Está sendo debatido na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) o PL 504/2020 [1] , sob autoria de Marta Costa (PSD), que visa proibir qualquer tipo de propaganda que faça referência à diversidade sexual e de gênero e à existência de pessoas LGBTQIA+.
Segundo o projeto de lei, fica “vedado em todo o território do Estado de São Paulo, a publicidade, por intermédio de qualquer veículo de comunicação e mídia que contenha alusão a preferências sexuais e movimentos sobre diversidade sexual relacionado a crianças”.
É esse conteúdo que, no dia 13 de abril, foi enquadrado pela ALESP como uma tramitação em regime de urgência e será votado provavelmente nesta terça-feira, dia 27.
A justificativa presente no texto de PL deixa ainda mais nítido o ódio e a discriminação que o motivam. Sob a argumentação de que “o uso indiscriminado deste tipo de divulgação trariam real desconforto emocional a inúmeras famílias além de estabelecer prática não adequada a crianças”, o projeto visa “impedir desconfortos sociais e atribulações de inúmeras famílias e situações evitando, tanto a possibilidade, quanto a inadequada influência na formação de jovens e crianças”. Fica evidente que seu objetivo não é proteger, mas sim reproduzir e reforçar a discriminação voltada a identidades de gênero e sexualidade que estão fora da cis-heteronormatividade. Da já famosa “mamadeira de piroca” à defesa aberta da legalização de terapias de “reversão sexual”, a sanha delirante do fundamentalismo religioso que associa pessoas LGBTQIA+ a práticas e comportamentos “nocivos” não é nova.
Nos choca, portanto, que em meio a um quadro geral de mais de 3000 mortes evitáveis e diárias por COVID-19 no Brasil, com a volta da fome e da insegurança alimentar para quase 116,8 milhões de brasileiros [2] , com o aumento da violência policial e doméstica e com o transfeminicídio batendo recordes no país, o que está na ordem do dia da direita e extrema-direita na ALESP é a busca por silenciar e criminalizar o movimento LGBTQIA+.
Querem questionar nossa humanidade, negar nossa existência e aprofundar a marginalização histórica e sistêmica de nossos corpos e identidades. Como pontua a emenda número um proposta pela deputada Janaína Paschoal (PSL), e acatada pelo relator Gilmaci Santos (PR), a inclusão dos ditos “movimentos sobre diversidade sexual” nos atores vetados à produção de propaganda para crianças e adolescentes se baseia na ideia de que o movimento LGBTQIA+ promove uma interferência no suposto “desenvolvimento natural” das crianças que, como argumenta a deputada, não devem ser “precocemente induzidas” a se reconhecerem enquanto pessoas LGBTQIA+.
É absurdo perceber que a heterossexualidade e a cisgeneridade são tomadas como características essencialmente naturais dos indivíduos nesse sentido e não como, respectivamente, sexualidade e identidade de gênero humanas. Dessa maneira, o que se pressupõe é que as sexualidades e as identidades de gênero que fogem desse padrão são desviantes e contrárias à “natureza humana”. Ainda que pese todo o acúmulo histórico e cultural que nos mostra como o gênero e a sexualidade são diversos e mutáveis a depender do contexto social, histórico e cultural, os fundamentalistas insistem na defesa delirante de que pessoas LGBQIA+ são “desvios da natureza”, questionando nossa humanidade e patologizando nossas identidades.
Diante de tudo isso, nos questionamos: quem então defende a criança e a adolescente LGBTQIA+?. Desde 2008, o Brasil registra uma morte por LGBTfobia a cada 23 horas segundo o Grupo Gay Bahia (GGB) [3] e é líder mundial em assassinatos de pessoas trans e
travestis. O Dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transsexual (ANTRA) relata que em 2020 vimos um aumento de 201% nos assassinatos transfóbicos em relação a 2008, dos quais 80% apresentam algum aspecto de crueldade em sua execução e tendo registros inclusive de vítimas entre 15 e 18 anos [4] . Ainda segundo a ANTRA, a maioria das pessoas trans são expulsas de casa aos 13 anos, 72% não chegam a concluir o Ensino Médio e apenas 0,02% ingressam no Ensino Superior. Nas escolas, a Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil de 2016 [5] aponta que 73% das estudantes afirmaram ter sofrido algum tipo de violência LGBTfóbica dentro do espaço, sendo 27% denúncias de agressões físicas.
Ao defenderem a aprovação da emenda no1 do PL504/2020, Marta Costa (PSD), Janaína Paschoal (PSL) e sua corja não estão protegendo criança alguma, mas sim negando a existência de crianças LGBTQIA+ e a urgência de medidas que de fato as protejam da
LGBTfobia. Não devemos hesitar em responder: crianças LGBTQIA+ existem! E é necessário políticas que busquem garantir seu bem-estar, como o acesso à educação em um ambiente escolar sem violência, o acolhimento físico e psicológico em casos de expulsão e violência doméstica e o ensino e debate de questões relacionadas à diversidade de gênero e sexualidade no ambiente escolar como forma de promoção do respeito à diversidade.
Historicamente o Movimento LGBT se enfrenta contra o conservadorismo para conquista de direitos em nosso país. Surgido nos anos 80, ainda durante a ditadura militar, o movimento LGBT travou várias lutas na ruas e nos parlamentos para que fosse possível arrancar direitos como o tratamento público e gratuito para HIV/Aids em 1996, a despatologização do homossexualidade em 1999, até então considerada um “transtorno sexual”, o direito à união estável e casamento em 2013, o uso do nome social sem necessidade de comprovação médica para rescisão de documentos em 2018 e a criminalização da LGBTfobia pelo STF em 2019. Apesar desses importantes avanços legais, há muito a se conquistar. Os dados deixam claro que o Brasil é, apesar disso, um lugar letal para as LGBTQIA+ e o PL504/2020 é reflexo direto do momento reacionário em que vivemos, que aprofunda as violência impostas a essa população.
