Em recente artigo, escrevi que o Brasil era vítima de duas pandemias, uma virótica do covid-19 e outra que denominei “trabalhista”, que tem a ver com a limitação e redução de direitos, edição de leis de cunho sanitário, mas que aproveitam para ir mais além. Os empresários estão aproveitando a crise sanitária para acelerar o desmonte do já precário sistema de proteção trabalhista vigente. Em verdade, tudo o que está ocorrendo nesta área (a mercê ou sob o pretexto da pandemia) não é novidade e tem como principal suporte a Lei 13.467/2017 que instituiu a denominada “reforma trabalhista” e introduziu o primado do negociado sobre o legislado.
Princípios mais importantes e basilares do Direito do Trabalho nos ensinam categoricamente que não é o trabalhador que deve arcar com os riscos do negócio, mas aquele que com este lucra. O segundo princípio é o da dignidade humana, que coloca a vida acima de tudo, especialmente sobre o lucro, o que importa dizer que principalmente nos períodos de crise, como na atual pandemia, deve haver mais proteção ao empregado e, portanto, a menor perda de direitos possível.
Na contramão destes princípios e de toda a doutrina protetora deste especial Direito, o Congresso Nacional aprovou e o presidente da República sancionou a Lei 14.020 no dia 6 de julho, que criou o Programa Emergencial do Emprego e da Renda e foi muito festejado por todo o empresariado, pela maioria dos parlamentares e pelo Governo Federal. O motivo para o efusivo e tamanho apoio da maioria dos empresários e políticos é simplesmente porque, em seu conteúdo, a nova lei mantém o principal conceito e traços principais da MP 936, quais sejam:
1- Exclusão quase total do sindicato da negociação coletiva e protagonismo durante a pandemia;
2- Redução do valor dos salários e suspensões de contratos;
Com efeito, ao lado das medidas de socorro financeiro às empresas, na forma de custeio do beneficio emergencial, e da garantia de emprego das gestantes e trabalho dos aposentados, são os dois pontos acima que compõem a base da nova legislação.
Em relação a exclusão dos sindicatos da negociação coletiva, que infelizmente foi chancelado pelo STF quando da análise da precedente MP (936), foi fixado um limite para empresas com receita bruta, em 2019, superior a R$ 4,8 milhões, sendo que, nestes casos, tanto a redução salarial como a suspensão de contrato poderão ser realizadas por acordo individual, nos percentuais de 50% e 70%, no que diz respeito a empregados que recebem igual ou mais que R$ 12.202,12 e por empregados com salário de até R$ 2.090,00 (dois salários mínimos). , ou seja, se reduziu um pouco o limite para acordos individuais, que antes era até o valor de R$ 3.135,00.
De outro lado, não se incluindo os empregados na faixa salarial acima, (e independentemente da renda bruta da empresa) a nova lei abre a possibilidade de redução salarial/suspensão de 50% a 70% se tal acordo não acarretar diminuição do valor recebido anteriormente, somado ao beneficio emergencial, o salário reduzido e uma ajuda mensal compensatória a ser paga pelo empregador.
O fato fundamental, contudo, é que, considerando que a base de pagamento do beneficio emergencial será a aplicação do percentual sobre o valor do salário-desemprego e não sobre a efetiva remuneração do trabalhador, o resultado é que sempre haverá perda salarial, em qualquer uma das modalidades previstas tanto na anterior MP como na nova lei, o que também refletirá negativamente sobre os recursos da previdência social, em vista da diminuição da massa salarial, via redução implementada por tais acordos que de “livres” não possuem nada.
