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BRASIL

Sobre o discurso de Lula: Aprender com o passado, pensar um futuro, lutar pelo presente

Gabriel Santos, de Maceió, AL
Ricardo Stuckert

Depois de quatro anos após a primeira condenação, após 580 dias presos, lá estava Lula. Novamente no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Atrás dele uma foto no meio da multidão no dia em que se entregou para as autoridades. Na sua frente, uma bandeira da campanha Lula Livre, com esta palavra de ordem em diversos idiomas. Ao seu lado, diversos representantes de partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais. Lula iria falar.

Luiz Inácio Lula da Silva é um baita orador. A maior liderança popular dos últimos 50 anos. Dizer isso é tratar a realidade como ela é. Sem mais, nem menos. Na sua fala passou de picanha e cerveja, para mercado financeiro; do Zé Gotinha para política externa; da necessidade de vacina e auxílio emergencial para a relação com a mídia. Lula traduz a política para a linguagem popular, aproxima temas complexos do povo. Dizer essas coisas são óbvias. Assim como também é óbvio dizer que Lula é um conciliador. Atua com base em acordos e negociações. É seu modus operandis de fazer política. Todos sabemos que esse senhor de mais 60 anos atua assim faz quatro décadas

A possibilidade de Lula ser candidato à presidência em 2022 e seu discurso da semana passada modificou a correlação de forças no jogo político e demonstrou um impacto real nos demais atores dessa cena. Bolsonaro apareceu de máscara em um evento oficial pela primeira vez em meses, antes tinha ido a 36 eventos oficiais anteriores, todos sem máscara e chegando a dizer que a mesma poderia “causar efeitos colaterais”. Ele e seus filhos passaram a reivindicar o uso de vacina, e anunciaram, em um evento organizado às pressas, a compra de milhões de vacinas e uma campanha de vacinação em massa para a população. No mesmo dia, via twitter, Rodrigo Maia fez declarações positivas a Lula e sua trajetória, enquanto o atual presidente da Câmara, Arthur Lira, criticou o ex-juiz Sérgio Moro, defendeu Lula e anunciou que buscava adquirir do governo chinês vacinas, passando por cima de Bolsonaro e do executivo.

A retomada dos direitos políticos de Lula com a anulação de seus processos foi sem dúvida a maior vitória política democrática desde há um bom tempo. Faz no mínimo cinco anos, desde o golpe parlamentar contra Dilma, que passávamos por um processo de acumulação de derrotas. No marco da situação reacionária que vivemos, a anulação dos processos e a Lava Jato ser desmascarada é uma imensa vitória política, que já mostra desdobramentos. 

Em seu discurso o presidente Lula falou por diversas vezes sobre o que importa nos dias de hoje: vacina, ciência, emprego e auxílio emergencial. São esses os temas do momento, que podem ser resumidos na frase: o direito à vida do povo brasileiro.

Foi importante a denúncia do imperialismo norte-americano, e quando falou sobre Cuba e Venezuela, reforçando o respeito ao governo desses países. Assim como também foi importante a leitura geopolítica internacional em aceno para a China e priorizando relações com países africanos.

O principal no cenário político foi que as cartas que estavam nas mesas sofreram um novo processo de embaralhamento. Lula voltou ao centro da política nacional. O Partido dos Trabalhadores retomou forças. A esquerda como um todo agora se postula no papel de maior força da oposição, e Lula se torna o principal nome desse campo. Se antes era o “centro” que tentava ser o adversário direto ao governo, com figuras nanicas e aventureiras como Huck, Mandeta e a hipocrisia de Dória, agora todos eles foram varridos por Lula. 

Ciro Gomes, que pela manhã do mesmo dia no qual Edson Fachin durante o período da tarde daria a sentença anulando os processos contra Lula, estava em uma entrevista para o UOL falando sobre a luta pelos direitos políticos de Lula. Para Ciro, batalhar por isso seria um circo que ele se recusava a participar. Ele chamaria ainda o governo Dilma de um aborto na história do país. Entre a entrevista pela manhã e a hora que se deitou à noite, Ciro se viu completamente jogado ao ostracismo. Caso ele e o PDT não se reorientem nacionalmente serão postos de lado. Enquanto isso PSB e PCdoB, que no último período priorizavam uma aliança com o PDT, devem se aproximar do PT novamente. Uma Frente Ampla pela direita, que seria uma Frente com partidos de esquerda sendo minoritários em uma chapa  encabeçada e liderada pela direita não tem mais lugar no cenário político. A presença de Lula a torna praticamente inviável. Este fato por si só  foi uma vitória para os que sempre foram contrários a esta tática.

