Por: Henrique Canary, colunista do Esquerda Online
A participação de policiais militares nas manifestações do funcionalismo público do Rio de Janeiro abriu um interessante debate dentro da esquerda. Não bastasse o caso ser complexo por si só, a questão se tornou ainda mais difícil depois dos episódios de intimidação contra trabalhadores da saúde e da educação por parte de policiais, agentes penitenciários e até bombeiros dentro da manifestação. Segundo relatos, houve tentativas de forçar os professores a baixar a bandeira do SEPE, o sindicato da categoria, e ecoaram chamados à intervenção militar no país e gritos de apoio a Bolsonaro e Sergio Moro. De outro lado, tivemos a imagem dos dois policiais que abandonaram o Batalhão do Choque e se recusaram a participar da repressão. Como não poderia deixar de ser, a discussão dentro da esquerda foi grande: É progressivo? Não é? Devemos apoiar? Não devemos?
Alguns companheiros lembraram a posição histórica dos marxistas em relação às forças armadas: separar a baixa oficialidade dos comandantes de alta patente e trazer os soldados para o lado do povo. Outros, ao contrário, afirmaram que a PM é uma força assassina que não pode ser igualada ao exército regular e que, portanto, não cabe qualquer apoio às suas demandas corporativas. Darei aqui uma primeira opinião, parcial e ligeira, mas que talvez ajude no debate.
Para começar, direi que, a meu ver, na discussão sobre a relação da esquerda com a Polícia Militar e suas lutas econômicas, se confundem duas questões: o problema sociológico (O que é a PM?) e o problema político (O que fazer quando os policiais militares lutam por salário?). Estas duas questões estão relacionadas, mas não são exatamente iguais. A questão sociológica define a relação geral da esquerda para com a PM, mas não resolve cada caso concreto. A questão política não deriva de forma linear e mecânica da questão sociológica. Há mediações. Vamos a elas.
A questão sociológica
Desde o ponto de vista da sociologia marxista, os policiais militares não devem ser considerados parte da classe trabalhadora. Esta é uma primeira e importantíssima definição. A classe trabalhadora, ou proletariado, é o conjunto de indivíduos que, com seu trabalho, contribuem de alguma forma com a reprodução ampliada do capital, quer dizer: promovem, direta ou indiretamente, o lucro dos capitalistas. Naturalmente, devemos considerar os servidores públicos em geral parte do proletariado, ainda que não sejam explorados por nenhum capitalista em particular. Ainda assim, eles são proletários porque cumprem funções socialmente necessárias ao bom andamento da sociedade: ensinam, curam, organizam papeis, atendem o público etc. Desta forma, contribuem indiretamente para a acumulação capitalista.
Mas, com os agentes da segurança pública, principalmente a Polícia Militar, as coisas são diferentes. Sua função é absolutamente específica e não está ligada ao processo produtivo, nem mesmo indiretamente: são agentes da repressão. Esta é sua função social específica. Os agentes da repressão não são parte da oposição capital-trabalho. Ou pelo menos não o são desde um ponto do vista do trabalho. Ao contrário: são agentes do capital para a opressão do trabalho. Sua condição se assemelha muito mais a de mercenários que venderam a sua alma do que trabalhadores que vendem sua força de trabalho.
O fato dos policiais militares receberem um salário não determina, por si só, sua posição social. O assalariamento é um fator importante na sociedade capitalista. Ele determina, em linhas gerais, as fronteiras da classe trabalhadora. Mas, não é um critério absoluto. Um membro do Conselho de Administração da Petrobrás, que recebe um ‘salário’ de alguns milhares de reais, não é um trabalhador da Petrobrás. É um administrador, portanto, um inimigo dos trabalhadores. Neste caso, seu ‘salário’ é, na verdade, uma forma disfarçada de receber os dividendos da empresa.
Um juiz, que também recebe um salário de algumas dezenas de milhares de reais, não é um trabalhador do Judiciário. É parte da direção do Estado burguês. E portanto, inimigo dos trabalhadores. Desde um ponto de vista marxista, nem o membro do Conselho de Administração da Petrobrás, nem o juiz realizam trabalho.
