A campanha eleitoral deste ano começou com um cenário tenso. O Brasil caminha para mais de 150 mil mortes pelo coronavírus, das quais mais de 18 mil no Rio de Janeiro. Um levantamento feito pelo grupo Covid-19 Analytics revelou que se o estado fosse um país seria o segundo em número de óbitos pela doença, por milhão de habitantes. As incontáveis perdas se somam à crise política e econômica, já em curso anteriormente, além de um esgotamento de muitos diante dos 7 meses de restrições devido à pandemia. Nesse contexto, temos que lidar com a sustentação do bolsonarismo e seus tentáculos. Lutar por uma outra realidade se reafirma, assim, em mais um gesto coletivo de resistência.
A campanha foi iniciada no dia 27 de setembro. Na mesma semana, o Ibope divulgou que Bolsonaro atingiu o maior nível de ótimo e bom do seu governo, com 40% de aprovação. O fato vem sendo atribuído por analistas ao efeito do auxílio emergencial. Isso porque ainda que tenha sido vitória da oposição, os R$ 600 são atribuídos, no imaginário popular, a uma política sua. Dessa forma, se em dezembro de 2019 Bolsonaro contava com apenas 19% de apoio entre os que ganham até um salário mínimo, em setembro de 2020 chegou a 35%. Isso é um divisor na margem de apoio do presidente, ainda que possivelmente com fôlego curto, já que o mesmo está se movimentando para a supressão da política de renda mínima.
Para além dos mais necessitados, com possíveis deslocamentos nesta faixa do que constituiu uma base histórica do lulismo, é fundamental nossa reflexão também sobre a resiliência daqueles que o apoiam por acordo programático. Existe aí um setor conservador mobilizado, fascistizado, que olha queimadas por todo o Brasil, políticas de morte, desamparo de crianças violentadas, e não esboça qualquer solidariedade ou crítica à política geradora de tamanhas violações.
No Rio, esse cenário se agrava em um contexto crítico, social e econômico. É importante percebermos como a Covid-19 acentuou uma crise já em andamento, cujo processo se retroalimenta, em forma de espiral, com fôlego desde 2016: data do golpe contra Dilma Rousseff (PT), desencadeando uma situação reacionária no país, com muitos ataques aos trabalhadores/as; das Olimpíadas, último de uma bateria de megaeventos no estado, com todo o preço pago em seu nome pelas ações elitistas levadas a cabo por Eduardo Paes (prefeito pelo PMDB) e Sérgio Cabral (governador pelo PMDB); bem como marca o fim da aliança política que efetivava um amplo domínio da política carioca e fluminense, baseada no acordo entre PMDB, a nível local, e PT, a nível nacional. Assim, desde então, o bloco de poder protagonizado pelo PMDB (atual MDB) foi dissolvido, com um sem-número de prisões e renúncias de seus representantes. É bastante sintomático o fato do partido ter eleito a maior bancada em 2016, com 10 vereadores, terminando agora a gestão com apenas 1 na legenda – Paulo Messina, atual candidato a prefeito.
Desde então, um pacto de poder local não foi reestabelecido, com disputas relevantes no andar de cima. O meteoro da gestão de Witzel (PSC), com a força do seu crescimento e a derrota de sua queda, é bastante representativo da batalha entre os setores dominantes. Nesse sentido, a aposta atual de Bolsonaro e seu clã é reforçar o apoio à reeleição de Crivella, optando pela aliança com o fundamentalismo religioso e a manutenção de suas bases conservadoras.
Toda essa crise amplifica problemas históricos profundos. É o caso da lógica assassina e racista que governa o Rio desde a colônia, intensificada com a mudança da família imperial para nossas terras. A violência contra a negritude se transformou em ação contra a favela, como se vê nas políticas de militarização arbitrárias e desproporcionais até hoje. Nos últimos anos, a ocupação armada de territórios se evidenciou, seja pelas operações policiais, pela presença do tráfico, ou da milícia. Nessa toada, a suspensão da portaria sobre o rastreamento de armas e munições por Bolsonaro, logo no início da pandemia, foi mais um golpe favorecendo setores que se beneficiam diretamente do tráfico de armas no país. De outro lado, a justiça concedeu um pedido para suspensão das operações policiais durante a pandemia no estado, o que foi uma importante vitória do movimento de favelas.
