O internacionalismo nunca foi o ponto forte da esquerda brasileira. Somos autocentrados. Mas estamos piorando, infelizmente. Em 2017 existiu perigo real e iminente de golpe na Venezuela, um ano depois do golpe institucional que derrubou o governo de Dilma Rousseff, e nossa capacidade de organizar mobilizações foi raquítica. No ano passado, o golpe foi na Bolívia e, novamente, nossa resposta foi liliputiana. Foram articulados comitês de solidariedade, mas a capacidade dos partidos de esquerda e movimentos sociais de motivar a militância muito reduzida.
No ano passado rebeliões de massas, na escala monumental de milhões de trabalhadores e jovens em marchas, concentrações e greves fizeram tremer os governos do Chile e da Argélia. A repercussão das mobilizações em Santiago foi maior do que em Argel, porque, compreensivelmente, ao nos localizarmos mais próximos, o impacto é maior. Mas, sejamos honestos, foi pequena.
Este ano estamos diante da maior onda de manifestações contra o racismo nos EUA desde os anos sessenta. A comoção entre nós foi maior, porque afinal o Brasil é um país em que a população negra é maioria. Mas é um pouco desanimador que prevaleça um embaraçado silêncio sobre as impressionantes mobilizações democráticas na Bielorússia. Ainda que estejamos considerando uma nação que se localiza, remotamente, entre a Polônia e a Rússia. Porque o que está acontecendo na Bielorússia é um processo de revolução democrática clássico: as mulheres na primeira linha desafiando a repressão, a classe operária exigindo o fim do regime de Lukashenko, a juventude nas ruas, a intelectualidade, tendo à frente a escritora Svetlana Alexievich prêmio Nobel de literatura em 2015 sendo levada para interrogatório, mobilizações diárias nas grandes, médias e até pequenas cidades, centenas de milhares nas ruas de Misnk aos domingos e, finalmente, greve geral.
Nunca aconteceram processos revolucionários “quimicamente” puros. A idealização da luta social é uma romantização da história. Na vida real as lutas sociais são sempre processos complexos em disputa permanente. Mas quatro fatores foram sempre a bússola dos marxistas para decidir se uma mobilização social era progressiva ou reacionária: (a) qual é o programa, ou seja, quais são as reivindicações que colocam a mobilização em marcha; (b) quem é o sujeito social, ou seja, as classes ou bloco social à frente das lutas; (c) quem é o sujeito politico, ou seja, quem são as lideranças, partidos e movimentos à frente das mobilizações; (d) e quais são os resultados da mobilização, o que sempre é uma expressão do confronto entre revolução e contrarrevolução.
Não há muitos bolcheviques à frente das passeatas em Minsk, é certo. Mas, se formos rigorosos, tampouco são muito numerosos, infelizmente, em Santiago do Chile, Argel, nas ruas de Portland, ou na resistência ao golpe na Bolívia. A luta em curso na Bielorússia passa muito bem por este “exame” no laboratório da história. São os quatro fatores que devem ser considerados, em uma síntese. Não somente a direção.
A direção pesa muito, também, mas para marxistas não mais que o sujeito social. Se, aliás, a direção fosse o único critério, qual revolução democrática ganharia certificado de “autenticidade”? Nem sequer o fevereiro russo de 1917 que levou ao poder um governo liderado pelo príncipe Lvov. Isto posto, não é verdade que as mobilizações em Minsk são lideradas por fascistas. Um pouco de prudência permitiria, facilmente, a conclusão que são espontâneas, portanto, quase acéfalas. Honestamente, quem é de extrema direita é Lukashenko.
O que explica esta indiferença da esquerda brasileira? Não pode ser somente a geografia. A Bielorússia é um país capitalista há três décadas. O regime é um bonapartismo ultrareacionário. Lukashenko governa como um déspota brutal. Esta sonolência repousa na desconfiança de que o triunfo de uma revolução, autenticamente, popular possa abrir o caminho para um governo mais independente da Rússia. Portanto, o problema é o campismo.
