O tema, muitas vezes, é tratado como sendo de menor importância, como papo de advogado e verborragia jurídica. Mas, na verdade, não é assim. A imposição do novo modelo de administração pública, se aprovado, significará uma transição para um modelo gerencialista, totalmente voltado ao mercado e disciplinado pelos interesses privados.
Muitas das normas jurídicas previstas numa Constituição – e particularmente a nossa – não são de aplicação imediata, mas estabelecem princípios e orientações programáticas para o Estado brasileiro.
Os princípios, embora gerais e abstratos, muitas vezes, são a base que fundamentam muitas decisões judiciais. O mesmo ocorre com as normas programáticas, embora essas sejam menos abstratas que os princípios, indicando diretamente o que se pretende alcançar ou o que deve ser a orientação a ser buscada pelo Estado. Das normas programáticas emergem direitos subjetivos, que podem ser reclamados frente à atuação pública e estatal.
A reforma de 1998 iniciou a transição para um novo modelo
Quando a Constituição Federal de 1988 foi promulgada, previa que a administração pública brasileira seria regida pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. A Emenda Constitucional 19/1998, aprovada no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) incluiu o princípio da eficiência.
Não caberia a ninguém questionar se a administração pública deve ou não ser eficiente, correto? Pois é. Mas, a introdução desse novo princípio foi a base para modificações importantes na organização dos serviços públicos, como a ideia do “serviço público não-estatal”, prestado por organizações supostamente sem fins lucrativos e que poderiam oferecer um serviço mais eficiente à população, o chamado terceiro setor.
Uma nova legislação foi adotada no Brasil permitindo que as OS (Organizações Sociais) e OSCIP (Organizações da Sociedade Civil Sem Fins Lucrativos) passassem a atuar no lugar do Estado, abrindo caminho para a privatização dos serviços em larga escala.
A pandemia da Covid-19 tem demonstrado que essas organizações, longe de se constituírem em instrumentos para a maior eficiência do serviço público, são, muitas vezes, comandadas por testas de ferro de políticos corruptos, organizações religiosas incrustradas nas administrações e mesmo milícias que controlam territórios e sustentam prefeitos e governadores país afora.
Eficiência também tem sido interpretada como fazer o mesmo gastando menos e essa concepção abre caminho para a retirada de direitos dos servidores e para a terceirização ampla, que resultam na perda da qualidade do serviço, ainda que se gastando menos.
O princípio da eficiência também tem sido invocado nas avaliações periódicas de desempenho dos servidores e a PEC 32 pretende se utilizar desse instrumento para a demissão de trabalhadores, a partir de uma avaliação discricionária feito pela sua chefia, que seria ocupada por um cargo de confiança nomeado pelo gestor público.
Longe de aperfeiçoar o serviço público, o que se pretende é criar um artifício para o controle político dos servidores, que estariam, permanentemente, com uma espada colocada sob as suas cabeças.
Os novos princípios previstos na PEC 32
O texto da PEC 32 propõe acrescentar, ao artigo 37, os novos princípios da imparcialidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública e subsidiariedade. Alguns desses princípios já estão implícitos no texto constitucional, por estarem previstos em outros artigos, mas foram previstos noutro contexto do debate.
Por isso, eles precisam ser reinterpretados à luz do caráter da “nova administração pública” proposta por Guedes/Bolsonaro. O que podemos observar do “conjunto da obra” proposta pela reforma, é que tais princípios representam um passo adiante na admissão de critérios advindos do mercado para o setor público, como o conceito de accountability, expresso nas ideias de responsabilidade, controle, transparência etc.
O princípio da inovação, por exemplo, pode ser entendido como a introdução cada vez mais ampla, nos serviços públicos, de tecnologias que retiram o servidor do atendimento direto à população, substituindo-o por plataformas digitais, inteligência artificial e outros mecanismos.
Vimos, recentemente, o caos em que se transformou o INSS com a retirada de milhares de servidores das agências. Essa medida criou inúmeros obstáculos à prestação do serviço à população que, muitas vezes, não tem acesso às tecnologias necessárias para o atendimento naquele órgão. O mesmo exemplo serve para a administração, em geral, e o governo não esconde o intento de diminuir drasticamente a força de trabalho no serviço público, tendo em vista um grande contingente de servidores prestes a se aposentar, particularmente na esfera federal.
