Este texto pretende discutir o balanço da campanha eleitoral do PSOL em São Paulo, representado por Guilherme Boulos (MTST) e Luiza Erundina, assim como traçar algumas projeções sobre o cenário aberto para a esquerda e para as lutas da classe trabalhadora na maior cidade do país, bem como as suas consequências para o cenário nacional.
O ponto de partida do balanço é o resultado alcançado pela campanha em termos políticos e eleitorais. A discussão “em termos políticos e eleitorais” acontece porque uma análise anticapitalista não se orienta meramente pelo número de votos alcançados pelas candidaturas em disputa, embora este não seja um dado desprezível. Fato é que a campanha do PSOL, a maior da história do partido na cidade, conquistou mais de dois milhões de votos no segundo turno e significou um fortalecimento importante nas posições da classe trabalhadora, que podem ser demonstrados de maneira sintética pelos seguintes fatores: a) o bolsonarismo, representado por Celso Russomano (Republicanos), foi derrotado ainda no primeiro turno; b) a esquerda chegou ao segundo turno e alcançou esse feito expressando um programa radical e classista que colocou em primeiro plano as pautas da maioria do povo explorado, oprimido e negro das periferias; c) a campanha de Guilherme Boulos contagiou o país, abrindo um novo momento para as lutas que virão a se desenvolver por todo o Brasil; d) a esquerda tem a oportunidade de reconstruir e avançar seu trabalho de base entre a maioria do povo em São Paulo, especialmente o PSOL; e) a esquerda ampliou sua bancada na câmara dos vereadores, com destaque novamente para o PSOL, que triplicou o seu tamanho, saltando de duas para seis cadeiras. O PT tem nove.
Ao longo do texto, cada um dos pontos citados acima será melhor desenvolvido e a conclusão apontará as tarefas colocadas para o próximo período, que será marcado pelos efeitos da pandemia da COVID-19, suas consequências econômicas, sociais e políticas e pelo desafio de enfrentar o projeto de Jair Bolsonaro.
Os acertos políticos da campanha
A política classista da campanha de Guilherme Boulos teve destaque do começo ao final do processo. Sob o mote “colocar a periferia no centro”, o PSOL defendeu um projeto de cidade para a maioria trabalhadora, oprimida e negra que além de sofrer com problemas históricos e estruturais comuns às grandes metrópoles latino americanas, também encara o legado das gestões elitistas e privatistas dos governos tucanos na cidade e no governo do estado de São Paulo.
As agendas da campanha foram prioritariamente construídas nas periferias, comunidades e favelas da cidade, sempre acompanhadas de lideranças locais que apresentavam seus problemas e demandas. Estas demandas sempre foram tratadas de maneira combinada com o incentivo a auto organização das comunidades, que deveriam servir como pontos de apoio para um eventual governo da esquerda na capital. Boulos afirmou em cada oportunidade que seu governo seria sustentado na organização do povo em cada território e que ele, como prefeito, não ficaria isolado em algum gabinete do Palácio de Governo.
O PSOL defendeu bandeiras fundamentais para a esquerda e denunciou a miséria, a exclusão social e a atuação das máfias da cidade. Boulos enfrentou a especulação imobiliária e questionou a propriedade privada para solucionar o problema da falta de moradia e os custos de reprodução da vida da classe; combateu a narrativa liberal de “responsabilidade fiscal” sem responsabilidade social, que inviabiliza políticas imediatas para aqueles que mais precisam; denunciou a “política tradicional” de governabilidade corrupta, que envolve os capitalistas e o poder público. Um dos destaques foi o escândalo relacionado ao candidato a vice-prefeito de Bruno Covas (PSDB) e o esquema de creches conveniadas.
A campanha do PSOL também combateu a omissão do PSDB em relação à pandemia e a falta de prioridade na atenção às periferias durante este período; defendeu a gratuidade do transporte para estudantes, desempregados e mães com crianças de colo; denunciou o assassinato racista de João Alberto, assim como a violência sistemática das forças de segurança contra a população preta e periférica, defendendo uma reestruturação no modelo de segurança pública da cidade; foi firme na defesa dos movimentos sociais e não vacilou em afirmar que a sua vitória em São Paulo seria um ponto de apoio fundamental para avançar na estratégia de derrotar Jair Bolsonaro.