É cedo para apontar como será o desenho em 2022, os caminhos ainda estão em disputa. O jogo vai ser jogado. Lula, mais keynesiano que há alguns anos, chegou a falar sobre a possibilidade de uma frente de esquerda, assim como também defendeu uma Frente Ampla com partidos de direita sendo força minoritária. Não disse sim para nenhuma das possibilidades, mas também não falou não para nenhuma delas. Apesar do aceno para uma Frente Ampla, para o mercado financeiro, ter sido visivelmente forte por parte do ex-presidente. 

O fato é que diante da barbárie que vivemos, a retomada dos direitos políticos de Lula chega como uma dose de esperança para o nosso povo e para a linha de frente do ativismo. Não só pelo passado recente ser melhor que os tempos atuais, mas sim pelo fato de agora ser possível pensar em um futuro. É o sentimento de esperança.

O que importa é que agora nosso campo como um todo se fortalece. Estamos maiores no jogo. A esquerda está mais viva hoje do que há três meses. Lula vai ser um aliado na luta contra Bolsonaro, por vacinas e por auxílio emergencial.

A base social de toda esquerda e os setores mais combativos contra o governo, hoje estão mais fortalecidos que no início da semana. Na luta de classes a vontade e a disposição para a batalha conta, e conta muito. O subjetivo é fundamental. A disposição para o confronto, o ânimo, a autoconfiança dentre nossas fileiras, tudo isto gera um aumento coletivo na consciência. Diante do marasmo político fruto das inúmeras derrotas, hoje, os ativistas honestos pensam “queremos lutar, podemos vencer”. A consciência avançou, isto significa que a situação da luta social também pode mudar. Afinal, não existe batalha que se ganhe sem acreditar que é possível vencer. A vitória democrática causada pela retomada dos direitos políticos de Lula serve tanto para retomar a utopia, pois agora muitos acreditam que é possível ter esperanças e pensar em um futuro diferente. É isso que ocorre quando aquilo que até então era improvável acontece ao nosso favor. Os ânimos surgem e se levantam como ondas no oceano.

É urgente uma política e um programa que valorize as vidas

Se hoje temos a chance de refazer a esperança e construir um futuro melhor, é preciso também aprender com o passado. A melhor tática para lutar contra Bolsonaro seria uma Frente Única de Esquerda. Focando mais naquilo que nos une, do que naquilo que nos separa. Esta Frente deve começar a ser feita a partir do cotidiano, de aproximações políticas e de ações comuns nos temas urgentes hoje. Somente através da ação conjunta se cria relações e confiança política. E a partir destas ações devemos começar a construção de um programa político que valorize a vida, em detrimento da política de morte. Isto passa pela discussão da necessidade de reformas estruturais em nossa sociedade e pelo reconhecimento de erros dos anos anteriores.

Esse necessário programa de reformas estruturais só se faz possível com um governo que não vacile perante acenos e acordos com a burguesia nacional. Por mais que o passado seja melhor que o presente, nós não podemos repeti-lo. Acreditar que um novo governo, seja de Lula ou de qualquer forças do campo da esquerda, será igual aos anos de Lula-Dilma é uma posição a-histórica que ignora a consequência das contra reformas efetuadas pela elite branca e anti-povo de nosso país, e seus representantes no congresso. Além disso, nós não queremos repetir o passado dos 13 anos de governos petistas, mas sim aprender com ele. Isto significa tirar as lições da política efetuada pelo campo majoritário do PT, que se baseava essencialmente na estratégia da Frente Ampla com setores da burguesia. A política de colaboração de classes, defendida pelo PT nos seus anos de governo, foi rompida pela burguesia nacional e internacional, e terminou por abrir as portas para o Golpe de 2016, além de ter gerado um enfraquecimento na auto organização e poder de mobilização da classe trabalhadora.

É necessário separar o joio do trigo. Se é verdade que precisamos da mais ampla unidade no dia a dia com setores da centro-direita, da direita, setores da elite, que se colocam contrários a Bolsonaro e sua política genocida. Também, é verdade, que no debate eleitoral e sobre o governo da Nação, o tema central se torna o programa e o Brasil que queremos apresentar e realizar. Não é mais somente contra quem lutamos, mas sim, essencialmente, o que queremos fazer. Assim, entre a cruz e a espada, é preciso dizer que um programa de reformas estruturais que busque atingir as mazelas profundas que atingem nosso povo é irrealizável com um governo conjunto com a elite nacional. Escolher ambas opções não é possível. Ou buscamos governar em conjunto com as elites, ou buscamos enfrentá-las com um programa verdadeiramente popular.

