ENGLISH – Inflation hits the poorest
ESPAÑOL – La inflácion golpe a los más pobres
Os índices de inflação recentemente divulgados pelo IBGE escancararam uma realidade que se acumulava ao longo dos últimos meses: enquanto o índice geral de preços ao consumidor teve aumento de 2,44% nos últimos 12 meses, os alimentos subiram 11,39%. Apenas nesse ano, os alimentos já encareceram 6,10%.
A inflação para as famílias mais pobres, em agosto, teve alta de 0,38%, enquanto a faixa de renda mais alta registrou deflação de 0,10%, segundo o IPEA. Evidentemente, os maiores afetados por essa situação são os setores mais pauperizados da classe trabalhadora, em especial, os negros, mulheres e LGBTs. Cotidianamente, são esses que comprometem a maior fatia do orçamento doméstico com a compra de alimentos.
Como veremos a seguir, esse cenário resulta tanto do pleno funcionamento da dinâmica produtiva capitalista, quanto das escolhas políticas do governo Bolsonaro.
Lógica capitalista e disparada da inflação
Ao explicarem a disparada inflacionária dos alimentos, os economistas da ortodoxia neoliberal focam em elementos conjunturais. Enfatizam o patamar de elevada valorização do dólar frente ao real, o que torna a exportação das culturas mais atrativa do que a comercialização no Brasil. De maneira complementar, enfatizam o aumento da demanda (interna e externa) no contexto da pandemia como um fator de desequilíbrio na relação entre oferta e procura.
Já Bolsonaro, em seus pronunciamentos públicos, tem feito apelos para que os mercados varejistas reduzam o preço dos produtos destinados ao consumidor final. Assim, de certa maneira, dá a entender que a inflação seria decorrente da ganância e da atividade especuladora dos proprietários desses mercados.
Ambas as abordagens ressaltam aspectos reais da atual conjuntura. Entretanto, ao apontar unicamente desequilíbrios momentâneos e/ou comportamentos individuais como causas, mantém ocultos os mecanismos estruturais em atuação. Em outras palavras, não indicam que esse cenário resulta do funcionamento normal da lógica capitalista.
O caso do arroz é bastante ilustrativo dessa lógica, uma vez que mesmo o Brasil sendo um dos dez maiores produtores do mundo, os preços do produto dispararam. Uma saca de cinco quilos, até recentemente vendida por cerca de 15 reais, hoje já chega a custar 40 reais. Nos últimos anos, a produção nacional encolheu significativamente. Entre 2019 e 2020, por exemplo, o Rio Grande do Sul – onde se concentra a maior parte da produção brasileira – viu a área de cultivo do arroz se reduzir em 15%1. Boa parte das terras assim liberadas foi convertida para outros cultivos cujos preços no mercado internacional estavam mais atraentes, como a soja.
Vê-se, portanto, que a lógica capitalista da busca pela maximização dos lucros incide não apenas no momento de comercialização dos produtos, mas na própria determinação daquilo que vai ser produzido. Essas escolhas, em associação com a ausência de uma política efetiva de estocagem de grãos, acabaram por limitar a capacidade de oferta de arroz no país.
Esse cenário é agravado pela dependência externa estrutural que caracteriza a economia brasileira. É essa condição que explica tanto a desvalorização do real, quanto o elevado e crescente peso do setor agrário em nossa economia. Incapaz de dinamizar sua economia com um grau significativo de autonomia, o Brasil vê a produção desse setor sendo cada vez mais orientada para o comércio exterior. É apenas a partir da consideração desse somatório de fatores estruturais que é possível compreender a profundidade do impacto de elementos conjunturais e, consequentemente, também o grau de aceleração da inflação dos alimentos.
A dramaticidade da crise social
A disparada dos preços dos alimentos ocorre em meio a uma profunda crise social no Brasil. Segundo dados do IBGE referentes ao mês de julho, o país tem quase 13 milhões de desempregados, 5 milhões de desalentados (já desistiram até de procurar emprego), 28 milhões de trabalhadores subutilizados (gostariam de trabalhar mais horas por semana) e 34 milhões de trabalhadores informais, com escassos direitos2.
