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MUNDO

Campanha por um único estado democrático em toda a Palestina

Waldo Mermestein*
ODSC/Reprodução

Há 73 anos, em 29 de novembro de 1947, a Assembleia Geral das Nações Unidas, presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha, aprovou um plano de partilha da Palestina Histórica, sem consultar a maioria de sua população (2/3 dela eram palestinos e somente 1/3 judeus) e outorgou 51% do seu território para um estado judaico e 49% para a maioria palestina. Ressalte-se que isso só foi possível porque os numerosos países que ainda eram colônias não integravam a ONU e porque obteve apoio unânime das grandes potências, incluindo a URSS dirigida por Stálin… Este foi um fato decisivo para selar o destino do povo palestino desde então.

No mesmo momento em que a ONU votava a partilha, as milícias que eram o embrião do que viria a ser o exército de Israel, comandadas pelos chamados “sionistas de esquerda”, já haviam começado seu plano de limpeza étnica do país. Metade da população palestina que viria a ser expulsa já o tinha sido, antes que qualquer soldado dos países árabes vizinhos tivesse sequer chegado à Palestina para evitar a tragédia. Esse processo de limpeza étnica, que teve um auge naqueles meses, continuou por mais de 7 décadas. O restante da Palestina foi ocupado pelos exércitos sionistas há mais 50 anos, em 1967. E a colonização dos territórios conquistados continua até hoje, enquanto os palestinos que habitam as fronteiras de 1948 de Israel são discriminados por uma miríade de leis que os reduzem a cidadãos de segunda categoria.

A malfada suposta solução de dois estados, surgida para tentar aplacar a Primeira Revolta geral palestina, a chamada primeira Intifada de 1987, que destinaria 22% do total da Palestina Histórica aos habitantes originais, nunca teve qualquer viabilidade porque Israel jamais cogitou em aceita-la, tendo continuado a ocupação paulatina de todo o país nas décadas seguintes.
As direções palestinas que ainda se apegam a essa miragem após tanto tempo estão cada vez mais desprestigiadas, pela sua passividade e colaboração com Israel e pelo regime despótico que impõem a seu próprio povo.

Por outro lado, a solidariedade internacional, representada em especial pelo BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções a Israel), seguindo o exemplo glorioso do boicote ao regime do apartheid sul-africanos, tem aumentado substancialmente e tem conquistado cada vez mais corações e mentes pelo mundo. Isso ocorre de forma muito especial entre a juventude e nas comunidades judaicas, em particular as mais numerosas como nos EUA, em que as novas gerações cada vez menos se sentem atraídas e ligadas a Israel e repudiam seus brutais atos profundamente colonialistas e racistas. Entre os palestinos na Palestina Histórica e na Diáspora cresce a consciência da inviabilidade da solução de dois estados e de que é preciso um novo programa, uma nova estratégia, levando a que surjam iniciativas para superá-la. Publicamos neste dia tão simbólico para a tragédia e a tenacidade da luta palestina uma dessas iniciativas, a Campanha por um único estado democrático em toda a Palestina, liderada por palestinos e da qual participam judeus israelenses, como o notável historiador Ilan Pappe. (https://onestatecampaign.org/en/archives/palestinians-and-israelis-call-for-a-single-democratic-state/)

 

“Palestinos e israelenses conclamam a Um Único Estado Democrático
15 de novembro de 2020

A Campanha por Um Único Estado Democrático (CPUED), liderada por Palestinos, composta por palestinos de todas as grandes comunidades (a de 1948. Da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, dos campos de refugiados e da Diáspora/Exílio), juntamente com seus inestimáveis parceiros judeus israelenses, lançou um chamado para o estabelecimento de um único estado democrático incluindo todos que vivem entre o Rio e o Mar, incluindo os refugiados palestinos que optarem por retornar à sua pátria.

Nos últimos 3 anos, a CPUED, fundada em Haifa, mas com ativas relações em toda a comunidade palestina pelo mundo, formulou um programa político de dez pontos [https://onestatecampaign.org/all/en-manifesto] estabelecendo uma visão e um marco geral de uma democracia compartilhada em que todos os habitantes da Palestina Histórica usufruiriam de uma cidadania comum e igualdade sob a lei em uma comunidade nova e plural. Após décadas em que a justiça pra a luta palestina contra a colonização sionista foi reconhecida pela comunidade internacional, após décadas perseguindo a quimera de uma “solução de dois estados” e após décadas de reivindicar os direitos dos palestinos sem nenhuma expressão política viável, a hora para uma campanha eficaz de descolonização e libertação é agora e é urgente. Cada dia que o governo de Israel, ajudado pela comunidade internacional, impõe “fatos no terreno” draconianos e irreversíveis, prendendo a maioria da população do país, os palestinos, em enclaves minúsculos e empobrecidos, perpetua também o exílio de metade da população palestina. Um estado democrático na Palestina Histórica não é uma utopia se nos organizarmos em torno de um programa político correto, organizarmos, buscarmos estratégias e mobilizarmos de forma eficaz nossas forças, as organizações de base globais, a sociedade civil internacional – vocês. Conclamamos vocês a se unirem à nossa Campanha por Um Único Estado Democrático e nos ajudarem a construi-la num movimento de libertação e anticolonial eficaz.

