Artigo publicado originalmente no site New Internationalist. Tradução de Allan Rodrigo de Campos Silva para o Le Monde Diplomatique Brasil com o título Planeta Fazenda.
Rob Wallace é um epidemiologista evolucionista e membro do Agroecology and Rural Economics Research Corps, baseado em St Paul, EUA. É autor do recém publicado “Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência (Elefante e Igrá Kniga, 2020). Foi consultor da Food and Agriculture Organization e do Centers for Disease Control and Prevention (CDC).
SARS-CoV-2, o coronavírus causador da Covid-19, está em marcha. Infecta centenas de milhares de pessoas por dia em todo o mundo. Em países que lidaram mal com o surto – entre eles os EUA, a Grã-Bretanha e o Brasil – nos primeiros dias e antes da vacina por diversas vezes a retórica do governo sugeriu largamente deixar o vírus ‘seguir seu curso’. Com pouco apoio científico, políticos como Donald Trump declararam que uma mítica imunidade de rebanho – que deixaria talvez milhões de mortos em seu rastro – nos salvaria.
O agronegócio também proclamou que a indústria que ajudou a desencadear muitos dos surtos mortais deste século seria precisamente o caminho certo a seguir. Empresas como a Animal Agriculture Alliance e o Breakthrough Institute afirmaram que a biossegurança, a tecnologia e as economias de escala – quanto maior, melhor – são a única maneira de nos proteger de outra pandemia. Não importa que a produção do agronegócio e a grilagem de terras conduzidas em seu nome tenham sido documentadas como responsáveis pelo surgimento de vários patógenos nas últimas duas décadas.
Como chegamos a um momento histórico em que as próprias causas da crise em curso são repetidamente apresentadas como sua solução?
A agricultura moderna emergiu de mãos dadas com o capitalismo, com o comércio global de escravos e com a ciência. Os países europeus implantaram os primeiros cientistas imperiais para decodificar as novas paisagens e povos que seus navios encontraram em suas viagens de conquista. A ciência imperial também ajudou a inventariar terras e povos para a acumulação de capital.
Da Europa e da África os vários estágios do capitalismo se expandiram pelas Américas, através dos Cáucasos e nos trópicos, transformando paisagens de produção de alimentos locais em plataformas de exportação de commodities. De 1700 a 2017 as áreas de cultivo e pastagens em grande escala se expandiram cinco vezes, atingindo a cifra de 27 milhões de quilômetros quadrados.
A prática de industrialização da pecuária e da agricultura atingiu novos patamares após a Segunda Guerra Mundial. Quarenta por cento da superfície livre de gelo da Terra agora é dedicada à agricultura e representa o maior bioma do planeta. Muitos milhões de hectares a mais devem ser colocados em produção até 2050, especialmente no Sul Global, onde as poucas terras agrícolas “virgens” restantes serão arrancadas das últimas florestas tropicais e savanas. As aves e o gado representam hoje 72% da biomassa animal global, ultrapassando de longe a biomassa total da vida selvagem dos vertebrados. Animais industrializados estão começando a se espalhar por todo o mundo em verdadeiras cidades de porcos e galinhas. O que antes era o planeta Terra foi sendo transformado em Planeta Fazenda.
Essas expansões estão interligadas por circuitos de capital e consumo. Tais circuitos geram um volume crescente de comércio de animais vivos, produtos derivados, alimentos processados e germoplasma. As áreas crescentes de monocultura são caracterizadas pelo declínio da diversidade de animais e cultivos vegetais à medida em que as intervenções técnicas selecionam geneticamente algumas raças em detrimento de todas as outras. A diversidade também está se perdendo à medida que as empresas se consolidam.
Tais mudanças economicamente dirigidas produziram impactos profundos sobre nossa ecologia e nossa saúde pública.
Entra o patógeno celebridade
A produção de linhagens limitadas de espécies monogástricas (“de estômago único”), tais como porcos e aves, distribui raças de uma grande variedade de animais adaptadas localmente para países não industrializados. Tendências semelhantes são encontradas em colheitas que alimentam populações humanas e animais de criação intensiva. Ao longo do avanço da agricultura, o habitat natural primário e as populações não humanas estão se contraindo em taxas recordes, destruindo em seu curso terras indígenas e de pequenos proprietários e meios de subsistência ao longo do caminho.
O desmatamento e o desenvolvimento estão aumentando a taxa – e o escopo taxonômico – do transbordamento de patógenos da vida selvagem para os animais de de criação e para os trabalhadores que cuidam deles. A Covid-19 representa apenas uma dentre uma série de novas cepas de patógenos que surgiram ou ressurgiram repentinamente no século 21, como ameaças à humanidade. Esses surtos – gripe aviária e suína, Ebola Makona, febre Q, Zika, entre muitos outros – foram todos vinculados à mudanças na produção ou uso da terra associadas à agricultura intensiva, bem como à exploração madeireira e à mineração.
