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BRASIL

A reforma do ensino médio em São Paulo e a pedagogia da ignorância

Quando você não conhece todas as possibilidades que a vida oferece se contenta com o que tem

Gilberto Souza*, de São Paulo, SP
Divulgação / Gov. SP

Educação em demasia é sinal de descontentamento
em algumas categoria profissionais
(Harry Braverman – Trabalho e capital monopolista)

Recentemente o governador do estado de São Paulo, João Dória, anunciou com toda pompa e circunstância, pela palavra de seu lugar-tenente o secretário de educação Rossiele Soares, a implantação da reforma do ensino médio na rede estadual de São Paulo.

A dita reforma flexibiliza o currículo do ensino médio na rede pública paulista, reduzindo a carga horária de formação geral e introduzindo os Itinerários Formativos (IF’s) compostos por Unidades Curriculares (UC’s) de aprofundamento curricular, cada uma delas com um grupo de disciplinas – componentes curriculares – de duração semestral – a UC e as disciplinas.

Entram também como parte dos itinerários formativos as disciplinas do INOVA – duas eletivas, duas de projeto de vida e uma de tecnologia – com cinco horas/aula semanais, ficando a nova grade curricular do “novo ensino médio” com uma parte de formação geral e outra do itinerário formativo – composto pelas disciplinas do INOVA e pelas unidades curriculares do aprofundamento curricular (duas unidades no segundo ano do EM e quatro no terceiro ano).

A carga horária de formação geral será drasticamente reduzida; o primeiro ano continuará com as trinta horas semanais mais cinco horas aula do INOVA, já no segundo ano começa o corte de carga horária com vinte horas (corte de um terço na carga horária) de formação geral por semana mais quinze horas aula do itinerário formativo (cinco horas do INOVA e dez das UC1 e UC2 do aproveitamento curricular).

No terceiro ano do EM a amputação de carga horária de formação geral chega ao paroxismo, são dez horas – isso mesmo! – de formação geral em oposição às vinte e cinco horas de itinerário formativo – cinco do INOVA e vinte das Unidades Curriculares do aprofundamento curricular com as UC3, UC4, UC5, UC6.

A título de comparação para termos uma ideia do desmonte; hoje o EM possui 3.600 horas no total de formação geral (1.200 horas em cada ano), o “novo” EM do governo estadual prevê 2.400 horas no total (1.200h no primeiro ano, 800h no segundo ano e 400h no terceiro ano), segundo uma das grades curriculares divulgadas.

As escolas devem escolher os itinerários formativos que serão ofertados a seus alunos – sendo cada um desses itinerários composto por unidades curriculares específicas mais as cinco disciplinas do INOVA – cabendo aos próprios alunos e seus responsáveis escolherem seu itinerário dentre os itinerários propostos pela escola.

A primeira conclusão importante é a redução drástica da formação geral do aluno – razão de ser do ensino médio – e com o despautério de apenas duas disciplinas obrigatórias em todas das séries desse “novo” ensino médio – português e matemática (de acordo com artigo 35-A da LDB).

Sendo que a anunciada ampliação de carga horária para 1.400 horas/aula anuais não deve deixar ninguém muito feliz – alunos e professores – pois as escolas poderão recorrer ao ensino a distância – o famigerado EAD – ou ainda escolher entre outras duas possibilidades: estudos orientados – uma espécie de EAD sem internet – ou aulas presencias em período diverso daquele onde o aluno estuda – o que é praticamente impossível para os jovens da periferia que geralmente têm obrigações relativas ao sustento de suas famílias além da escola.

As justificativas ou premissas utilizadas pelo governo estadual para justificar uma mudança tão drástica na última etapa da educação básica, dedicada justamente a formação geral do educando, são que o desemprego na juventude é maior que nos outros segmentos da população – sendo em São Paulo maior que no restante do país – e que muitos jovens não concluem o ensino médio – no país e no estado.

A solução, do ponto de vista do governo de João Dória, é utilizar o ensino médio para qualificação profissional aumentando a empregabilidade dos jovens, torná-los empregáveis e formar empreendedores, sempre a partir das opções e caminhos formativos escolhidos pelos alunos e suas famílias – não por acaso empreendedorismo é uma das disciplinas de projeto de vida do INOVA.