É possível discutir alguns limites e problemas políticos da campanha, mas não houve da parte de Guilherme Boulos qualquer equivalente à “Carta ao povo brasileiro”, redigida por Lula em 2002, que firmou compromissos categóricos com a governabilidade das instituições do Estado.
O programa de Guilherme Boulos
O programa da campanha foi construído através de diferentes pontos de partida. O mais importante deles foi o acúmulo prévio das reivindicações de muitos movimentos sociais da cidade como o movimento feminista, o movimento negro, LGBTQIA+, estudantil, de direito a cidade, da população com deficiência, ecologista, etc. Boulos e Erundina vocalizaram bandeiras e propostas das mais importantes lutas que ocorreram em São Paulo no último período. Por outro lado, o empenho de especialistas de diferentes áreas e os grupos de discussão temáticos ajudaram a articular todas estas reivindicações a um plano que considerou as condições históricas e conjunturais colocadas.
Um programa eleitoral para uma municipalidade, por mais avançado que seja, não tem condições de resolver todos os problemas históricos da classe trabalhadora, mas serve como um ponto de apoio para avançar posições e solucionar problemas concretos. Podemos destacar três eixos fundamentais no programa apresentado pelo PSOL: a) plano emergencial de crise; b) enfrentamento à privatização e prioridade dos serviços públicos; c) governo popular, descentralizado e participativo.
A renda solidária foi uma proposta de emergência, que buscava atenuar os efeitos da crise decorrente da pandemia e responder ao problema da desigualdade em uma cidade de contradições escancaradas. Em relação ao emprego, as propostas versavam sobre a oferta de serviços de acordo com as demandas regionais, apostando em trabalhos de zeladoria num primeiro momento. As casas de acolhimento foram colocadas para iniciar a resolução do problema dos moradores de rua e a retomada dos mutirões -como na época do governo Erundina – para solucionar o problema da moradia.
O enfrentamento à política privatista se refletiu nas propostas de revisão de contratos, na denúncia das terceirizações na prefeitura (que são mais onerosas que a contratação direta) e na defesa da prioridade dos investimentos e dos serviços de caráter público.
Do ponto de vista da governabilidade, Boulos muitas vezes foi confrontado com o fato de a esquerda ser minoria na câmara dos vereadores. A resposta foi no sentido de defender um governo popular, apoiado nos conselhos participativos e deliberativos, onde o povo e suas lideranças locais sejam chamados a compartilhar as decisões executivas da prefeitura. Este foi um dos aspectos mais progressivos da campanha, uma vez que a esquerda socialista só poderá avançar em sua luta pelo poder político, nas municipalidades ou no governo federal, se ampliar sua relação orgânica com a classe, impulsionando organismos de poder real dos trabalhadores.
Arco de alianças
O PSOL contou com uma coligação restrita aos partidos do campo socialista, que envolveu o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e Unidade Popular pelo Socialismo (UP). Apesar da pequena frente, ela superou todas as expectativas, articulando um programa e uma política radicalmente de esquerda que empolgou uma ampla rede de militantes. A posição do PSOL em São Paulo serve também como uma lição para o esquerda no Brasil e suas discussões estratégicas atuais: para alcançar viabilidade e conquistar setores de massas não é necessário abaixar bandeiras ou costurar alianças com os nossos inimigos de classe, como defendem Ciro Gomes e algumas frações do PT e do PCdoB.
