EDITORIAL 15 DE NOVEMBRO – Na noite do dia 13 de novembro de 1905 começou uma chuva na então capital do nosso país, Rio de Janeiro. A chuva se estendera por toda madrugada, atravessara o dia seguinte e amanhecera o outro. Aquela quarta-feira onde se comemoraria os dezesseis anos da Proclamação da República não estava, talvez, tão convidativa para os populares, todavia contava com uma obra monumental: a inauguração da Avenida Central, atual Rio Branco.
A avenida, que então cortava a cidade, serviria como artéria para o progresso. Uma nova cidade estava se erguendo, e o Rio de Janeiro republicano pretendia se desvencilhar de um passado obscurantista e monárquico. Para tal, uma série de desocupações e destruições da antiga cidade foram promovidos: a avenida central erguera-se sob os escombros de casas e cortiços. A elite, entusiasta do progresso, comemorou que os cortiços ‘cederam’ espaço para a civilização. Todavia, o povo, ou o que costumavam chamar de ‘turbe’, permaneceu curiosamente quieto.
A edição do jornal Correio da Manhã do dia 16 de Novembro de 1905 comentava tal silêncio do dia anterior. Nenhum “Viva ao Presidente” foi escutado, nenhum “Viva a República”. Este mesmo periódico especulava alguns motivos da quietude popular: os escândalos envolvendo as desapropriações. Hoje, passadas algumas décadas, chamamos aquelas desapropriações deste período de “bota a baixo”. Se hoje este período é visto numa perspectiva histórica como a história de um imenso despejo, naquele período era interpretada pela elite como um imenso avanço.
A narrativa da história traz em si algumas ironias. A comemoração dos dezesseis anos de República contou com uma participação popular parecida com a própria proclamação. A proclamação da República Brasileira foi fruto de um rearranjo entre as forças das classes dominantes brasileiras. O movimento republicano, um movimento de um setor da elite, viu um homem de convicções monarquistas proclamar o novo regime.
Neste sentido, a República Brasileira tem uma origem antagônica às das repúblicas latino-americanas. Se no caso dos nossos vizinhos o novo regime nasce da Guerra contra o Império Espanhol, o nosso surge de um “acordão”. Se os nossos vizinhos ergueram e construíram seus mártires, nossa elite recorreu à criatividade, achou e ressignificou Tiradentes: um oficial de baixa patente, que pouco de protagonismo teve na Inconfidência, decapitado por sua relativa insignificância, e cem anos depois pintado com as feições de Cristo.
Eis os mártires da República Brasileira! E o povo? Bem, a covardia e a criatividade dos ricos e poderosos do nosso país forçaram a imensa maioria da nossa população a ter uma história própria, quase que divorciada da oficial. É como se houvesse duas nações, onde um observador desavisado não acharia nenhum elo, nenhuma convergência. Estaria aí a origem da famosa frase “o Brasil não é para iniciantes?” Talvez.
Mas o povo, quieto na inauguração da Avenida Central, quieto na Proclamação, não tem como o silêncio sua principal característica. Um ano antes da quarta-feira chuvosa em que o presidente Rodrigo Alves não escutou seu nome aclamado, o povo insurgente tomara as ruas do Distrito Federal. Era a Revolta da Vacina. Os olhos da nossa elite, então, contaminados pela mesma catarata de hoje, não entendiam a insurreição. Preferiam chamar o povo de “turbe”.
Anos depois, o historiador Nicolau Sevcenko aponta que tal Revolta, guardada suas peculiaridades, fazia parte de um complexo maior. Era na verdade um lance cortante de um movimento muito mais extenso que reverberou em inúmeras outras ocasiões. O quinze de novembro não se trata de um motim onde a elite uniu-se com o povo para libertar-se de uma monarquia tirana. Trata-se de um rearranjo de forças. Tão frágil, tão débil e tão estéril quanto as imagens e monumentos que pintam Tiradentes como um Cristo Republicano.
E o povo? O povo trabalhador e oprimido contou com suas inúmeras insurgências, motins e insurreições que marcaram os primeiros anos do século XX no Brasil e no Mundo.
Ilustração: Revolta da Vacina
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