As eleições desse ano são, portanto, as primeiras após a ascensão da extrema-direita ao poder, na qual Bolsonaro e seus aliados devem buscar ganhar posições e ampliar sua base de apoio. No Rio, o aprofundamento da conjuntura crítica leva a uma situação especialmente instável, com os dois principais candidatos à prefeitura diretamente ameaçados por processos judiciais. Crivella (Republicanos) após um governo sofrível, repetidas crises e baixa popularidade, enfrenta, além do risco de ser julgado inelegível, um processo de sangria, acossado por diversos pedidos de impeachment. Para se manter viável, reforça a sua associação com o bolsonarismo e tenta fazer valer o enorme peso social do conservadorismo religioso. Eduardo Paes (DEM), por sua vez, busca contar com a memória de uma administração anterior ao aprofundamento da crise no Rio. Seu posicionamento a respeito do bolsonarismo será, provavelmente, oscilante.
São também as primeiras eleições em um longo tempo que o PSOL não tem, de partida, a candidatura de maior peso na esquerda carioca. Com Renata Souza ainda pouco conhecida e sentindo o impacto de múltiplas crises desde a retirada da candidatura de Marcelo Freixo, o PSOL enfrentará pela primeira vez no plano municipal a pressão do voto útil, em busca de uma alternativa mais consolidada que represente a oposição à Crivella e à extrema-direita. É uma pressão que pode alimentar as candidaturas de Benedita, Martha Rocha e, mesmo, de Paes.
De outro lado, não seria prudente descartar de imediato o crescimento da candidatura do PSOL. Afinal, não seria a primeira vez que uma candidatura do partido no Rio começaria pequena e apresentaria um rápido crescimento, a partir da campanha e apresentação de nossas propostas. Essa nossa aposta é reforçada pelo fato de que o partido conta nesta eleição com uma chapa proporcional especialmente forte, com diversos nomes com grande potencial eleitoral, além de uma inserção social relevante construída por meio dos núcleos e setoriais, bem como do trabalho dos mandatos parlamentares na cidade.
Além disso, o PSOL local pode se beneficiar do bom desempenho de diversas candidaturas de peso pelo país. Assim, apesar da tendência à continuidade da onda de avanço conservador na sociedade brasileira, de forma geral nota-se também a manutenção do crescimento da influência política do PSOL, podendo significar um dos seus melhores resultados nas urnas até agora. Além do aumento das bancadas, algumas importantes cidades estão revelando um crescimento expressivo nas candidaturas majoritárias. É o caso das campanhas de Aurea Carlina (BH), Guilherme Boulos (SP), Edmilson Rodrigues (Belém), Elson Pereira (Florianópolis).
Boulos é um dos casos que mais tem expressado um acerto político do PSOL, diante de uma conjuntura tão difícil. Em terceiro lugar nas pesquisas da maior cidade do país, o candidato reposiciona o partido nesse importante território, e essa força se sente em todo país. O fenômeno é fruto de uma caminhada coletiva dos últimos anos. A construção da Povo Sem Medo, para reunir lutadores contra o golpe e o conjunto de medidas regressivas que tomaram conta da agenda política desde 2016 revela-se como um acerto fundamental dessa disputa. Assim, ao mesmo tempo em que a candidatura presidencial de 2018 ficou espremida entre a polarização Bolsonaro x Haddad, a aposta nos movimentos da classe, orientada por um programa de esquerda, e na política de frente de esquerda junto com os partidos e movimentos referenciados no petismo, tem revelado a sua importância.
Também em terceiro lugar, a campanha de Áurea Carolina vem conquistando os corações e mentes em Belo Horizonte, outro importante centro político nacional. Por sua vez, Edimilson, no Pará, apresenta grandes chances eleitorais. O candidato já foi prefeito duas vezes no passado, ainda pelo PT, e já consolidado como uma referência do PSOL, está se consolidando como uma importante disputa. Segundo pesquisa do Ibope divulgada este sábado (3), Edimilson conta com 39% das intenções de voto, seguido por Priante (MDB), com 10%.