Reconhecidamente LGBTfóbico, o presidente genocida, Jair Bolsonaro, desde de sua posse deixou clara sua posição de inimigo dos direitos conquistados pelo Movimento LGBTQIA+. Ao dispor a pastora evangélica Damares Alves (PP) para presidir o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Bolsonaro reestrutura suas diretrizes e secretárias e exclui as LGBTQIA+ de suas prioridades, o que implica não apenas na falta de recursos públicos específicos para políticas voltadas a essa população, mas a longo prazo a precarização dos direitos conquistados em mais de 40 anos de luta. Ainda em 2019, o governo federal extinguiu o Departamento para ISTs, AIDS e Hepatites Virais do Ministério da Saúde sob a alegação de corte de “despesas”. O programa de prevenção e tratamento de ISTs, em especial do HIV/AIDS no Brasil, era não apenas uma referência internacional, mas também uma importante conquista do movimento, que arrancou do Estado um conjunto de políticas que se propuseram a seriamente discutir saúde sexual, sua diversidade e combater estigmas, se opondo às visões conservadoras que imperavam neste debate. Não nos surpreende que neste contexto a ministra Damares Alves (PP) chegou a defender “abstinência sexual” para o tratamento de ISTs e gravidez precoce na adolescência e Bolsonaro, por meio da Advocacia Geral da União (AGU), tentou recorrer à decisão do STF de criminalizar a LGBTfobia, alegando que esta medida feriria a liberdade religiosa.
O PL 504/2020 nada mais é do que mais uma faceta desse ódio e da intolerância que tem ceifado a vida de centenas de pessoas LGBTQIA+ em nosso país. Sob o discurso de “proteção”, eles negam a nossa existência para fortalecer a verdadeira ideologia de gênero: aquela que impõe a cis-heteronormatividade, restringe a diversidade e impede o acesso das crianças a diferentes modos de ser e amar. Ao pautarem a defesa de uma criança abstrata, o fundamentalismo religioso deixa transparecer que a criança que defendem tem não só gênero, como também sexualidade, classe e raça bem definidas: cisgênera, heterossexual, classe média-alta e branca. A luta contra a suposta “ideologia de gênero”, vista como o maior desafio para a proteção da infância e adolescência, não só nos mostra como o conservadorismo desconhece a realidade social da maior parte das crianças e adolescentes brasileiras, como as reduz a meros objetos de suas famílias. Não vemos, portanto, a “defesa da infância e adolescência” quando o governo genocida decide por reabrir escolas em meio ao pior momento da pandemia, ou ainda quando impõe o ensino a distância sem garantia material para estudantes da rede pública, tampouco a vemos na insistência da aplicação do ENEM que em seu último processo teve 51,5% de abstenções [6] já no primeiro dia.
No limite, a “criança abstrata” é uma desumanização da própria criança que não é vista em sua diversidade e na sua constituição enquanto sujeito de direitos. Nos lembramos então de Itaberli Lozano, um garoto gay de 17 anos assassinado em 2016 pela própria família e também de Keron Ravach, uma menina trans de 13 anos, que foi brutalmente assassinada no Ceará em janeiro deste ano. Por sua memória e em defesa de crianças e jovens que, assim como eles, tiveram suas vidas interrompidas pelo ódio, é urgente que se entenda que o caminho para uma garantir a defesa do direitos das crianças e adolescentes reais perpassa o combate a violência racista do Estado que assassina a cada 23 minutos um jovem negro [7] , o ensino da educação sexual nas escolas adaptada à faixa etária, que se mostrou uma ferramenta para o combate ao abuso sexual de crianças, e o investimento público para uma educação de qualidade que não seja vista como privilégio, mas como um direito à todes.
Abaixo o PL504/2020! Crianças LGBTQIA+ existem! Pessoas LGBTQIA+ não são má influência! Nociva é a LGBTfobia!
NOTAS
[1]: https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000331594
[2]: http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf
[3]: https://grupogaydabahia.com.br/relatorios-anuais-de-morte-de-lgbti/
[4]: ANTRA (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS). Dossiê:
assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. Relatório online,
2020. disponivel em:
. https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf
[5]: PESQUISA NACIONAL SOBRE O AMBIENTE EDUCACIONAL NO BRASIL 2016.
Disponível em: https://static.congressoemfoco.uol.com.br/2016/08/IAE-Brasil-Web-3-1.pdf
[6]: ENEM 2020 ACUMULA RECORDES DE ABSTENÇÕES. Disponível em:
https://guiadoestudante.abril.com.br/enem/enem-2020-acumula-recordes-de-abstencoes/#:~:t
ext=N%C3%BAmeros%20das%20absten%C3%A7%C3%B5es%20do%20Enem,Ci%C3%A
Ancias%20Humanas%20e%20a%20reda%C3%A7%C3%A3o .
[7]: UM JOVEM NEGRO É MORTO A CADA 23 MINUTOS NO BRASIL.
* Estudante de Ciências Sociais – Unicamp, militante do Afronte! e da Resistência-PSOL.
** Mestranda em Ciência Política na Unicamp, militante do Afronte! e da Resistência-PSOL.
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