Em nosso país, a situação atual é catastrófica. Este mês marca um ano do início da pandemia no Brasil, e hoje ela está em sua pior fase. As filas nos leitos de UTIs não param de crescer, o número de óbitos passa dos 270 mil e não se tem perspectiva de melhora nem de vacinação em massa. Somente neste março de 2021 foram mais de 80 mil mortes, e ainda estamos na metade do mês. Não tem outra palavra para descrever Bolsonaro que não seja genocida.

A forte crise que nos assola como nação atinge em específico uma parcela da população, que é o povo negro. O abandono de políticas estatais que atinjam a população negra, e o racismo estrutural que se reproduz no acesso à saúde, faz com que a imensa maioria das vítimas de covid-19 sejam negras. Recentemente se mostrou que em Sergipe, mais de 70% das vítimas são de pele negra, dado assustador mas que deve se refletir e ser semelhante em outros estados. A pandemia que atinge todo o país, não atinge todos igualmente. O sofrimento é desigual. As condições sócio históricas organizadas pelo racismo que atinge a população negra faz com que esta parcela seja a mais atingida pela crise sanitária.

Somada a esta crise sanitária, sofremos também com uma forte crise social, que novamente atinge a população negra com mais força. O desemprego bate recordes em 20 estados, assim como também se marca os pontos mais altos na taxa da população que se encontra em empregos informais. A juventude negra é parte significativa desses números, sem emprego formal. Os jovens negros terminam ou na posição de massa marginal no mercado de trabalho, ou trabalhando nas ruas como ambulantes, entregadores de aplicativos e trabalhos precários. O corte no auxílio emergencial federal aprofundou a situação de miséria, com 26 milhões vivendo abaixo da linha da pobreza, com menos de 250 reais mensais. A situação em nosso país é que são os bairros mais negros que concentram as maiores vitimas de covid 19 nas cidades, e é a população negra a mais atingida pelo desemprego e crescimento da miséria e desigualdade social.

Como falamos no tópico acima, o que importa hoje é garantir as condições de vida para o nosso povo, ou seja, debater salário, vacina e condições básicas de existências. É em torno disto que devem girar os debates de unidade atualmente entre movimentos sociais e partidos. 

Porém, é importante a existência de um programa que consiga refletir a realidade. Se observarmos que a população negra é aquela mais atingida pela crise social e sanitária, o tema racial precisa aparecer e fazer parte das elaborações. Se o centro é a elaboração de uma política de vida, é preciso pôr como atores centrais e pensar as especificidades daqueles que durante séculos sofreram com a política de morte e hoje são as maiores vítimas da necropolítica aplicada por Bolsonaro. Não enegrecer os temas do desemprego, da ausência de políticas públicas, do trabalho precário, não fazer uma análise racial do coronachoque e do efeito da pandemia é cometer erros grotescos e que impedem o avanço de nosso campo político como um todo.

Como dizemos nos parágrafos acima, é preciso aprender com o passado para fazer ponte com o futuro. E uma das coisas mais urgentes que precisamos avançar, é justamente as posições dos governos petistas sobre segurança pública e a política de drogas do governo Lula, responsável pelo aumento do encarceramento em massa no nosso país. Em 2066, quando a nova Lei de Drogas foi aprovada, tínhamos no país cerca 400 mil presos, 10 anos depois este número dobrou. Uma em cada pessoa em situação de cárcere responde por tráfico, e 40% dos presidiários jamais foram julgados. Por mais que este debate não seja um debate fácil, é preciso fazê-lo, e em tempos em que se fala sobre a urgência de vidas negras e valor destas vidas, não podemos deixar para tocar neste assunto depois. O debate precisa ser feito hoje para que soluções possam ser apresentadas o quanto antes.

Afinal se queremos um projeto político que valorize a vida, precisamos pôr como centro as vidas que foram secundarizadas e desumanizadas, ou seja a vida de negros e indígenas. Somente dessa forma podemos falar em reformas estruturais e em construir uma verdadeira democracia, pois como afirmou o manifesto da Coalizão Negra por Direitos, com racismo não a democracia. 

No combate urgente a Bolsonaro, e na defesa do emprego, da saúde pública e de uma campanha de vacinação. Assim como na construção de um futuro com esperança para nosso povo. A luta contra o racismo precisa entrar no centro. Essa é a lição de nosso tempo e precisamos começar hoje a praticá-la.

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Lula livre / vaza jato