O princípio da imparcialidade, também previsto na PEC, tem sido interpretado por muitos como a aplicação do princípio da “escola sem partido”, já que obrigaria a um professor, por exemplo, ao apresentar a teoria do Big Bang nas suas aulas, a ter que também apresentar o criacionismo, como duas vertentes de pensamento que explicariam o surgimento e a evolução da vida e do Universo. Isso tudo, no contexto de uma PEC que propõe a militarização das escolas e postos de saúde, ao permitir que militares da ativa acumulem funções no serviço público exercendo as atividades de professores, médicos, enfermeiros etc.
O mesmo princípio da imparcialidade pode também ser interpretado a justificar a desobrigação do Estado em não mais atender, prioritariamente, aos mais necessitados, aos setores mais vulneráveis da população, retrocedendo em políticas de assistência social que têm tido importância na mitigação da miserabilidade de grande parte da população brasileira.
O princípio da subsidiariedade também merece atenção. É um princípio que comporta várias interpretações jurídicas conforme o ramo do Direito ao qual se liga. No caso concreto da reforma administrativa, o princípio da subsidiariedade deve ser confrontado com o princípio da primariedade.
Ou seja, a iniciativa do Estado não mais seria preponderante, prevalecendo o equilíbrio ou mesmo a supremacia da atuação privada – ainda que outorgada pelo Estado – nas diversas áreas passíveis de atuação do poder público. É o que podemos concluir da autorização prevista na reforma administrativa para que o Estado possa “firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira”. (Art. 37-A)
A aplicação do princípio da subsidiariedade retira o Estado da atenção primária em determinada área e amplia as possibilidades de privatização dos serviços e da administração pública.
“Reserva de mercado” para o mercado
A reforma administrativa inclui um dispositivo, verdadeira norma programática, que veda ao Estado instituir medidas que gerem reservas de mercado que possam beneficiar agentes econômicos privados, empresas públicas ou sociedades de economia mista ou que impeçam a adoção de novos modelos favoráveis à livre concorrência.
O texto é cristalino: impõe limitações à atuação do Estado e favorece os agentes econômicos privados. Afinal, reserva de mercado diz respeito à criação de obstáculos para a atuação livre de empresas privadas, impedindo a importação de determinados produtos, por exemplo, em geral como forma de incentivo ao desenvolvimento da indústria nacional ou de determinada pesquisa científica em alguma área.
É, portanto, mais uma medida que dificulta a atuação das atuais empresas estatais e engessa a criação de novas empresas. Ainda por cima favorece o capital externo, pois afeta os programas de desenvolvimento setorial do BNDES, que não vai poder aportar recursos públicos em projetos privados nacionais. Ou, ainda, visa impedir algum benefício tributário às empresas nacionais frente à entrada de indústrias estrangeiras no país.
A Constituição não prevê regras mais benéficas à atuação das empresas públicas e sociedades de economia mista. Ao contrário, proíbe benefícios fiscais para o setor público que não sejam extensivos às empresas privadas e sujeita as estatais ao mesmo regime jurídico do setor privado. A orientação expressa na reforma administrativa é mais uma medida que aponta no sentido da abertura da economia e privatização de áreas econômicas porventura monopolizadas pelo Estado.
Conforme explica a economista Michelli Stumm, em artigo recentemente publicado, “a medida abriria concorrência nacional e internacional para empresas públicas e de economia mista. (…) A nova regra tornaria possível que um banco privado questionasse o papel preferencial do Banco do Brasil no financiamento da agricultura ou que uma multinacional petroleira pudesse participar de um leilão de exploração de energia nuclear e petróleo”. (1)
Como vemos, não se pode subestimar os novos mandamentos implícitos na reforma administrativa. As classes dominantes não perdem tempo com verborragia jurídica. Se pretendem alterar a Constituição, sabem bem para onde querem apontar suas armas.
NOTAS
1 – Stumm, Michelli. A política industrial do governo Bolsonaro – parte II. Disponível em https://nuancesblog.com/2020/09/23/a-politica-industrial-do-governo-bolsonaro-parte-ii/
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