Os patógenos emergem de maneira diferente, a depender do lugar e da mercadoria. Todavia, todos estão conectados dentro da mesma teia de danos ambientais e expropriação global, fato que explica a natureza transcontinental dos novos patógenos. SARS na China. MERS no Oriente Médio. Zika no Brasil. H5Nx na Europa. Gripe suína H1N1 na América do Norte.
Mas, como a produção conduz esses surtos? Em uma extremidade da nascente cadeia de commodities de uma região, a complexa diversidade de florestas primárias costuma reter os patógenos “selvagens”. Não se encontram hospedeiros potenciais de forma regular. Contudo, a extração transnacional de madeira, minérios e commodities da agricultura intensiva alteram essa dinâmica. Esses processos simplificam drasticamente a complexidade natural. Embora nas fronteiras de expansão do neoliberalismo muitos patógenos morram junto com suas espécies hospedeiras, um subconjunto de infecções que antes se encerrava nas florestas com relativa rapidez pode, de repente, se propagar de maneira mais ampla.
O Ebola oferece um exemplo clássico. Desde meados da década de 1970, os surtos de ebola normalmente sitiavam uma ou duas aldeias subsaarianas antes de se esgotarem. Em 2013-15, a cepa Makona emergiu ao longo de uma fronteira de monocultura de dendê, dentre outros produtos, em uma paisagem da África Ocidental cada vez mais expropriada e globalizada.
Embora pouco diferenciada em sua genética ou curso clínico em comparação com os surtos de Ebola anteriores, a cepa Makona infectou 35.000 pessoas, matando milhares que viviam nas principais cidades e, de repente, estava a apenas um voo de distância do resto do mundo.
Selecionando uma mortalidade maior
Outras doenças emergem na outra ponta das cadeias produtivas. Gripes aviárias e suínas, mortais e adaptadas aos humanos, geralmente surgem em operações intensivas localizadas mais perto das principais cidades do Norte e do Sul. Das 39 transições documentadas de vírus de baixa para alta letalidade em gripes aviárias a partir de 1959, todas, exceto duas, ocorreram em operações avícolas comerciais, tipicamente caracterizadas por plantéis de dezenas ou centenas de milhares de aves. As operações da criação intensiva estão de tal forma inundadas pela circulação da gripe aviária e suína que agora passaram a atuar como seus próprios reservatórios para novas cepas. As populações de aves aquáticas selvagens deixaram de ser a única fonte desses vírus.
O que há nas fazendas industriais que as faz criar tais infecções?
Perus da produção industrial são criados em celeiros de 15.000 aves. As poedeiras industriais (galinhas que põem ovos) são dispostas em celeiros com até 250.000 aves. O cultivo de animais em vastas monoculturas remove as barreiras imunológicas que normalmente interromperiam os surtos em populações mais diversas. O tempo todo os patógenos evoluem em meio a genótipos imunes dos hospedeiros, agora tornados comuns na pecuária industrial. A superlotação e a falta de higiene produzem estresse intenso nesses animais de criação, o que pode deprimir sua resposta imunológica e torná-los mais vulneráveis às infecções. Abrigar altas concentrações de rebanhos e aves de criação acaba por recompensar as linhagens de vírus que podem se alastrar com mais rapidez.
Os animais são abatidos em idades cada vez mais jovens. Criar galinhas em apenas 6 semanas e porcos em 22 semanas pode selecionar para maior mortalidade por patógenos, incluindo infecções que são capazes de sobreviver a sistemas imunológicos mais jovens e mais robustos. A produção em confinamento – “All in / all out” – uma tentativa de controlar os surtos produzindo os rebanhos em lotes – pode contraditoriamente contribuir para a seleção de um limite de infecção que se alinhe com os tempos de abate que a indústria define para seus bandos e rebanhos. Ou seja, os vírus são capazes de desenvolver cepas bem-sucedidas, capazes de matar animais adultos, mais próximo ao momento do abate, quando o estoque é mais valioso.
Com a reprodução conduzida no exterior e não in loco, – principalmente no que se refere a seleção de características de mercado, tais como mais carne e crescimento rápido – as populações de animais também são incapazes de desenvolver resistência aos patógenos circulantes. Mas, como os sobreviventes não se reproduzem, eles acabam impedidos de transmitir sua resistência. Para além do portão da fazenda, o aumento da distância que os animais vivos são transportados expandiu a diversidade dos segmentos genéticos que os patógenos trocam, aumentando a taxa e as combinações pelas quais as doenças exploram suas possibilidades evolutivas. Quanto maior a variação em sua genética, mais rapidamente os patógenos evoluem. Em suma, ao industrializar a produção de carne, o agronegócio mundial também industrializou os patógenos que circulam entre seus rebanhos e bandos.
