer alguns crimes, tentou se reabilitar, mas não conseguiu seguir este caminho. Tinha problemas com drogas e bebida. Trabalhou como caseiro e depois voltou aos delitos. De um relacionamento anterior, concebeu um filho que hoje tem 4 anos, e do último se originou uma filha, que está com 2. 

Em 2021, aos 32 anos, cometeu seus crimes mais graves e se tornou famoso, mas os primeiros relatos de seu envolvimento com ilegalidades são de 2007, recém-saído da juventude, ainda na Bahia. Nos 14 anos seguintes viveu uma rotina de registros criminais e fugas de prisões. 

Alguns, que apenas papagaiam o discurso tosco e fácil de Bolsonaro, do CPF cancelado e outras barbaridades, dizem que deveria ter sido morto pela polícia logo jovem ou nunca ter saído da cadeia, mas nada me tira da cabeça que se o país tivesse investido aqueles 3 milhões de reais da operação policial em alguma tentativa de reabilitação e tratamento durante esses 14 anos (ou mesmo antes de ter entrado para o crime) havia uma chance de que muitas vidas fossem poupadas, inclusive a dele. 

E que esse dinheiro teria sido muito bem gasto, pois além das pessoas que matou e agrediu, as vidas de sua esposa, filhos e demais familiares não estariam devastadas, assim como a da comunidade goiana.

Na “batalha entre o bem e o mal”, a mídia racista torceu pela briga

Os 20 dias de procura por Lázaro foram uma jornada de aberrações midiáticas em sequência, um verdadeiro show de sensacionalismo e horror, a partir da ultrapassada narrativa da “batalha do bem contra o mal”. O personagem construído foi o de um serial-killer selvagem ligado à bruxaria e o satanismo, misturando-se aí um discurso contra religiões de matriz africana. 

É normal ver veículos como Jornal do Commercio, Metrópoles e Jornal de Brasília divulgando baboseiras sem sentido para vender jornais, mas outros, que, teoricamente, trabalham com mais profissionalismo e verificam suas fontes como o G1, o UOL e o Nexo embarcaram na mesma jangada, divulgando manchetes e fotos dessa história. Depois tiveram que se retratar. Até mesmo a revista/portal adolescente Capricho, que entende tanto de satanismo quanto de jornalismo policial, soltou essa fake news.

Acontece que esse “erro” da imprensa não ficou de graça para os praticantes dessas religiões, que nada têm de satanistas. Em Águas Lindas, Girassol, Cocalzinho e Edilândia, policiais invadiram pelo menos dez casas religiosas com truculência, apontaram armas e depredaram altares. O pai de santo Ricardo de Óxossi denunciou que houve agressões físicas e ofensas a algumas pessoas. 

Ao Correio Braziliense, o pai de santo André Vicente, de 81 anos, afirmou que as fotos de símbolos religiosos que circularam como sendo da casa de Lázaro são, na verdade, de um terreiro que o religioso comanda. O idoso foi conduzido ao IML para apuração de agressão policial em exame de corpo de delito. Fica a pergunta: será que a imprensa não verificou as fontes das fotos ou não quis verificar?

A tentativa de associar candomblé e umbanda com satanismo, sacrifícios humanos e crimes graves tem origem no racismo e ganhou força com o boom das igrejas neopentecostais na década de 90. Num país semiletrado e cristão como o Brasil, crie um personagem negro serial-killer macumbeiro que se esconde no mato e desafia a polícia e pronto! Você tem aí uma bela história que vai render muito dinheiro e circular massivamente no grupo de zap da família. 

A realidade, no entanto, é outra. De fato, Lázaro foi um assassino cruel e cometeu outros crimes muito graves, mas candomblé e umbanda nada têm a ver com satanismo, sacrifícios, assassinatos e estupros, e há muitas dúvidas sobre a real motivação para os crimes cometidos. As suspeitas de que ele tenha sido ajudado por fazendeiros indicam a probabilidade de que havia mandantes interessados em alguma vantagem econômica como a desvalorização imobiliária das terras da região. Infelizmente, a operação da polícia resultou na morte do único que poderia realmente contar toda a história.

Lázaro: demônio, jagunço ou apenas um meme de whatsapp?

Geraldo Luís, uma das maiores excrescências da TV atual ao lado de Sikêra Jr., Datena e outros abutres do telejornalismo, leu uma carta supostamente assinada por Lázaro que foi encontrada em uma das casas por onde ele passou. No papel, garranchos questionavam a versão dos fatos apresentada pelo âncora do Balanço Geral.

A cena era lamentável. Geraldo lia trechos dessa carta que nem havia sido confirmada como escrita pelo homem procurado pela polícia de Goiás. O âncora iniciou uma espécie de lição de moral na frente dos telespectadores saturada de menções a Deus, ao trabalho e à família. 

No ápice desse teatro ridículo, o apresentador lembrou a própria infância quando perdeu o pai aos dois anos na véspera do Natal. Fazia isso olhando várias vezes para o lado, provavelmente buscando saber como estava a audiência. A cena é tão constrangedora que se Datena fosse adolescente chamaria Geraldo de “cringe”, porém mais constrangedor é saber que milhões de telespectadores caíam nessa encenação de quinta categoria.

Assim como Geraldo, todos tiraram uma casquinha do homem morto na segunda-feira (28). A perseguição policial ganhou tanta proporção que secundarizou temas como a CPI da covid-19 e a Copa América. Na manhã de sua execução, a hashtag #lazaro chegou ao primeiro lugar dos trending topics com 370 mil tweets. Portais internacionais como Le Figaro, El País e BBC noticiaram sua morte. Os programas policiais bateram picos de audiência.

Nos 20 dias de procura, uma histeria coletiva tomou conta dos aplicativos de conversa e das redes sociais. Milhares de memes circularam com sua foto e dezenas de páginas de Instagram e Facebook surgiram com seu nome. Até a entrega do superpedido de impeachment de hoje, o assunto Lázaro era o mais buscado no G1. Sua figura já se tornou um ícone pop no país, assim como o Bandido da Luz Vermelha e o Maníaco do Parque. 

A lição que podemos extrair, muito diferente das idiotices vomitadas por Geraldo Luís, é que a espetacularização do caso e a criação desse personagem servem para encher o bolso de empresários de comunicação e a urna com votos em políticos que só sabem propagar discursos de ódio e nada resolvem em termos de política social e criminal. É uma pena que seja assim.

*Stephano Azzi Neto é jurista e militante da Resistência/PSOL

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