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CULTURA

Crônicas de Boal, perspectivas de Nuestra América

Mariana Mayor

Neste turbulento 2021, ano em que Augusto Boal completaria 90 anos, a Usina Editorial lança uma nova edição de Crônicas de Nuestra América. O livro, publicado pela primeira vez em 1977, reúne crônicas escritas pelo teatrólogo brasileiro em seu período de exílio na América Latina, com prefácio da pesquisadora mexicana Valentina Quaresma Rodriguez e ilustrações do jornalista e cartunista Claudius Ceccon.  

Nessa obra, acompanhamos dez histórias divertidas, cheias de ironia, sarcasmo e pitadas surrealistas, compondo um conjunto que expande perspectivas sobre a nossa realidade e a de nossos países vizinhos. O que conhecemos e reconhecemos de “Nuestra América”? – e melhor, o que desconhecemos?  

Boal fez parte de uma geração de intelectuais e artistas de diferentes espectros da chamada esquerda latino-americana, que, impulsionados pelo contexto histórico comum, marcado pela militarismo, imperialismo, guerra-fria e principalmente, pela Revolução Cubana, de 1959 – acontecimento que estremeceu todo o continente – encamparam um projeto coletivo, de ressignificação política da ideia América Latina. Nomes como Eduardo Galeano, Enrique Buenaventura, Celso Furtado, Pablo Neruda, Violeta Parra, Mercedes Sosa, Gabriel García Marquez, Pablo Milanés, Alejo Carpentier, Darcy Ribeiro, Julio Cortázar, Che Guevara, Fidel  Castro, Roberto Retamar, Vargas Llosa, entre tantos outros, alimentaram um ideário que surgiu nos processos de independência da América, ainda no século XIX, de possibilidade de união política e cultural dos países do “sul”. O cubano José Martí e sua visão de “Nuestra América”, texto de 1891, evocava a valorização dos povos e culturas originárias nos processos de luta contra o colonialismo, na criação de uma “Pátria Grande”, ao escrever que “não há pátria na qual o homem possa ter mais orgulho do que em nossas doloridas repúblicas americanas” (MARTÍ, 1891).  

O passado colonial foi investigado no intuito de perceber nossas raízes comuns: as veias estavam abertas, como o título do livro homônimo de Eduardo Galeano. E a ferida exposta se intensificava pelo contexto de perseguição política dos governos militares da América Latina, resultando em mortes, prisões, tortura, exílio forçado, e para alguns, organização no movimento de guerrilha.

1971 foi ano em que Boal conseguiu sair do Brasil, através de um passaporte falso, com a ajuda do advogado, dramaturgo e diretor teatral Idibal Pivetta, após ser preso e torturado. Buenos Aires foi o primeiro destino, cidade natal de sua companheira, Cecília Boal. É de lá que começam as andanças pela América Latina e de onde surgem obras como “A tempestade” e “O grande acordo internacional do Tio Patinhas” e escritos teóricos e experimentações práticas que resultam na escrita da obra “Teatro do Oprimido”. É de lá também que Boal começa a contribuir para o famoso semanário O Pasquim, revista criada em 1969, por Jaguar, Tarso de Castro e Sérgio Cabral, e que com o passar do tempo agregou nomes como Ziraldo, Luiz Carlos Maciel, Millôr Fernandes, entre tantos outros, além de Claudius Ceccon.  

Os escritos de Boal para o Pasquim seguiam a atmosfera irônica e bem humorada do semanário. As crônicas revelam personagens como militares, jornalistas, donas de casa, trabalhadores, indígenas, marginais, em situações quase absurdas que ainda reconhecemos como parte de nosso cotidiano – talvez mais ainda nestes nossos tempos militarescos, com arroubos autoritários, recessão econômica e uma impensável pandemia – que também tem seus tons surrealistas. Na apresentação dos textos, em 1976, já organizados para a publicação do livro, Boal escreve:  

“Estas são todas histórias verdadeiras – histórias que o povo andou me contando, aqui e ali, nestas viagens que eu, errante, ando fazendo desde que saí do Brasil, em 1971. Alguns personagens eu conheço, eu vi; outros, só de ouvir dizer. Nalguns lugares estive – descrevo como repórter. Outros me descreveram – escrevo do mesmo jeito. Estas são todas histórias  dos povos de Nuestra América. Nuestra América – aquela que se opõe à AmériKa com K! Nuestros Americanos – aqueles que sofrem, pelejam e que um dia se libertarão!”.  

Os ideais da soberania, liberdade, autonomia política, igualdade e justiça social, presentes neste pequeno prólogo, ganham novos sentidos neste ano de 2021. A leitura das crônicas de Boal é uma oportunidade de voltarmos a sonhar na perspectiva do “sul”, de “Nuestra América”.