Em uma guerra, quando vão ao front, os soldados sabem que podem matar ou morrer. Trata-se, afinal, de uma situação extrema, literalmente de vida ou morte, dado que todas as dimensões do real – mesmo a econômica – encontram-se, momentânea e excepcionalmente, sobredeterminadas pela dimensão militar, bélica. Uma vez no campo de guerra, mata-se, sobretudo, para não morrer. A obrigação de matar é indissociável do desejo de não morrer. Com o espocar das balas, conquanto seja possível prever aproximadamente quantos homens vão morrer de cada lado, é impossível saber quais serão eles. Existe a sorte, o azar, o acaso, o imponderável, o contingente.
O que o “novo normal” do capitalismo brasileiro faz hoje com os trabalhadores é mais ou menos o que a guerra faz com os soldados, com a diferença de que não há uma guerra em curso, salvo a guerra que está sempre por trás de todas as guerras, a guerra das classes, a luta entre elas, que hoje assume a forma de um embate surdo entre os homens de fortuna e os desafortunados entre os homens, entre os imperativos do lucro e o da vida, entre os mercadores desalmados e as pobres almas, entre os apologetas da rotina e os poucos que percebem que a simples manutenção dela pode ser sinônimo de morte para eles e para os seus.
Ao impor que a gente humilde vá às ruas para “fazer a economia funcionar”, a burguesia brasileira sabe mais ou menos quantos milhares vai matar, quantos morrerão, mas não sabe ao certo quem serão, e nem quer saber. Ela faz o tem que fazer. O que sabe fazer. Trata-se, em último caso, de uma questão contábil, e nem poderia ser diferente para uma classe social que, há tempos, já mostrou que tudo submete às “águas gélidas do cálculo egoísta”. O “novo normal” é letal, pois letal é cada vez mais o capital, que agora, mesmo sem guerra, fez do simples ato de ir trabalhar uma ato que faz matar. E milhões e milhões vão, tais quais soldados no front. Por terem nascido sem sorte, entregam-se à ela, à própria sorte, e muitos, “pensando na mulher ou no time”, se expõem sem sequer cogitar a própria morte, o que não faz senão lhes matar já em vida.
O trabalho alienado nunca deve ter sido tão mortífero, e talvez justamente por isso nunca deve ter sido tão alienado. A vitória do “novo normal” é a vitória do capital. Cabe a nós impedi-la – ao menos aos que ainda estão vivos de alma e, portanto, não podem aceitar passivamente enterrar seus mortos.
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