Mas não é só. A lei permite a contratação de trabalhadores aposentados, desde que o empregador assuma o pagamento do benefício emergencial, bem como cuidou a nova legislação de resguardar e proteger os acordos individuais e coletivos firmados durante a vigência da MP 936, que ficarão intactos em relação aos seus efeitos, sem influência dos acordos anteriores e sem que possam ser afetados por novos acordos. Enfim, deu-se finalmente a segurança que o empresariado tanto exigia em relação principalmente aos acordos individuais. Era um temor das empresas, desde a polêmica causada pela liminar concedida pelo ministro Lewandowski permitindo a manifestação de objeção sindical ao acordado individualmente, que, todavia, foi depois revogada em julgamento da Ação Cautelar que requeria a participação sindical, a despeito do art. 8, IV da Constituição Federal estabelecer objetivamente como obrigatória a participação dos entes sindicais na negociação coletiva. Mais uma letra morta da Constituição de 1988…
Em resumo, o que houve foi uma verdadeira blindagem jurídica dos acordos realizados durante a pandemia, pelo que somente as novas negociações coletivas poderão trazer novas possibilidades de avanços, o que, na prática, significa consolidar legalmente a vontade patronal durante todo este período em que, por um lado o trabalhador esteve ainda mais vulnerável, e, de outra parte, os sindicatos de trabalhadores engessados, tanto do ponto de vista da impossibilidade de realizar mobilizações e greves, como também juridicamente impedido até de negociar pela MP e agora através da nova Lei, durante o período de pandemia. Um verdadeiro “estado de sítio” nas relações laborais, amordaçando sindicatos e juridicamente e estabelecendo quase que exclusivamente a “negociação individual”, que leia-se: a vontade unilateral do empregador.
Podemos dizer que se é verdade que realmente houve preservação dos empregos submetidos a uma parte das empresas que conseguiram se encaixar nestes critérios “emergenciais”, (que não representam a maioria das empresas, especialmente as pequenas e médias que ficaram ao lago destas medidas de proteção e auxílio), não é menos verdade que tais medidas partem sempre de um pressuposto de perda salarial, pois, conforme acima esclarecido, os percentuais são aplicados sobre o salário-desemprego. E notoriamente é sabido que os aluguéis, alimentação, remédios e escola das crianças não tiveram redução na mesma proporção, sendo que o item alimentação teve alta de preços. O que temos então é mais exploração do trabalho durante a pandemia, subsidiado por dinheiro publico a saldar parte da massa salarial das empresas que puderam ingressar no programa de auxilio, ao lado de uma imensa quantidade de desempregados que já vinha desde antes. E muita precarização, com ameaça constante à saúde e segurança no trabalho, em níveis jamais vistos, conforme revelou a recente greve dos entregadores de aplicativos.
Felizmente também há muita resistência por parte da maioria absoluta das entidades de juízes do trabalho, procuradores do trabalho, advogados trabalhistas, sendo que o que o sindicatos mais poderiam fazer, que seria ir para as ruas, mobilizar os trabalhadores principais prejudicados, está no momento impossibilitado, o que facilita enormemente a tramitação de tais propostas de legislações restritivas do direito do trabalho, no que ficou cunhado pela expressão “passar a boiada”. Em relação aos históricos direitos trabalhistas do povo brasileiro, estão desconstruindo o “muro legal” de proteção que vinha sendo erguido desde o início do século XX, com a criação da Justiça do Trabalho, edição da CLT e uma série de outras medidas de proteção laboral. Em verdade, é a fase em que se encontra o capitalismo, desde a década de 70, quando passou a investir contra direitos trabalhistas, flexibilização e precarização, a fim de tentar resolver mais uma de suas crises cíclicas.
Concluindo, a edição desta nova lei não somente comete dois crimes capitais nas relações trabalhistas também deixa de tratar de vários outros aspectos de interesse dos trabalhadores, como a exigência legal de testagens para covid-19 no interior das empresas, comércio e demais atividades econômicas, como também o drama das mães-solo que não têm onde deixar os filhos para trabalhar, porque as creches estão fechadas, e o fato de que muitas estão sendo demitidas quando alegam esta circunstância. Em um quadro de cerca de 10, 1 milhões de desempregados, contabilizado em junho deste ano, 9, 7 milhões de pessoas afastadas do trabalho sem qualquer remuneração e outras 30,2 milhões de pessoas sub-ocupadas, conforme as estatísticas do Pnad Covid-19( IBGE), a lei ora aprovada fornece um patamar muito baixo e limitado de proteção ao empregado e, concomitantemente, novas formas de extração de lucro, sob pandemia. Mais do mesmo, sendo que desta vez em dose ainda mais elevada e letal.
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