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CULTURA

AmarElo – É tudo pra ontem

Adriano Versiani, de São Luís (MA)
Divulgação/Internet

Antes de mais nada, importante dizer que o documentário é uma peça política, embora não seja partidária. Desta forma, a pretensão aqui é extrair da obra de arte o que ela pode nos ensinar, o que não quer dizer necessariamente que esta seja a opinião dos artistas executores.

O projeto estético AmarElo é uma peça rica e importante. Um documento histórico, que entra para a galeria das artes e que pode nos ajudar em realizar uma leitura social e política do Brasil.

Um ponto sensível para as esquerdas, sobre o qual é preciso muita reflexão — e que é retratado no documentário — são as chamadas pautas identitárias. Há quem delas se afaste, dizendo que o identitarismo é filho do liberalismo, tendo em vista o fato de focar no sujeito fragmentário pós-moderno; De outro lado há quem entenda que as pautas identitárias são um fim em si. Silvio Almeida, em laboriosa apresentação à edição brasileira do livro Armadilhas das identidades, nos chama a atenção para esse ciclo vicioso, dando a receita para sairmos de tal aporia:

E como o identitarismo paralisa a esquerda? Tornando-a refém da política identitária, o que pode acontecer de dois modos: 1) quando a esquerda só fala de identidade; 2) quando a esquerda se recusa a falar de identidade.1

AmarElo – É tudo pra ontem também vem ao mundo para nos esclarecer. As influências culturais de um povo, do nosso povo, são sempre híbridas e dialéticas. Elas se formam em tais condições. A cultura é um complexo dialético que forma nosso mundo e, justamente por isso, é constituinte e constituída por nossa atuação social. Dizendo de outro modo, a cultura nos forma e é ao mesmo tempo formada por nossas ações.

A identidade é um fenômeno que “corresponde ao modo que o Estado nos divide em indivíduos, e ao modo que formamos nossa individualidade em resposta a uma ampla gama de realizações sociais”2. Ao mesmo tempo em que é abstrata, se concretiza no plano dialético, quando está em ação, quando o eu entra em tensão com o outro.

Dessa forma, as identidades são parte do que somos e do que criamos. Embora exista, é verdade, o que chamam de identitarismo, não há pejoratividade na construção de identidades. As identidades formadas somos nós, nossas condições históricas e nossas vivências.

O documentário nos chama a atenção para a formação do Hip Hop brasileiro, que é parte da cultura nacional. Ao mesmo tempo em que tem influências do rap americano, também tem suas raízes no samba e no movimento modernista, sobretudo da semana de arte moderna de 1922. Portanto, uma cultura constituída no Brasil, que faz parte do nosso mundo.

A película nos chama atenção para a abolição da escravidão tardia que aconteceu em nosso país, bem como para o fato dela ter ocorrido sem qualquer política de inserção dos negros na sociedade. A história do rap brasileiro, portanto, não se inicia nos Estados Unidos, inicia-se quando os europeus decidiram sequestrar, esse foi o termo utilizado no filme, os negros em África e trazer para outro continente.

AmarElo passa de modo muito efetivo pela história de nosso país. Há ao mesmo tempo uma homenagem e uma declaração de influência relacionadas à semana de arte moderna, que deu espaço ao samba, na época marginalizado pelo fato de ser “som de preto”. O filme nos coloca diante de Oswald de Andrade que, em seu manifesto antropofágico, nos propõe engolir e deglutir outras culturas, para produzir arte nacional. É o que o Rap propõe. Bebe das mais diversas fontes e produz arte que fala sobre as identidades brasileiras.

Há um outro ponto no documentário que reputamos importante para esse contexto. É a utilização do Theatro Municipal de São Paulo como elemento emancipador. Esse movimento de luta por espaços públicos também é visto em outros momentos do filme, como nos planos em que é possível observar a cidade a partir da periferia ou do belíssimo depoimento do cantor e compositor Mateus Aleluia que comenta a respeito de quando o sino da igreja toca e é ouvido pelas pessoas do candomblé, que é criminalizado pela própria igreja. Nas palavras dele “Aquilo era bonito, mostrando que nós nascemos para viver incluído e não viver desassociado”.

AmarElo fala, portanto, de direito à cidade, que o lugar em que vivemos e onde as identidades são exercidas, guardadas nas memórias, construídas. Temos direito à vida urbana. As cidades não se esgotam em espaços físicos destinados às nossas unidades habitacionais. Ela pulsa.

Henri Lefebvre, talvez o primeiro teórico a falar sobre o direito à cidade, nos ensinou que elas têm sua dimensão material (praças, espaços públicos, ruas, arquitetura) e social (modo de vida, ocupação do tempo, relações sociais, memória coletiva, arte urbana)3. Essa segunda dimensão é criticada, criminalizada e prejudicada dia após dia. Tudo isso pertence a todos, muito embora a cidade moderna seja vista e conduzida como um lugar onde o capital estoca a mercadoria de onde extrai mais-valia.

O documentário nos mostra que a cidade é espaço comum, inclusive daqueles que lutam pelo reconhecimento de suas identidades. Só atuando dialeticamente na cidade, mostrando nossa cultura, nosso modo de vida, nossas lutas é que conseguiremos ser atores de luta por uma vida melhor, por uma emancipação humana completa. Uma cidade onde “o livre desenvolvimento de cada um é pressuposto para o livre desenvolvimento de todos”.

É preciso dialogar com as identidades e entre as identidades. A luta identitária, caso se valha da identidade como fim, “acaba reforçando as próprias normas que se propõe criticar”4, no entanto, a luta de classes, desacompanhada das lutas identitárias, é capenga.

 

 

1 HAIDER, Asad. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. 1.ed. São Paulo:venet, 2019, p.7.
2 HAIDER, Asad. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. 1.ed. São Paulo:venet, 2019, p.32.
3 Apud CHUECA, Eva Garcia. O direito à cidade perante as epistemologias do sul: reflexões sobre o processo brasileiro de construção do direito à cidade. In SANTOS, Boaventura de Sousa; MARTINS, Bruno Sena. O pluriverso dos direitos humanos: a diversidade das lutas por dignidade. 1.ed. Belo Horizonte: autêntica, 2019, p.399.
4 HAIDER, Asad. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. 1.ed. São Paulo:venet, 2019, p.46.

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