Coerente com seu projeto de garantir a lucratividade do capital pelo brutal rebaixamento das condições de vida da classe trabalhadora, o governo Bolsonaro nada faz para melhorar essa situação. Assim, nos próximos meses, a tendência é que esse cenário fique ainda pior. Sem qualquer reação do governo, já foram anunciadas demissões em massa em diversas empresas e setores, como a Embraer (2500 trabalhadores) e os docentes do ensino superior privado (1.800 trabalhadores, apenas no estado de São Paulo)3. Paralelamente, Bolsonaro já conseguiu reduzir o valor do auxílio emergencial de 600 para 300 reais (sendo que sua proposta inicial era de 200 reais).
Diante desse quadro, o aumento descontrolado do preço dos alimentos tem o potencial para gerar uma verdadeira catástrofe. Milhões de famílias trabalhadoras estão tendo que adaptar a dieta familiar (em geral, reduzindo a ingestão de calorias e nutrientes), ou sendo simplesmente empurradas para uma situação de fome.
Por um programa anticapitalista que garanta a soberania alimentar
Esse cenário de generalização da fome em um país responsável por parte significativa da produção mundial de alimentos só poderá ser efetivamente superado por meio do completo abandono da lógica capitalista. Em lugar da busca pelo máximo lucro individual, é preciso construir uma ordem social pautada pelo máximo bem-estar coletivo.
Alguns exemplos dessa lógica alternativa podem ser encontrados no nosso presente. Inúmeras cooperativas do MST que produzem arroz orgânico, por exemplo, já declararam publicamente que não vão aproveitar esse momento para ampliar suas margens de lucro à custa dos salários dos trabalhadores. Por isso, manterão seus preços nos patamares anteriores à disparada da inflação. Não por acaso, o MST e suas cooperativas também foram responsáveis pela doação de toneladas de alimentos para famílias de trabalhadores em dificuldades por conta da pandemia de Covid-194.
Nosso desafio é ampliar essa lógica para o conjunto da sociedade, subordinando a ela toda a produção social. Trata-se, portanto, de garantir a soberania alimentar por meio da planificação econômica democrática, com ampla participação da classe trabalhadora.
No curto prazo, entretanto, algumas medidas emergenciais são necessárias para evitar uma tragédia social ainda maior. Dentre elas, é possível apontar: aumento do auxílio emergencial para o valor de um salário mínimo; proibição de demissões em massa; reforma agrária para beneficiar pequenos produtores e ampliação do financiamento à agricultura familiar, que é a principal responsável pela produção de alimentos no país; e controle dos preços praticados pelos comerciantes varejistas.
Enfrentando diretamente os interesses de variados setores capitalistas, esse programa pode colocar em movimento a classe trabalhadora por meio da defesa de seus interesses imediatos. Ao mesmo tempo, aponta para a possibilidade de construção e fortalecimento de uma ordem social que supere o capitalismo. O primeiro passo para a sua concretização é a formação de uma efetiva Frente Única de trabalhadores urbanos e rurais, por meio de seus partidos, movimentos e demais entidades, como PSOL, PCB, PT, PCdoB, MTST, APIB, MST, coletivos de negras e negros, feministas, LGBTs etc.
NOTAS
1 https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/09/08/preco-do-arroz-dispara.htm.
2 https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/05/28/internas_economia,858965/12-8-milhoes-de-brasileiros-estao-desempregados-aponta-ibge.shtml; https://www.redebrasilatual.com.br/economia/2020/08/em-tres-meses-9-milhoes-deixam-o-mercado-de-trabalho-desemprego-pega-formais-e-informais/.
3 https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2020/09/03/embraer-anuncia-demissao-em-massa-de-900-funcionarios-nas-fabricas-do-brasil.ghtml; https://catracalivre.com.br/educacao/mais-de-1-800-professores-universitarios-foram-demitidos-em-meio-a-pandemia/.
4 https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2020/09/mst-anuncia-que-mantera-arroz-organico-a-um-preco-justo/.
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