Para obter maiores informações contactar [email protected]. Muito trabalho ainda precisa ser realizado para dar corpo a nosso programa. Entendemos que não estaremos de acordo todos em cada um dos temas, mas nossa tarefa neste momento histórico é clara: armados com um programa político claro e convincente, precisamos ingressar totalmente na arena política. Conclamamos a toda a comunidade internacional, e especialmente a sociedade civil, a apoiar nosso Chamado por um estado democrático na Palestina Histórica. A hora chegou.

É nesse espírito de solidariedade, como parte de um processo de libertação, que estamos nos dirigindo a vocês para que se unam a nós, começando por apoiar nosso programa. A luta continua.”

 

 

 

 

Campanha por um Estado Democrático:

Manifesto

Preâmbulo

Nos últimos anos, ressurgiu a ideia de um estado democrático em toda a Palestina Histórica como a melhor solução para o conflito. Ela começou a receber um crescente apoio no domínio público. Ela não é uma ideia nova. O movimento de libertação palestina, antes da catástrofe de 1948 (a Nakba) e depois dela, tinha adotado essa visão, incluindo a Organização pela Libertação da Palestina. A OLP abandonou essa ideia no marco das negociações diplomáticas no final dos anos 1980, que levaram ao acordo de Oslo de 1993. A liderança palestina tinha a esperança de que esse acordo poderia possibilitar a construção de um estado palestino independente nos territórios ocupados por Israel em 1967. Mas Israel reforçou seu controle colonial, fragmentando a Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Gaza em cantões isolados e separados uns dos outros por assentamentos, checkpoints, bases militares e cercas.

A solução de dois estados, que é basicamente uma solução injusta, está claramente morta. Israel a enterrou profundamente sob suas políticas de assentamentos coloniais nos territórios que supostamente seriam transformados em um estado palestino independente. Israel impôs um regime repressivo único que se estende sobre todos os palestinos que vivem na Palestina Histórica, incluindo os que possuem cidadania israelense.

Tendo em vista esses acontecimentos perigosos e, o que é mais importante, baseados nos valores de justiça, liberdade e democracia, afirmamos que a única forma de alcançar justiça e uma paz permanente é a de desmantelar o regime colonial na Palestina Histórica e o estabelecimento de um novo sistema político baseado na igualdade civil total e na implementação completa do Direito de Retorno dos refugiados palestinos e a construção dos mecanismos necessários para corrigir as injustiças sofridas pelo povo palestino como resultado do projeto colonialista do sionismo.

Nesse contexto, muitos ativistas e grupos, palestinos e israelenses, começaram recentemente a reviver a ideia de um único estado, propondo diferentes modelos para tal estado, tais como um estado binacional, um estado democrático liberal e um estado socialista. No entanto, todos eles estão unidos em seu compromisso para o estabelecimento de um único estado democrático em toda a Palestina Histórica, como uma alternativa ao regime de apartheid colonial que Israel impôs sobre o país desde o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão. Um regime similar foi derrubado pela luta conjunta de sul-africanos negros e brancos sob a liderança do Congresso Nacional Africano em 1994.

O objetivo deste programa político, como formulado pela Campanha por Um Estado Democrático (CPUED), é o de ampliar o apoio para essa solução entre as populações locais, tanto palestinas como israelenses, e também entre a opinião pública internacional. Conclamamos a todos que lutam por liberdade e justiça no mundo a se associar e apoiar nossa luta contra esse regime de apartheid e pelo estabelecimento de um estado democrático livre da ocupação e do colonialismo, baseado na justiça e na igualdade, que garante um futuro melhor para as próximas gerações e uma paz real para todos na Palestina Histórica.