No segundo turno, outros partidos passaram a apoiar a chapa. Mas isso ocorreu sem modificações no programa ou na política inicialmente desenvolvida pelo PSOL. As novas incorporações foram dos seguintes partidos: PT, PCdoB, PDT, PSB e REDE. Esta nova unidade foi muito importante para aumentar a presença da campanha em variadas regiões da cidade, inclusive na periferia, onde o Partido dos Trabalhadores (PT) segue tendo peso significativo e orgânico. Mas a participação destes partidos no segundo turno ocorreu de maneira desigual: enquanto o PT e o PCdoB tiveram participação militante e ativa, sobretudo entre os bairros e comunidades, o PDT, o PSB e a REDE tiveram presença pontual nas agendas, sem ir muito além da orientação do voto para sua própria militância.
Boulos fez questão de frisar que a composição de um eventual governo deveria obedecer a critérios programáticos, afastando qualquer perspectiva de que os novos apoios representassem algum tipo de barganha futura. É importante destacar esse aspecto porque a presença de partidos de centro-esquerda sem uma orientação classista como PSB, PDT e REDE pode causar estranhamento para parte do ativismo que se engajou na campanha. Mas na medida em que estes partidos se submeteram ao programa do PSOL e não impuseram recuos na política ou nas propostas defendidas, fica melhor demonstrada a validade da tática.
Outra discussão que deriva desta análise – mas que hoje cabe ao mundo das especulações – é o que seria um eventual governo de Guilherme Boulos? Qual seria a composição de suas secretarias? Qual seria o peso no executivo dos partidos da esquerda socialista e dos outros que aderiram à campanha no segundo turno? Qual seria, enfim, a posição dos revolucionários diante de seu governo? Todas estas perguntas, embora sejam muito pertinentes, foram adiadas diante da derrota eleitoral que sofremos.
As pressões da burguesia contra a campanha
Era esperado que uma campanha da esquerda socialista no segundo turno da maior cidade do país sofresse com pressões para uma adaptação política e programática. As eleições são o terreno de disputa da burguesia e é muito difícil passar ileso pelas pressões do capital nesses processos. Bruno Covas, além de ter sido financiado por grandes grupos capitalistas, também contou com a máquina pública para favorecer sua campanha, chegando até mesmo a haver distribuição de cestas básicas tocando o jingle dos tucanos na reta final do segundo turno.
A campanha de Boulos, por outro lado, contou com recursos mais limitados e uma ampla campanha de arrecadação que envolveu gente de todo o país, além de artistas e figuras públicas de peso. A “vakinha” do PSOL só perdeu em arrecadação para a campanha de Bolsonaro em 2018.
Mas outro fato que chamou a atenção foram algumas reuniões de Boulos com empresários e associações comerciais para apresentar seu plano de governo e que acabou resultando até mesmo em um manifesto de investidores e empresários em apoio a sua campanha. É natural que a presença de um candidato socialista nos salões dos nossos inimigos de classe gere surpresas e desconfianças. As experiências recentes da governabilidade petista e de outros partidos da esquerda precisam ser confrontadas com um balanço sincero para extrair lições e criar condições para um verdadeiro enfrentamento contra a burguesia e seus interesses.
Em que pese a pressão, estas movimentações de Boulos também não resultaram recuos políticos e programáticos. Ainda assim, não podemos desconsiderar que entre aquilo que se defende na campanha e o que é possível aplicar na prática há uma significativa diferença e ela também é um produto da maneira como se enfrenta o problema das pressões. Trata-se de uma questão fundamental, que precisa ser encarada de frente e está ligada também ao balanço da esquerda no Brasil e em outras partes do mundo.
A capacidade de organização da campanha e as perspectivas para a esquerda em São Paulo
Um dos feitos mais importantes da campanha do PSOL em São Paulo foi a sua capacidade de mobilização, como há muitos anos não se via. Milhares de ativistas se mobilizaram para disputar os votos e ressignificar a maneira de fazer política, apesar da pandemia em curso.
