UPA Rio das Ostras. Ela não queria ter de estar ali. Por razão da pandemia, tem se mantido no isolamento máximo possível. Mas há momentos em que o risco é necessário. Mesmo assim, seguiu intransigentemente todos os seus próprios protocolos. Mesmo com o dinheiro faltando, optou pelo transporte individual, mais um pequeno sacrifício. Entrou com certa dificuldade de mobilidade, abriu os vidros e higienizou as mãos. A máscara dupla no rosto, a máscara extra na bolsa.
O caminho foi assim: o rosto ao vento. O olhar para fora era entristecido. A beleza de outrora era sombria, ver as crianças brincando na rua com sua inocência, soltando pipa, as linhas com cerol, os pescoços em risco. O cabelo emaranhado, o rosto sujo. A frente dos bares mesas cheias de homens de meia idade, e alguns já avançados na idade e no risco. As igrejas abarrotadas, o amor à vida, a Deus, a hipocrisia. O carro pega a avenida. Estranhamente a cidade está pulsando, nada está ocorrendo. Nem parece haver crise.
Busca não puxar assunto, mas o motorista insiste em iniciar alguma conversa em que possa defender o governo baseado em informações pré-fabricadas, a tal moeda que gruda no braço por conta da vacina. Ignora-o e o enunciado no vácuo gera o constrangimento necessário para reinar o silêncio.
Chega à Unidade de Saúde, paga o motorista com as notas que possui, que estão há dias em local reservado para que o tempo leve consigo suas impurezas. Fecha a porta, higieniza a mão. A primeira visão: a parte externa da UPA está lotada, o preâmbulo do cenário interno. Portas fechadas, janelas fechadas. Que medidas então estão sendo tomadas?
Não há mais a zona de desinfecção com pulverizador que havia sido instalada no início da pandemia, quando morriam 300 pessoas por dia. Agora que a situação está estável, as bandeiras melhorando de vermelha para laranja, amarela, e morrendo 2.000 diariamente.
Entra na UPA. Abre a maçaneta, higieniza as mãos. As cadeiras pregadas umas às outras impedem o distanciamento. Todas estão ocupadas, paulatinamente as cadeiras dançam, quem estava em pé ocupa a mais próxima e se sente com sorte de sofrer agora com encosto. Não há medida, há conformidade de óbitos, enquanto não há óbito, depois, há uma tristeza infinita, inexplicável e há um sentimento de culpa enfiado com força no passado para que não seja necessário lidar com a responsabilidade que cada um tem sobre a morte.
O primeiro atendimento é o burocrático: cinco minutos de risco para o atendente que pegou os documentos de sua mão preencher a ficha. Ele não higienizou as próprias mãos depois de devolver os documentos. Ela os higieniza, guarda na bolsa. E prefere manter sua dor de pé que disputar a vaga da cadeira. Ali, abaixo de bocas e narizes é mais perigoso.
O segundo atendimento é a triagem. Uma hora de risco para decidirem se o seu estado é grave, moderado ou leve. O médico utiliza os aparelhos que utilizou nos outros pacientes e que não passou por qualquer processo de higienização entre as consultas. A depender da cor que marcarem o seu cartão, a espera para o terceiro atendimento, o clínico geral, ganhará mais uma, duas ou três horas de risco. Era amarela.
Em todo momento, a busca pela autodefesa a faz preferir sempre o ambiente externo. Mas é obrigada a ficar voltando ao salão para verificar se foi chamada, ou ficar próxima à porta. Lá fora há menos gente e o ambiente é aberto. Mas lá também as pessoas se sentem mais livres para retirar a máscara para assoar o nariz ou falar no celular. Agora é uma “doutora” de traje branco quem busca o ambiente externo para matar a saudade de algum familiar, retira a máscara para poder conversar melhor, a chamada é de vídeo e a outra pessoa deve querer ver seu rosto. Ela se sente em casa naquele ambiente. Por isto, anda de um lado pro outro falando com o ente querido, enquanto espalha micropartículas de saliva sabe-se lá com que microrganismos.
Ela pensa em desistir, em voltar para casa. Mas já se passaram duas horas de risco e a dor não passa. Gritam seu nome. Caminha em direção ao som da voz que parece cansada. Sempre olhando para a ficha, o médico.
_Oi! O que você tem.
_Não sei doutor, uma dor aqui. – O médico não olha. E parece perguntar em afirmativas.
_Está sentindo isso há quanto tempo.
_Acho que três ou quatro dias. – O médico anota.
_Está tomando que remédio.
_Este aqui. – O médico não olha, mas anota.
_Você vai fazer exame de sangue que vai sair em três horas e vai tomar este medicamento.
_Doutor, mas o que é? O que pode ser?
_ Não sei! Só posso saber depois do exame. O médico anota.
Ela olha os rabiscos indecifráveis e tenta lê-los inutilmente. São feitos assim para que pessoas normais não possam ler. Depois enfrentará uma hora de risco na fila do medicamento e do exame, três horas de risco para o exame sair. E quando isto ocorrer, o plantão do médico terá acabado. Outro médico irá perguntar enquanto anota:
_Então você está com dor. Onde? – Ela mostra, ele não olha e anota.
_ Eu vou passar aqui este medicamento e um encaminhamento para outro médico, um especialista.
_Mas Doutor, o que eu tenho?
_ Isso só um especialista pode dizer.
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