Janaina Sedova, de João Pessoa, PB
No prefácio de seu livro “A Mao esquerda da escuridão”, Ursula Le Guin diz que “o futuro, em ficção, é uma metáfora”. A autora dedica o prefácio a explicar que a ficção científica não é sobre previsões do futuro, mas sobre narrativas do presente e que o futurismo, tão comum no gênero, tem mais a ver com a sua linguagem específica do que com qualquer tentativa de futurologia. Quem assistiu o seriado 3%, mesmo que nunca tenha lido Le Guin, dificilmente não pensou “esse não é o Brasil do futuro, esse é o Brasil de 2016”.
A produção estreou na Netflix no último dia 25 e a primeira temporada conta com 8 episódios. A série me pareceu uma boa porta de entrada para aqueles que se interessam por ficção científica e suas temáticas, especialmente para os mais jovens que, possivelmente, encontrarão muitas questões e tensões com as quais se identificarão.
O seriado se passa num Brasil distópico, no qual a grande maioria das pessoas (97%) vive no Continente na mais completa miséria: sem água, sem comida, maltrapilhas e sem direitos de qualquer tipo. Enquanto isso, uma pequena parcela da população (os 3% que sobraram) vive em Maralto – qualquer semelhança com o fato das praias no Brasil terem se tornado lugares extremamente elitizados e o acesso ao mar ser cada dia mais difícil à periferia, não é mera coincidência – um lugar onde reina a tranquilidade, prosperidade e justiça.
O enredo acima, infelizmente, já nos é bastante familiar, é a realidade do capitalismo contemporâneo. Não é incomum nos depararmos com pesquisas que constatam que apenas 1% da população, formado por punhado de mega ricos, é dono de fortunas maiores que as posses do restante da humanidade. No começo do ano ficou conhecida a lista da ONG Oxfam que mostrava as 62 maiores fortunas equivalentes à riqueza de metade da população mundial, na lista figuravam dois homens brasileiros: o empresário do setor de cervejas Jorge Paulo Lemann e o banqueiro Joseph Safra. Não à toa, os movimentos de juventude nos EUA elegeram como seu slogan “somos 99%”. Então, muitas vezes, a realidade pode até ser mais mirabolante que a ficção, do lado de cá da vida real, ainda temos mais 2% de condenados.
Na série, existe uma única forma de sair do Continente e ascender para o Maralto, uma seleção chamada “Processo”. Cada cidadão do Continente tem, aos 20 anos, uma chance de participar do Processo, se passar, se torna membro da elite, se for reprovado está condenado a uma vida de miséria e provações. Ezequiel é o chefe que comanda o Processo e seu mantra é “você é o criador do seu próprio mérito”. Se você passar, é porque merece, caso contrário, é porque você não é bom o suficiente para morar no lado de lá. O Processo é perfeito, e os indivíduos são, a partir de suas virtudes e defeitos, senhores do seu próprio destino.
Aqui existe uma óbvia alegoria com os discursos de meritocracia que encontramos por aí. Esforce-se e passe no ENEM, estude 10 horas por dia até passar em um concurso público, as cotas são injustas porque privilegiam pessoas que não passam por conta própria, qualifique-se e você irá ter o emprego dos seus sonhos. Que tudo isso custe a saúde mental e física dos jovens e que não existem empregos e vagas para todos, independente de seus esforços, não importa! O sistema é perfeito e se você não consegue se encaixar nele, é exclusivamente por sua própria incapacidade. As estruturas sociais que garantem a continuidade da desigualdade desaparecem e em seu lugar surge uma espécie de darwinismo social que está selecionando o que existe de melhor na espécie.
Outra questão interessante abordada pelo seriado é o tema da religiosidade. Na trama existe um pastor que tem como atividade fundamental louvar o Processo e o Maralto. Mesmo para aquelas pessoas que já foram reprovadas e que, portanto, não tem mais como chegar Do Lado De Lá, resta ainda a adoração a esse paraíso inalcançável: independente de suas misérias materiais, tenha fé na grandiosidade da vida que você não tem, nem nunca poderá ler. Uma religiosidade alienada e decadente, que faz paralelo à teologia da prosperidade que cresce nos rincões de pobreza brasileiros. Ambas abandonam qualquer perspectiva de reflexão e conforto místico para adotar o pragmatismo de uma, nunca realizável, ascensão material.
Li e ouvi alguns comentários que diziam que 3% é somente uma cópia de Jogos Vorazes. Discordo. Acredito que o tema da distopia faz parte do nosso Zeitgeist. Se no passado, a primazia do repertório criativo da ficção científica encontrava-se num ponto entre a exploração espacial e o desenvolvimento tecnológico, atualmente esta já não é a realidade. Especialmente a partir dos anos 70 e 80, quando a decadência do capitalismo se tornou cada vez mais clara e o futuro passou a parecer cada vez mais incerto e sombrio, especialmente para os mais jovens, os temas do totalitarismo, da destruição de qualquer laço de solidariedade e da completa alienação do ser humano de sua produção social, tornaram-se temas universais e não são patrimônio de uma única obra, ator ou diretor. A distopia é a marca do mal estar do capitalismo contemporâneo.
Por fim, gostaria de comentar rapidamente alguns pontos positivos e negativos da obra. 3% tem um orçamento pequeno, a imprensa especializada fala em algo em terno de R$ 10 milhões, que para o padrão Netflix, corresponde a recursos parcos, a terceira temporada da série “Black Mirror”, por exemplo, custou R$ 120 milhões. No entanto, a série mostra que é possível ser inventivo e arranjar soluções que funcionam bem com, relativamente, pouco dinheiro . Não sei se por limitações orçamentárias ou por opção estética, mas a série optou por ser um syfy sem um tom hightech, o que me agradou bastante e me lembrou as primeiras temporadas de retorno de Doctor Who nos anos 2000. Além disso, o elenco é bastante representativo, o que é muito bom num país no qual a TV é completamente branca. Os negros tem papéis importantes na história, não ficam relegados a personagens subalternos ou totalmente secundários.
Por outro lado, duas coisas me pareceram opções muito ruins no conjunto da série. Primeiro, as cenas de sexo que são totalmente despropositadas e sem nexo com o restante da história, parecendo ser mais uma redenção ao modelo HBO de entretenimento adulto onde sempre existe, não importa muito bem o motivo, pessoas transando. Em segundo lugar, e isso não é um pecado exclusivo de 3%, a série em vários momentos é muito obvia e faz um esforço muito grande para se explicar, deixando pouco espaço para a interpretação do telespectador. Essa é uma característica de boa parte das produções daquilo que convencionou-se chamar de cultura pop, como os filmes de Marvel e os seriados da Netflix, tem a ver com deixar o produto cultural o mais pronto possível para o consumo do maior número de pessoas, o que, obviamente, tem a ver com o aumento da extensão do lucro. Mas não acho que nenhum desses defeitos, junto com outros, comprometam o conjunto da séria.
3% é, com certeza, um dos seriados que valeu a pena na temporada 2016. E, embora não seja o cup of tea do ano, é uma série que arrisca e que deixou muitas janelas abertas interessantes para uma possível próxima temporada (ainda não confirmada pela Netflix). Além disso, e sem nacionalismo ou ufanismo, foi bom ver uma produção brasileira na maior plataforma de streaming para lembrar – já que costumamos esquecer – que, mesmo não tendo espaço na TV, o audiovisual brasileiro segue firme forte.
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