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EDITORIAL

A tragédia econômico-social que é imposta aos trabalhadores

Editorial 03 de julho
Marcelo Camargo / EBC

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O Brasil já ultrapassou 60 mil mortos por Covid-19, de acordo com os dados oficiais. Em termos absolutos, é a maior tragédia humanitária da história nacional. Em apenas quatro meses, ultrapassamos os 50 a 60 mil mortos estimados na Guerra do Paraguai (1864-1870) e quase dobramos os 35 mil mortos da pandemia da gripe espanhola (1918-1920). Para comparar com tragédias contemporâneas, o número de mortos nesses quatro meses ultrapassa o de mortes anuais por crimes violentos, assim como por acidentes de trânsito no país (em torno de 40 mil por ano em cada caso). O número diário de mortes pela Covid-19, desde maio, ultrapassou a média de mortes por doenças cardiovasculares (cerca de mil por dia) e por câncer (mais de 600 por dia) no país. E a pandemia está longe de ser controlada por aqui, sendo tragicamente possível prever que outras dezenas de milhares de vidas ainda serão perdidas antes que isso aconteça.

O impacto dessas perdas no imaginário coletivo é impossível de medir no decurso da tragédia, especialmente quando o governo federal adotou uma postura negacionista, de resultados genocidas, operando desde março para boicotar as políticas de isolamento social que poderiam controlar a propagação do vírus. Com o passar dos meses, governadores e prefeitos aderiram, cada vez mais, a um discurso de minimização do desastre sanitário em curso, maquiando dados e sacando, sabe-se lá de onde, indicadores ditos “científicos” para justificar a abertura prematura das atividades econômicas. Essa responsabilidade política pelas mortes, porém, haverá de ser cobrada, mais cedo ou mais tarde.

Crises sanitária e econômico-social atingem com mais força a classe trabalhadora

A doença pode atingir qualquer um, mas as desigualdades que estruturam a sociedade brasileira geram taxas de incidência e mortalidade que não são igualitariamente distribuídas. Pesquisa recente do LabCidade da USP comprova com dados que, em São Paulo, a população que mais se desloca pela cidade através do transporte público é a que mais sofre os efeitos da pandemia, ou seja, são os que saem de casa para trabalhar os mais atingidos pela doença.

Sofrendo duramente com a crise sanitária, a classe trabalhadora também está sendo brutalmente atingida pela maior e mais rapidamente sentida crise econômica e social da história recente do país. No primeiro trimestre de 2020, sobre o qual a crise sanitária só teve impacto nos últimos 15 dias de março, os dados de queda no PIB de cerca de 1,5% já indicavam o início de uma recessão no país. A previsão é de que no segundo semestre a queda do PIB chegue a 10% e, mesmo nas avaliações mais otimistas quanto à possibilidade de rápida recuperação econômica, estima-se que estamos vivendo o início da pior crise econômica em, pelo menos, 40 anos.

Os trabalhadores e as trabalhadoras, no entanto, sabem que a crise não atinge a todas(os) de forma idêntica. Como nas crises capitalistas anteriores, a conta chega para a parte mais fraca e a classe trabalhadora já a está pagando, com uma intensidade dramaticamente inédita. Os dados do IBGE para o trimestre encerrado em maio, indicam que o desemprego atingiu a taxa de 12,9% (12,7 milhões de pessoas). Embora a taxa tenha crescido, ela não revela o tamanho da crise. Isso porque foi acompanhada de um crescimento recorde de outros indicadores, como a taxa de desalento (pessoas desempregadas que no período não procuraram emprego) e a população subutilizada (que trabalha menos horas do que gostaria). Desalentados e subutilizados somam cerca de 36 milhões de pessoas. Assim, a população ocupada de 85,9 milhões de pessoas, no trimestre encerrado em maio, representa uma perda de 7,8 milhões de postos de trabalho em relação ao trimestre anterior e o nível de ocupação (percentual ocupado do total de pessoas em idade ativa) pela primeira vez desde que começou a ser calculado é inferior a 50%. A queda no emprego atingiu trabalhadores formais (menos 2,5 milhões de empregos), mas ainda mais os informais (4,2 milhões a menos).

A repercussão dessa situação na renda do trabalho é devastadora. A massa dos rendimentos provenientes do trabalho (oriundos de salários, não contabilizados auxílios, aposentadorias e pensões) caiu 5% no trimestre encerrado em maio. Naquele mês, 13,5 milhões de pessoas estavam afastadas do trabalho, enquanto 8,9 milhões faziam trabalho remoto. 36,4% das pessoas ocupadas (mais de 30 milhões de pessoas) tiveram rendimento menor do que o recebido normalmente, em maio. É o resultado da legislação aprovada no congresso nacional desde março, possibilitando redução de jornada com redução de salário, dispensas temporárias com remuneração parcial (através do fundo público), entre outros ataques aos direitos da classe trabalhadora.

Mulheres, negras/os e LGBTIs pagam a conta mais cara

Se a classe trabalhadora é a grande penalizada pela conjunção das crises, existem parcelas em seu interior que pagam uma conta ainda mais cara. A partir dos dados de meados de maio, divulgados pelo Ministério da Saúde, foi possível, por exemplo, calcular que a taxa de mortalidade entre indivíduos internados da população negra era de 55%, enquanto entre indivíduos brancos somava 38%. Já as mulheres e as LGBTIs, em meio ao cenário de isolamento social, vêm enfrentando índices crescentes de violência doméstica e de crimes de ódio.