Com a PM ocorre algo parecido. Quando um policial militar reprime uma manifestação, ele não está realizando um trabalho. Está realizando repressão. Logo, não é um trabalhador. É um repressor, inimigo dos trabalhadores. O fato do seu salário ser muito menor do que o de um juiz, ou de um membro do Conselho de Administração da Petrobrás não muda em nada a situação. Neste caso, a máxima marxista “o ser determina a consciência” não deve ser entendida como “recebe salário baixo = trabalhador explorado”. Aqui o “ser” do policial não é a sua condição de assalariado, mas sua função repressiva. Esta é sua natureza. É isso que ele é. É isso que determinará sua consciência.
A questão política
Do que dissemos até aqui, poderia se concluir que jamais a classe trabalhadora deveria apoiar uma manifestação de policiais militares porque isso seria apoiar a luta de seus inimigos. Mas isso não é assim. Entre a sociologia e a política, como dissemos, há uma medição. E a mediação é o interesse da classe trabalhadora.
Afirmo categoricamente que, apesar da natureza repressiva e anti-proletária da PM, a classe trabalhadora deve apoiar as lutas econômicas dos policiais militares e outros agentes da repressão. Por que? Por uma razão muito simples e concreta: porque quando os policiais militares fazem greve, ou se enfrentam com um plano de ajuste do governo, isso é ruim para o governo, fragiliza a disciplina da tropa e, simetricamente, beneficia os trabalhadores. A luta econômica dos policiais militares, apesar de seu caráter corporativo, leva uma parte das contradições da sociedade para dentro do regimento, opõe soldados e coronéis, sargentos e comandantes, provoca deslocamentos em indivíduos isolados, ou mesmo em grupos.
O que era disciplina cega e obediência absoluta se torna dúvida e hesitação. Por um instante, o ódio que os agentes repressivos em geral sentem pelos negros e pobres se volta contra o governo e seus comandantes. A classe trabalhadora deve aproveitar essa pequena brecha, quase sempre de curta duração, para provocar ainda mais a degradação das forças repressivas, a indisciplina dos soldados.
Confiar apenas em suas próprias forças
Se no momento decisivo do assalto ao poder vamos ganhar ou não para o lado da classe trabalhadora batalhões inteiros de policiais militares, isso só o futuro poderá dizer. Talvez isso não seja realmente possível. Mas, talvez seja possível paralisar a ação da repressão, criar a instabilidade, o medo e o caos em seu seio. Muitos processos revolucionários dão prova de que isso é possível, mesmo em relação às polícias mais reacionárias.
A famosa “Okhrana”, a temida polícia política czarista dos tempos da Revolução Russa, não se dividiu no momento da revolução. Seus agentes simplesmente se esconderam ou fugiram. Então, quando falamos de uma revolução, muitos cenários estão colocados. De qualquer forma, não se trata disso hoje. Hoje se trata de derrotar um plano de ajuste que ataca o conjunto dos servidores do estado do Rio de Janeiro, inclusive os agentes repressivos. Nesse contexto específico, os policiais militares são aliados temporários, instáveis e nada confiáveis, mas ainda assim: aliados. Amanhã voltarão a reprimir? Não tenho dúvidas disso. Mas, a luta é hoje, para derrubar esta cerca, em frente a esta Assembleia Legislativa.
Desde esse ponto de vista, é preciso dar razão a um alerta específico feito por aqueles que defendem que não devemos nos aliar aos policiais militares em luta: o de que os trabalhadores devem confiar unicamente em suas próprias forças. Concordo integralmente com esse alerta. Este, aliás, é o único guia seguro na intrincada luta da classe trabalhadora por sua libertação. Confiar unicamente em suas próprias forças! Organizar sua própria auto-defesa! Mas, junto com isso: aproveitar cada fraqueza do inimigo para introduzir em suas fileiras a desordem e a confusão.
A imagem dos dois policiais do Batalhão de Choque abandonando sua própria tropa para se juntar à manifestação é, por isso, uma vitória da classe trabalhadora e uma derrota equivalente de seus inimigos.
Foto: Julio Trindade/Arquivo Pessoal
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