O campismo foi a ideologia mais poderosa na esquerda durante a etapa da guerra fria, quando o estalinismo era uma corrente muito mais influente do que hoje: sustentava que o mundo estaria dividido em dois campos, o socialista e o capitalista, e a URSS seria a retaguarda histórica da luta pelo socialismo. Era a forma teórica da justificação de que os interesses diplomáticos da URSS deveriam ser considerados prioritários na luta contra a dominação imperialista do mundo.
Em nome do campismo Stalin promoveu o pacto Ribbentrop/Molotov, ou seja, negociou uma trégua com Hitler, aceitou a partilha da Polônia, e invadiu a Finlândia. Em nome do campismo foram defendidas posições aberrantes: as legítimas mobilizações proletárias no Leste Europeu, como a revolução húngara de 1956 ou Tcheca de 1968, quando ainda se usava o marxismo como um vocabulário político na Europa Central, foram esmagadas pela repressão sem conseguir solidariedade de massas nos países onde o movimento dos trabalhadores era mais organizado nos países centrais.
A tradição internacionalista da esquerda se apoia em uma premissa teórico-programática: embora existam inúmeras causas e conflitos no mundo, o principal antagonismo desta época é aquele que opõe o capital ao trabalho, a luta dos trabalhadores.
É verdade que o capitalismo domina o mercado mundial, e as relações sociais capitalistas se estruturam no interior de um sistema mundial de Estados. Toda tentativa de análise da situação nacional de qualquer país que, portanto, despreze o contexto internacional está condenada ao fracasso desde o início. Acontece, porém, que a situação internacional é sempre o resultado complexo de um processo de lutas entre as classes, mas também, de luta entre Estados.
Esse segundo caminho foi percorrido por boa parte da esquerda mundial no século XX, sobretudo, aquela que considerou que o destino da causa socialista estava indissoluvelmente associado ao futuro do governo da URSS e seus aliados. Este “nacionalismo da URSS” não deve ser confundido com o internacionalismo da revolução mundial, e foi denominado de campismo socialista.
A existência de países onde a propriedade privada dos grandes meios de produção foi expropriada, ainda que os seus regimes políticos fossem aberrantes deformações burocráticas, significou uma evolução inesperada da história. Colocou a esquerda organizada diante de uma situação paradoxal, e o marxismo teórico diante de um desafio político dificílimo.
Deveriam defender a natureza social dos Estados diante da pressão imperialista pela restauração capitalista. Deveriam defender as conquistas da revolução contra os diferentes movimentos das frações que surgiram do interior das castas burocráticas para eternizar seus privilégios sociais e seu controle político que, na longa duração, só seria possível com a restauração.
Deveriam, porém, ao mesmo tempo, apoiar as mobilizações dos trabalhadores e da juventude pelas liberdades democráticas, contra os regimes políticos de opressão, para reabrir o caminho para a democracia socialista e o retorno ao internacionalismo. Ou seja, uma defesa condicionada ao signo de classe do conflito.
A oscilação do pêndulo foi sempre muito complexa nas mais variadas conjunturas provocando, nos seus extremos, inevitáveis desequilíbrios: estalinofilia nos defensistas mais esquemáticos, ou estalinofobia nos anti-defensistas mais dogmáticos. Mas, ainda assim, o internacionalismo marxista passou a prova da história. Aqueles que abraçaram a posição de uma defesa incondicional, ou a posição de uma oposição incondicional, não.
Durante sete décadas a esquerda mundial se dividiu entre os defensistas da URSS e os antidefensistas. Após a restauração capitalista este divisor de águas deixou de ser decisivo. Mas há uma ala da esquerda tão nostálgica que ainda hoje hesita em apoiar um processo revolucionário, desconfiada da desaprovação do Kremlin. Paradoxalmente, os que se inspiram ainda no bolchevismo podem vibrar com as massas nas ruas de Minsk. O que nos deve lembrar a pichação nas ruas de Praga em 1968: “Lenin, eles enlouqueceram”.
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