A emergência da Covid-19
As origens da Covid-19 mesclam as duas pontas dos nossos circuitos de produção, as florestas e as fazendas industriais.
Os coronavírus são hospedados por morcegos em todo o mundo. Mas a cepa hospedada pelos morcegos na China parece ser capaz de atingir ainda mais os humanos, uma vez que pula entre espécies com sucesso. O ambiente em que esses morcegos vivem também mudou de maneira fundamental. Devemos reintroduzir a agrobiodiversidade para servir como barreira imunológica contra patógenos mortais.
Diante da liberalização econômica pós-Mao, a China empreendeu a rota de desenvolvimento dos BRICS, com a intenção de alimentar seu próprio povo com seus próprios recursos naturais. Milhões de pessoas foram retiradas da pobreza. Milhões foram deixadas para trás. Entre prós e contras, ao tomar este curso, o agronegócio chinês e um setor de alimentos silvestres cada vez mais capitalizado avançam sobre a paisagem do centro e do sul da China, onde muitas dessas populações de morcegos habitam.
Tal como no caso do Ebola, nesta fronteira de commodities expandiram-se as interfaces entre os morcegos, rebanhos de criação, animais selvagens, trabalhadores rurais e garimpeiros, o que aumentou o tráfego de vários coronavírus semelhantes ao SARS. O aumento das aplicações de pesticidas, em uma escala que vai muito além até do seu uso nas encharcadas plantações dos EUA, pode ter reduzido as populações de insetos de que os morcegos se alimentam. Isso pode ter aumentado a interface que os hospedeiros do coronavírus compartilham com as populações humanas, à medida que os morcegos expandiram sua gama de forrageamento em busca de alimento.
Diante do aumento em extensão e velocidade das cadeias de produção de alimentos silvestres e da produção agrícola, muitos coronavírus semelhantes ao SARS que transbordaram com sucesso sobre um animal de criação ou sobre um humano, podem agora encontrar o seu caminho em um curto espaço de tempo através de paisagens periurbanas para dentro de capitais regionais, como Wuhan, antes de entrar na rede global de viagens.
Uma saída
Isso parece uma armadilha. Mas existe algo que possamos fazer?
Sim, existe. Primeiro devemos rejeitar o “normal” que nos trouxe a essa confusão. Cultivar alimentos não é fazer objetos. Alimentos não são dispositivos. A agricultura deve ser transformada, da economia industrial para algo mais parecido com uma economia natural. Devemos voltar a assimilar o respeito pelo contexto dos alimentos – o solo, a água, o ar, a matriz ecológica e o bem-estar da comunidade dos quais dependem os alimentos e as pessoas que os consomem.
Para eliminar o mais mortal dos patógenos, devemos preservar a complexidade da floresta (e das áreas úmidas), mantendo amortecedores ecológicos para morcegos, gansos, e outros reservatórios de doenças naturais, para nossos animais de criação e nossas comunidades. Devemos reintroduzir a agrobiodiversidade nos rebanhos e nos bandos para servir de barreira imunológica contra patógenos mortais, tanto em fazendas quanto em paisagens inteiras. Devemos voltar a permitir que os animais se reproduzam in loco para que os rebanhos e os bandos possam se proteger contra os patógenos em tempo real. Essas intervenções requerem a restauração do locus de controle para as comunidades rurais, e longe do agronegócio.
Em suma, para evitar que, em primeiro lugar, o pior dos surtos surja, devemos nos voltar para o tipo de planejamento estatal que fortalece a autonomia do agricultor, a resiliência socioeconômica da comunidade, para economias circulares, redes integradas de fornecimento cooperativo, fundos fundiários e indenizações. Devemos desfazer o trauma profundamente histórico de raça, classe e gênero no centro da grilagem de terras e da alienação ambiental.
No cenário mundial, devemos acabar com o intercâmbio ecológico desigual entre o Norte e o Sul globais. Para curar a fenda metabólica entre ecologia e economia que impulsiona o surgimento de patógenos (e danos climáticos) no cerne da agricultura moderna, temos que cultivar uma filosofia política diferente.
Apostar que o agronegócio, a principal fonte do problema da pandemia, fornecerá a solução é, na melhor das hipóteses, inútil. Podemos fazer melhor pensando (e agindo) mais uma vez.
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