Depois de um período de grande agitação e luta contra o projeto privatista em curso no nosso país, o Senado Federal aprovou com 65 votos favoráveis, inclusive de senadores da REDE e do PDT, o projeto 4162/2019, que é uma forte medida jurídica que abre portas para a privatização do saneamento, com licitações nos municípios.
O projeto aprovado já havia enfrentado grande resistência das trabalhadoras e trabalhadores do saneamento e também de militantes de diversos movimentos sociais ligados à luta pela água. Essa matéria foi proposta pela primeira vez ainda no Governo Temer, em 2018. A maneira como esse debate se iniciou, editada na forma de uma MP no dia da eliminação da seleção brasileira na Copa do Mundo, já nos dava pistas de como seria a atuação dos defensores da privatização durante a tentativa de entregar o saneamento para as grandes empresas. De lá para cá, a mobilização dos trabalhadores no Congresso Nacional, com o apoio de deputados como Glauber Braga (PSOL-RJ), Edmilson Rodrigues (PSOL-PA), Afonso Florense (PT-BA) dentre outros, desarticulou duas Medidas Provisórias.
A pressão fez com que o PL debatido ontem necessitasse da união entre o Centrão e Governo Federal para ser aprovado. Uma das estratégias utilizadas para aprovar o PL foi pautar o projeto no meio de uma pandemia de forma a diminuir a possibilidade de mobilização contrária a privatização. A matéria proposta pelo senador Tasso Jereissati (PSDB–CE), que é acionista da empresa Solar, fabricante da Coca-Cola no Brasil, precisou ainda ser apensada com a proposta de Bolsonaro para o setor, tendo como objetivo ganhar mais força politica para enfrentar a resistência.
Principais retrocessos do PL 4162/2019 aprovado
Dentre os principais ataques votados, alguns se destacam. A concentração de poder na Agência Nacional das Águas (ANA) é um ponto que preocupa os militantes do saneamento, já que passa a ter grande influência na regulamentação e fiscalização do setor, podendo inclusive estabelecer critério para a caducidade dos contratos das empresas públicas de saneamento com os municípios que são hoje os titulares do serviço e podem escolher a empresa que vai operar o saneamento em sua cidade.
O principal retrocesso da lei é a extinção da maneira de concessão da prestação de serviços de saneamento das prefeituras para as empresas estatais. A lei 11.445/2007 previa a celebração do contrato de programa entre empresa pública e município. O contrato de programa se baseia em critérios técnicos, científicos, socio-econômicos e ambientais para ser firmado. A aprovação do PL ontem obrigará os prefeitos a abandonar essa maneira de contratação e realizar licitações com concorrência aberta onde a iniciativa privada poderá disputar de maneira privilegiada diante das estatais, visto que nas licitações, o critério não é técnico e sim uma concorrência da melhor promessa.
A obrigatoriedade da licitação para contratação da empresa de saneamento fere o pacto federativo pois retira a autonomia dos municípios na decisão sobre a operação dos serviços e ainda desarticula a prestação de serviços pelas empresas estaduais de saneamento. Todas as empresas estaduais de saneamento atendem a população transferindo as receitas de municípios lucrativos para menores municípios com populações de capacidade financeira reduzida. Esse sistema é chamado de subsídio cruzado e garante que as despesas com manutenção e os investimentos para a universalização do saneamento nas pequenas cidades e comunidades mais pobres sejam implantados sem a necessidade de que a tarifa da população beneficiada seja a fonte desse financiamento.
A iniciativa privada não vai universalizar o saneamento
A perspectiva é de que com o advento dessa lei a iniciativa privada irá concorrer nas licitações de grandes e lucrativos municípios, deixando mais uma vez as pequenas cidades do Brasil abandonadas. E, neste formato, os investimentos necessários não virão. Essa afirmação está baseada no fato de que hoje a participação privada é permitida no Brasil de todas as maneiras, na forma de concessões diretas dos serviços, PPPs, Subdelegações, compra direta da totalidade dos ativos das empresas públicas, abertura de capital dentre outras e, mesmo assim, nos pequenos municípios não houve interesse da iniciativa privada.
Como prova de que a iniciativa privada já pode operar o setor de saneamento podemos citar casos como o de Manaus, onde a empresa que opera é privada. Lá, há 20 anos a concessão é marcada por serviços precários, ilegalidades contratuais, falta de investimentos principalmente na periferia, descumprimentos de metas e tarifas abusivas. Manaus tem apenas 12,43% de atendimento de esgoto, segundo dados do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), e ainda figura há sete anos nos piores lugares nos rankings de saneamento, fato que impressiona devido a pequena participação privada no setor.
Tocantins foi o primeiro a privatizar a empresa estadual de saneamento e alguns anos depois a empresa devolveu concessões de 78 cidades
O esforço de representantes da Coca-cola, Brk Ambiental e fundos especulativos para aprovar essa lei se justifica no interesse dessas empresas em tomar o mercado nas grandes cidades ao inviabilizar as empresas públicas de operarem esse setor. O estado do Tocantins foi o primeiro a privatizar a empresa estadual de saneamento e alguns anos depois a empresa devolveu concessões de 78 cidades, que não eram atrativas financeiramente. Esses foram os maiores casos de reestatização do serviços de saneamento no Brasil, onde o Estado teve que criar inclusive uma autarquia, Agência Tocantinense de Saneamento (ATS), que passou a atender áreas rurais do estado, pois estas não interessam aos empresários.
O impacto é ainda maior se analisarmos que para investir nos municípios deficitários as empresas estaduais precisam dos lucros dos contratos com prefeituras onde o saneamento é superavitário.
Enfrentar o projeto de Bolsonaro nos municípios
Diante do avanço da politica de apartheid da água promovida pelo governo genocida de Bolsonaro não podemos recuar na luta contra a privatização da água. Uma das conquistas durante a luta foi a inclusão no texto do PL 4162/2019 a prorrogação do prazo para a celebração de contratos de programa entre estatais e municípios, isso nos deu alguma margem de luta. O prazo será até 2022, a luta segue nos municípios, onde a pressão popular pode surtir efeito. É necessário que os lutadores cobrem das grandes cidades a renovação do contrato de programa e também que as empresas estatais de saneamento deixem de lado a lógica privatista e renovem a concessão com pequenos municípios. Nesta quarta, o Brasil se mobilizou nas redes sociais contra a privatização da água. Precisamos, agora mais do que nunca, manter essa vigilância! Não aceitaremos como fato consumado a privatização das águas no Brasil.
Nossa luta contra esse projeto não foi em vão. Ainda existe uma possibilidade de barrarmos esse projeto do governo genocida de Bolsonaro, lutando pela renovação dos contratos de programa nas prefeituras.
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