O trocadilho usado para se referir ao evento realizado na última segunda pelo governo federal que dá título a este artigo, vem sendo usado por muitos para dar uma ideia da nossa tragédia. Quando no dia 23 Bolsonaro reuniu o estafe governamental e alguns médicos apoiadores para fazer propaganda da cloroquina, o país alcançava a estrondosa marca de 115 mil mortos e cerca de 3,6 milhões de infectados. A tragédia no país, que há de deixar marcas pelas próximas décadas, por enquanto, parece só atinge as famílias dos mortos. Ainda assim, não é impossível imaginar que, mesmo entre os atingidos, haja quem duvide do diagnóstico por Covid ou quem ache que o governo seja responsável pelo caos que nos alcança.
O “vírus chinês”, assim chamado pelos bolsonaristas, há tempos que ganhou cidadania brasileira. Muito embora tenha também se enquistado nos Estados Unidos que, como o Brasil, têm um governo negacionista, é em terras verde-e-amarelas que fincou raízes e parece não dar sinais de que vai nos deixar tão cedo. Enquanto isso, no maravilhoso mundo de Jair, que diz que se curou da Covid-19 com cloroquina, quase não há lugar para fatos, provas ou realidade, apenas suas bisonhas convicções do tipo que diz que “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
O jornalista britânico Matthew D´Ancona observa em seu livro sobre a pós-verdade que parte da crise que vivemos tem a ver com o colapso da confiança. Num cenário de crises combinadas e de dimensões catastróficas, o efeito disto é devastador e não deixa de alimentar uma espiral deletéria e lucrativa de desinformação: “Se o fracasso institucional erodiu a primazia da verdade, também para isso contribuiu a indústria multibilionária da desinformação, da propaganda enganosa e da falsa ciência que surgiu nos últimos anos”, escreveu D´Ancona, antes da pandemia.
Após cinco meses de confinamento, quando parte substancial da imprensa alinhou seu discurso com prefeitos e governadores que, ouvindo cientistas, recomendaram o distanciamento social, contra o boicote do governo federal, o fato de aparentemente não termos logrado o sucesso desejado, vai compor as narrativas bolsonaristas que lucram com a crise e a desinformação. Afinal, frente a tragédia, qual a garantia que se tem que o distanciamento social foi política foi a mais acertada se havia gente, como o presidente, que tinha uma posição diferente?
Num país em que parte da população acreditou em “mamadeira de piroca” e “kit-gay”, não é difícil desconfiar da imprensa, dos cientistas, das universidades e de todos os que se posicionam de forma responsável, porque nenhuma resposta é fácil, a não ser para impostores. Por tudo isso, acreditar que um fanfarrão que ameaça socar a boca de jornalistas e prescreve cloroquina para médicos apoiadores pode liderar o país numa crise, é puro terraplanismo.
*Publicado originalmente no jornal A Tarde em 28/08//2020
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