Em suma: preparar os jovens para o trabalho precário (intermitente, temporário, com pouquíssimos direitos, etc), com uma formação profissional aligeirada aplicável a uma gama de profissões ou ainda para montar seu próprio empreendimento negocial; tudo por sua conta e risco.

Traduzindo: o jovem é responsável por sua vitória – o que é pouco provável – ou derrota, o mais provável, no mundo do trabalho.

É uma das políticas do capital no mundo e hoje; responsabilizar – inclusive financeiramente – o trabalhador por sua formação profissional; no caso desse novo ensino médio a responsabilização é simbólica.

Se nosso jovem não conseguir emprego ou montar seu negócio próprio com sucesso a culpa é dele. Quem mandou escolher o itinerário formativo errado ou não entender o momento econômico e escolher o negócio adequado!

Simples assim. 

A concentração de capital, a exclusão e a desigualdade sociais, marcas registradas dos tempos atuais ficam olimpicamente ignoradas – o fracasso é do aluno que escolheu o caminho errado, pode ser também do professor que orientou mal o jovem.

O governo não existe nesse silogismo.

Mas há algo mais perverso e antissocial nesse “novo” ensino médio paulista.

Primeiro, o aprofundamento de nosso apartheid educacional; ou para ser mais direto: transformar de forma radical o apartheid social brasileiro – somos uma das nações mais desiguais do planeta – em apartheid educacional e cultural.

Consagrar a separação entre escola do conhecimento para a elite que pode pagar e escola do acolhimento social com formação precária e aligeirada para a grande massa da população.

É para avisar aos navegantes que a “farra” de mais de 50% de alunos oriundos de escola pública matriculados na USP – prestigiada e elitizada universidade pública de SP – não pode continuar. (segundo dados da própria universidade em seu site para o ano de 2021)

 Claudio Lembo, o conservador de estimação de parte da esquerda em um artigo épico, disse com propriedade que a elite branca não admite compartilhar seus espaços e privilégios. Os pobres que fiquem em seu lugar!

A outra perversão é a indução a privatização do ensino médio.

Se a escola pública não oferece formação geral, não permite que seus alunos – na maioria jovens da classe trabalhadora das periferias – possam disputar vagas nos processos seletivos das principais instituições universitárias do país; a solução para os que podem é pagar pelo ensino e pelo conhecimento – aí os pobres não têm vez.

A cada classe social uma escola, a cada classe social um tipo de formação e conhecimento; arte, ciência, filosofia e cultura geral têm um preço que os pobres não podem pagar – e, seguindo Claudio Lembro, na cabeça dos ricos da elite branca não devem pagar.

Defender a escola pública – combater a reforma do ensino médio – é a defesa de um direito democrático – acesso ao conhecimento – e também uma política social e cultural.

Quantas vidas poderiam ser salvas nesta pandemia se o governo neofascista do “capitão cloroquina” ao menos respeitasse os preceitos científicos e se a grande massa da população possuísse uma formação cultural e educacional de melhor qualidade – nossa miséria social está se transformando em miséria educacional e cultural.

Defender a escola pública do conhecimento para todos – especialmente a juventude trabalhadora – implica também no direito ao futuro.

O ensino médio como formação geral desperta nos jovens um conjunto de possibilidades, é durante o EM que a maioria dos alunos descobre o “que pretende ser quando crescer”.

Exigir que alguém com pouco mais de quatorze anos que começa o EM tenha definido o que pretende de seu futuro é uma violência simbólica inominável e ainda culpá-lo por seu quase inevitável fracasso é um crime inafiançável perante a história!

Além da formação geral, o ensino médio tem a função de apresentar o mundo e suas possibilidades ao estudante, permitir que os jovens sonhem e lutem com as armas da ciência, da razão e do conhecimento pelo seu futuro.

Tudo isso está sendo negado aos jovens por esse “novo” ensino médio, que ressuscita o ensino profissionalizante da ditadura militar – os fatídicos “primário”, “secundário” e “terciário”.