O programa político

    1. Uma democracia constitucional única. Um único estado democrático deve ser estabelecido entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão, como um estado que pertença a todos os seus cidadãos, incluindo os refugiados palestinos. Todos os cidadãos gozarão de direitos iguais, liberdade e segurança. O estado será uma democracia constitucional, a autoridade para governar e legislar emanará da vontade do povo. Todos os seus cidadãos terão direitos iguais para votar, designar candidatos para todos os postos e fazer parte do governo do país.
    2. Direito de Retorno, Restituição e Reintegração à Sociedade. O estado democrático único implementará totalmente o Direito de Retorno de todos os refugiados palestinos e seus descendentes, aqueles e aquelas que tenham sido expulsos(as) em 1948 e posteriormente, tanto os que vivem no exílio ou os que vivem atualmente na Palestina Histórica, incluindo os que possuem cidadania israelense. O Estado auxiliará no retorno a seu país e aos lugares de onde foram expulsos. O Estado os ajudará a reconstruir suas vidas pessoais e a serem totalmente reintegrados na sociedade, na economia e na vida política do país. O Estado fará tudo o que estiver em seu poder para restituir aos refugiados sua propriedade privada e/ou comunitária e/ou indenizá-los.
    3. Direitos individuais. Nenhuma lei, instituição ou práticas do Estado poderá discriminar seus cidadãos por critérios de identidade étnica, pertencimento nacional ou cultural ou em base à cor, gênero, língua, opinião política, propriedade ou orientação sexual. O Estado irá garantir a todos os seus cidadãos o direito de livre circulação e o direito a residir em qualquer lugar do país. O Estado irá garantir a todos os seus cidadãos direitos iguais em todos os níveis e instituições e irá garantir a liberdade de pensamento e de opinião. O Estado irá instituir o casamento civil, em paralelo ao casamento religioso.
    4. Direitos Coletivos. No marco de um único estado democrático, a Constituição irá também proteger os direitos coletivos e a liberdade de associação, seja nacional, étnica, religiosa ou de gênero. As garantias constitucionais assegurarão que todos os idiomas, artes e culturas poderão florescer e se desenvolver livremente. Nenhum grupo ou coletividade terá qualquer privilégio, nem nenhum grupo ou coletividade terá domínio sobre nenhum outro. A Constituição negará ao Parlamento a autoridade para promulgar quaisquer leis que discriminem contra qualquer comunidade, seja étnica, religiosa, cultural ou de classe.
    5. Imigração: Os procedimentos normais para a obtenção de cidadania serão estendidos a todos que desejarem imigrar ao país.
    6. Construindo uma sociedade civil em comum. O Estado deverá incentivar uma sociedade civil dinâmica composta por instituições civis comuns, em particular educacionais, culturais e econômicas.
    7. Economia e Justiça Econômica. Nossa visão busca atingir a justiça social e econômica. A política econômica precisa enfrentar as décadas de exploração e discriminação que semearam profundas brechas socioeconômicas entre as pessoas vivendo no país. A distribuição de renda em Israel/Palestina é mais desigual que em qualquer outro país do mundo. Um Estado que busque a justiça deverá desenvolver uma política econômica redistributiva criativa e de longo prazo para assegurar que todos os seus cidadãos tenham oportunidades iguais para o acesso à educação, emprego produtivo, segurança econômica e um nível de vida digno.
    8. Compromisso com os Direitos Humanos, com a Justiça e Paz. O Estado deverá respeitar o direito internacional e buscar a resolução pacífica dos conflitos por meio de negociações e a segurança coletiva de acordo com a Carta das Nações Unidas. O Estado irá assinar e ratificar todos os tratados internacionais sobre direitos humanos e seu povo deverá rejeitar o racismo e promover os direitos sociais, culturais e políticos como definidos nas convenções relevantes das Nações Unidas.
    9. Nosso papel na região. A CPUED se unirá a todas as forças progressistas no mundo árabe que lutam por democracia, justiça social e sociedades igualitárias livres da tirania e da dominação estrangeira. O Estado deverá buscar a democracia e a liberdade no Oriente Médio, para que os direitos dos povos da região e seus cidadãos sejam garantidos e suas muitas comunidades, religiões tradições e ideologias sejam respeitadas. Isso deverá incluir o respeito pelo direito dos povos de lutar por igualdade e liberdade de pensamento. Atingir justiça na Palestina irá contribuir significativamente para esses objetivos e para as aspirações dos povos da região.
    10. Responsabilidade internacional. Em um nível global, a CPUED se considera com uma parte das forças democráticas e progressistas lutando uma ordem global alternativa que deverá ser pluralista e sustentável, mais justa, igualitária e humanista e livre da exploração, do racismo, da intolerância, opressão, guerras, colonialismo e imperialismo. Essa nova ordem mundial será baseada nos direitos do povo à liberdade e distribuição justa dos recursos e irá proporcionar um meio ambiente sadio e sustentável.

 

*O texto reflete a opinião do autor e não necessariamente representa as posições do Esquerda Online.