No entanto, apesar desses casos, que expressam acúmulos de forças dos últimos anos, a política de frente de esquerda avançou pouco no país. Nota-se como o PT segue apostando na conciliação de classes e na sua autoproclamação como direção da política de esquerda nacional, sem formar uma frente que seja construída junto com os demais partidos da esquerda e movimentos sociais. De nossa parte, acreditamos que essa ação segue necessária e fundamental, de modo a resistirmos à enxurrada de retirada de direitos pela qual passamos nos últimos anos. As eleições refletem, portanto, um fenômeno geral, que se expressa também nas ruas, com poucos avanços no sentido de um fortalecimento e unidade das lutas sociais.
No caso do Rio, a candidatura de Freixo seria a única capaz de pressionar por uma frente de esquerda. No entanto, com sua retirada tal hipótese saiu do cenário. A candidatura de Renata expressa possibilidades políticas distintas do PSOL. Organizar setores mais populares é uma grande potencialidade colocada, junto com o vínculo com movimentos feministas e de negritude. No entanto, o arrefecimento nas ruas e o crescimento conservador tem sido o cenário também de um momento de desmobilização, agravado pelo desgaste com a pandemia.
A esse respeito, a política de redes constitui um dos grandes desafios, e já se nota um avanço expressivo nas campanhas eleitorais em curso. Seguimos nos acúmulos também de como ocupar as ruas, atentos/as e debatendo a necessidade de ações de enfrentamento à pandemia. Afinal, ambas são políticas pela vida, a manutenção do isolamento, quando possível, e medidas sanitárias, combinado com a disputa política nessa batalha eleitoral, contra o bolsonarismo e a direita. A esse respeito, o anúncio da Globo sobre não garantir em seu debate a participação de todos os candidatos, mostra-se como mais uma ação de fechamento de espaços políticos, justificada pela pandemia.
Sobre os desafios eleitorais, reforçamos também a necessidade de unir as pautas das opressões com as lutas gerais por direitos, como bem nos ensina a concepção do feminismo para os 99%. Isso vem sendo um elemento fundamental para pensarmos o processo político contemporâneo. A necessidade colocada é de não cairmos nas armadilhas do identitarismo vazio, que fragmenta as opressões dos enfrentamentos gerais da classe trabalhadora, mas tampouco abrir mão de identificar a força e a urgência da luta das mulheres, na negritude, dos lgbts, e saber articulá-las com as pautas políticas que se atravessam.
Por fim, destacamos a consciência do PSOL como um partido que segue necessário, o que tem se expressado mais uma vez nessas eleições, e precisa ser afirmado. Queremos que o partido siga amplo, organizando as múltiplas expressões de lutadores e lutadoras sociais, com garantia dos espaços de decisão democráticos e participação da base. Além disso, acreditamos na importância de forjar, no interior no PSOL, um polo também de aglutinação de revolucionários, nos permitindo disputar a grande política e influenciar no movimento de massas, crescendo na propaganda socialista em compasso com o crescimento geral do PSOL.
Nosso desafio nesta eleição, afinal, é enxergar que a caminhada não acaba nela. O processo de reconstrução de uma esquerda expressiva no Brasil é lento, e a caminhada dessa construção é em si mesma a sua própria busca, como nos ensinou o mestre Paulo Freire. As eleições nesse ano apresentam, sobretudo, a tarefa de acumularmos forças nesse período amargo que se abriu, e diante dessa burguesia assassina e colonizada que nos governa. Além disso, as manifestações contra o genocídio da negritude, a greve da educação pela vida, a greve de trabalhadores de aplicativos por direitos, são expressões que ocorreram na pandemia que sinalizam movimentações muito importantes na dinâmica das lutas sociais. Nesse contexto, nossa principal tarefa na disputa deste ano é lutar para impor uma derrota política ao bolsonarismo. Nessa tarefa histórica, que não se esgota nas eleições, o PSOL segue se provando como um passo necessário e acertado para a recomposição da esquerda no cenário nacional.
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