Isso é um reflexo da situação que vivemos.

A devastação neoliberal que toma conta do planeta está produzindo uma combinação explosiva de neoescravismo laboral – trabalhadores com direitos reduzidos ou mesmo sem direitos – por um lado e autoritarismo político por outro, com a ascensão da extrema direita – no mundo e em nossa pátria tupiniquim – tudo isso apoiado na ignorância da esmagadora maioria da população.

Esse vendaval antissocial causado pelos adoradores do novo deus, o mercado, está provocando uma fragmentação e mesmo uma divisão social e ideológica no interior do proletariado – dos vários segmentos da classe que vive de seu próprio trabalho.

Os trabalhadores sem direitos – o precariado – se insurgem contra os trabalhadores formais porque estes querem manter os poucos direitos que ainda possuem em uma conjuntura em que muitos perdem seus empregos e seus salários – vimos isso na recente greve dos metroviáros de São Paulo em maio deste ano – e os trabalhadores formais, ainda com alguns direitos, tanto públicos como privados, olham seus irmãos de classe do precariado como “parasitas” porque estes dependem de políticas sociais compensatórias – que praticamente inexistem – supostamente fazendo-os pagar mais impostos ou renunciar a reajustes salariais e evolução na carreira – caso dos funcionários públicos.

Setores do precariado chegam a apoiar reformas que têm como fundamento quebrar a estabilidade dos funcionários públicos – uns privilegiados que têm estabilidade no emprego quando ninguém tem no mundo privado – esquecendo que a estabilidade não é uma mera conquista corporativa, é uma conquista da sociedade – do conjunto do proletariado.

É o famoso divide et impera do império romano na antiguidade – dividir os povos dominados para manter a dominação.

Muitos esquecem que a estabilidade é a garantia de que os governos de plantão continuem a ofertar – mesmo a contragosto, diga-se de passagem – os serviços públicos obrigatórios por lei, como educação e saúde por exemplo.

Imaginemos se um alcaide pudesse demitir professores e funcionários da saúde pública, por exemplo, sem qualquer justificativa substituindo-os por seus apadrinhados políticos ou simplesmente extinguindo os cargos – seria o fim tanto da educação como da saúde públicas – é o que em última instância defende Paulo Guedes e seus “blue caps” com o apoio despudorado dos representantes do capital.

A grande tarefa da esquerda – de seus setores mais radicais e lúcidos – é reunificar o proletariado – a classe que vive de seu trabalho – em uma porfia permanente por direitos e democracia – incluindo o direito a educação pública.

O conhecimento como direito, assim como a educação como mecanismo de acesso a este último, não podem e não devem ser objeto de livre mercado – onde há negócios e lucros privados não há direitos.

É necessária a mais ampla unidade em defesa de uma escola pública laica e do conhecimento para todos, portanto contra essa reforma do ensino médio; combinado com a exigência de que as verbas públicas da educação sejam destinadas apenas às escolas públicas, auxilio ou ajuda de custo para todos os estudantes de famílias de trabalhadores que cursam ensino médio permanecerem na escola, o atendimento de todas as reivindicações salariais, educacionais e laborais dos profissionais da educação (especialmente salários dignos, redução de jornada de trabalho semanal e plano de carreira) – os recursos necessários poderão vir da taxação extra sobre as fortunas do 1% bilionários de nosso país e da suspensão ou não pagamento dos serviços da dívida pública ao capital financeiro.

Acesso ao conhecimento para não ser vítima da ignorância e do negacionismo, para se qualificar no mundo do trabalho e exercer com lucidez os direitos políticos, para ter acesso a universidade pública, para entender o mundo e  mudar esta ordem social injusta e  ser racionalmente feliz.

Esta deve ser a plataforma capaz de unificar todos os setores que vivem de seu próprio trabalho, incluindo a juventude, na defesa da escola pública contra o desmonte do ensino médio perpetrado pelos lacaios que servem aos interesses do capital.

*Professor da Rede Pública e militante da Resistência/PSOL.