Durante a pré-campanha dezenas de plenárias programáticas reuniram milhares de ativistas para discutir propostas e planos de governo. Daí derivaram outras dezenas de grupos de WhatsApp temáticos ou territoriais que foram responsáveis pelas iniciativas práticas da campanha. Desta forma, articulando a militância nas redes sociais, no WhatsApp e nas ruas, fomos capazes de construir uma campanha histórica. Muitos dos mais velhos, inclusive, faziam questão de comparar as nossas atividades às campanhas do PT no início dos anos 80. As bancas de panfletagem foram se multiplicando a cada dia e os materiais se esgotavam com facilidade nos comitês, tamanha era a sua procura. No segundo turno, São Paulo recebeu militantes de todos os cantos do país para fortalecer o nosso volume nas ruas.
Um outro feito de grande magnitude da campanha foi ter quebrado o monopólio do bolsonarismo e da extrema-direita nas redes sociais. Ficou demonstrado que é possível, com uma nova linguagem e muita criatividade, bater de frente com o poder econômico dos nossos inimigos, seus gabinetes do ódio e seus robôs. Manteve-se viva a esperança de vencer a máquina de fake news, que tanto prejudicou as eleições de 2018 e várias outras ao redor do mundo.
A juventude teve papel de destaque: além da participação ativa, 65% das intenções de voto dos jovens eram para o PSOL nos últimos dias de campanha. Foi esse setor que organizou a linha de frente das panfletagens, as iniciativas de redes e que virou o voto de seus familiares, apontando para o futuro e para uma nova forma de fazer política. Não conquistamos a maioria dos votos no pleito, mas caímos de pé e temos a energia necessária para seguir superando os desafios nos próximos anos.
O legado da campanha que mais precisa ser aproveitado pelo PSOL é a capilaridade alcançada na cidade. O partido pela primeira vez está diante da oportunidade de avançar qualitativamente na construção de núcleos e frentes de luta por todas as regiões do município, transformando-se em um partido mais organicamente ligado à maioria trabalhadora, explorada e oprimida.
Dentro das condições históricas e políticas colocadas, diante de um acúmulo de derrotas para esquerda brasileira desde 2016, Boulos e Erundina demonstraram que é possível construir um governo que atenda as demandas da maioria trabalhadora, negra e oprimida, avançando em seu nível de organização e mobilizando milhares contra a institucionalidade capitalista para arrancar conquistas e avanços concretos. E tudo isso sem capitular à direita, sem apostar em uma governabilidade com os vereadores fisiológicos da câmara e sem se curvar aos interesses das máfias da cidade.
As tarefas para o próximo período
As eleições melhoraram as perspectivas para a esquerda em 2021. Apesar de seguir em uma situação defensiva, existem melhores condições para avançar a batalha pelo Fora Bolsonaro, seu projeto econômico e a crise que se aprofunda com a vigência da pandemia. Uma das tarefas mais importantes no próximo período será a exigência de um plano nacional de vacinação que atenda a todos sem qualquer distinção. A luta para colocar as vidas acima dos lucros deverá seguir em primeiro plano.
Precisamos também colocar no centro da política da esquerda o combate antirracista em todas as frentes. O povo negro, além de ser o mais afetado pelos efeitos da pandemia e da crise econômica, segue enfrentando a violência sistemática do estado e das instituições como ficou escancarado com os casos recentes de João Alberto no Carrefour em Porto Alegre, de Emily e Rebeca ou Edson e Jorge, ambos no Rio de Janeiro.
Para avançar nessas e outras lutas, será imprescindível seguir a construção da Frente Única, buscando ampliar as nossas forças desde uma tática de unidade e independência de classe. A grande novidade colocada para o próximo período é a perda da hegemonia do PT na esquerda, ao menos em São Paulo – fato que tem peso e reverberação nacional e ocorre em meio a um importante processo de reorganização neste campo.
Mas a unidade e a construção da Frente Única não podem vir acompanhadas de outras táticas que signifiquem a rendição da esquerda, como infelizmente vem sinalizando alguns setores na ocasião da eleição para as presidências da Câmara e do Senado. Uma esquerda que abaixa suas bandeiras não tem condições de triunfar. O caminho para avançar posições e preparar a virada passa pela unidade com independência, um programa para a maioria e a mobilização de massas.
* Militante do Afronte-SP e integrante da coordenação de juventude da campanha Boulos e Erundina.
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