Essas desigualdades se manifestam também no mercado de trabalho brasileiro, que é atravessado por desigualdades de gênero e raciais. Historicamente, a parcela negra, feminina e LGBTI da força de trabalho vive taxas de desemprego maiores, remunerações menores, condições mais precárias de trabalho e com maior frequência de assédios. Taxas maiores de desemprego também entre jovens e desigualdades regionais completam o quadro. Com a pandemia, tudo isso se agrava, especialmente entre as mulheres, a quem o capitalismo atribui, atualizando a opressão patriarcal, a responsabilidade pelo trabalho doméstico e de cuidados não remunerado. Com a pandemia e o isolamento social, mesmo que parcial, fala-se, internacionalmente, em uma recessão feminina. Um único indicador disponível já permite dimensionar essa face da crise social: o emprego doméstico, que concentra mulheres, especialmente negras, recuou 19%, em maio, em relação ao período anterior (menos 1 milhão de empregos).

Em relação à população LGBTI, é difícil obter dados, devido à política do Estado de mascarar a própria existência desse setor da população. Entretanto, as redes de acolhimento e assistência relatam que houve um aumento expressivo da quantidade de LGBTIs procurando ajuda após serem expulsas de casa, agredidas ou perderem o emprego. A maioria das travestis, devido à violência na família, na escola e no mercado de trabalho, acaba tendo a prostituição como única alternativa de sobrevivência e, por isso, estão muito mais suscetíveis à pandemia do que o restante da população. Como se não bastasse, muitos reacionários atribuem a culpa da pandemia a essas travestis trabalhadoras do sexo, um discurso de ódio que aumenta ainda mais a violência travestifóbica.

Esse precipício social explica porque o governo Bolsonaro, o mais reacionário desde a redemocratização, com o ministro da economia mais neoliberal desde os anos 1990, tenha sido obrigado a executar o maior programa social da história do país, através do auxílio emergencial, que está sendo pago a mais de 60 milhões de pessoas, estando presente hoje em mais de 38% dos domicílios brasileiros. Seu valor de R$600,00 (Guedes e Bolsonaro, originalmente, queriam pagar apenas R$ 200,00) e a extensão agora por mais dois meses (além dos três já pagos), resultado de muita pressão social, são absolutamente insuficientes para garantir condições dignas de vida para os milhões de trabalhadores e trabalhadoras atingidos pela crise. Entretanto, para tomarmos um termo de comparação, vale destacar que o valor médio do bolsa família é de cerca de R$ 190,00 e o programa atinge 13,5 milhões de famílias (no seu auge, durante os governos do PT, atendia a cerca de 20 milhões de famílias).

Mobilizações dos trabalhadores avançam

É fundamental reagrupar as forças do trabalho e agir coletivamente, para que a conta dessa crise de dimensões inéditas não continue caindo nas costas da classe trabalhadora e especialmente de suas parcelas mais precarizadas e empobrecidas, em que predominam negros e negras, com impacto ainda maior entre as mulheres. Desde o início da pandemia, inúmeras iniciativas de solidariedade de classe têm garantido o acesso de parcela expressiva da classe trabalhadora a alimentos e itens de higiene. São mutirões de movimentos de favelas, doações de cooperativas de produtores rurais, como do MST, e vaquinhas organizadas por movimentos de luta pela moradia, como o MTST.

Nas últimas semanas, esse processo de mobilização da classe trabalhadora tem, também, se expressado como um enfrentamento direto aos governos e ao empresariado. Numerosas entidades, movimentos e coletivos organizaram atos em várias cidades do país contra a política genocida de Bolsonaro e o racismo estrutural que caracteriza nossa sociedade. Greves contra a retirada de direitos, como entre os metroviários mineiros (e possivelmente de São Paulo na próxima semana), ou pelos direitos mínimos, como no movimento nacional dos entregadores de aplicativos do último dia 01 de julho, constituem mais um passo na direção do fortalecimento dos subalternos.

Para que o caminho aberto por essas lutas conduza a conquistas cada vez mais expressivas e à mobilização de mais setores, é fundamental elaborar um programa amplo de reivindicações, que aponte uma saída para as crises sanitária e econômico-social orientada pelas necessidades da classe trabalhadora. Com contribuição a esse programa, defendemos as seguintes bandeiras:

– garantir o auxílio emergencial até, pelo menos, o fim do ano, com o valor de um salário mínimo;

– reverter as leis que cortaram direitos trabalhistas e sociais;

– revogar a Emenda Constitucional do Teto de Gastos, suspender o pagamento dos juros e encargos da dívida pública e instituir um imposto sobre grandes fortunas para ampliar o montante de recursos destinados às políticas sociais;

– criar as condições para que a classe trabalhadora em atividades não essenciais fique em casa, de forma a viabilizar um nível de isolamento social que permita controlar a propagação da doença;

– garantir EPIs (equipamentos de proteção individual) suficientes para todas/os as/os trabalhadores das atividades essenciais.