Tradução Diogo Trindade
Apesar dos paralelos óbvios com as paralisações devido ao coronavírus, os estados ainda mostram pouca determinação em implementar as medidas necessárias para lidar com a emergência climática. Para Andreas Malm, precisamos de parar de ver as alterações climáticas como um problema para o futuro – e usar o poder do estado agora para impor uma reordenação drástica das nossas economias.
No último dia de 2019 – um ano marcado por altas temperaturas, incêndios florestais, e tempestades tropicais – a China reportou à Organização Mundial de Saúde que um novo vírus havia eclodido na cidade de Wuhan. Inicialmente descartado por muitos observadores ocidentais como um evento infeliz numa terra longínqua, o COVID-19 transformou-se rapidamente numa pandemia total, causando a morte de centenas de milhares de pessoas, intensificando rapidamente as desigualdades de classe e raça e conduziu à maior recessão mundial desde a Grande Depressão.
No espaço de poucas semanas, a sabedoria económica recebida nos limites da intervenção do Estado foi invertida, assim como o dia-a-dia de bilhões de trabalhadores em todo o mundo. Fábricas e escolas foram fechadas, fronteiras fechadas e populações inteiras confinadas nas suas casas sob ameaça de pesadas multas e de prisão. Por outro lado, os líderes tecnocráticos mundanos recriaram-se como comandantes em tempo de guerra, lutando contra um invasor invisível.
O discurso da comunicação social dominante sobre a pandemia foi apresentá-la como um choque exógeno para os negócios como de costume, mentira cujas origens estão tanto nos processos naturais separados da influência humana como nas falhas de um estado ou cultura específica – geralmente significando a China. Surgiram pedidos para punir um autor ainda desconhecido, as teorias da conspiração multiplicaram-se e a esquerda radical internacional – em quase todos os lugares desprovida de poder real – foi reduzida a celebrar os bloqueios draconianos e a sonhar ineficazmente por um mundo melhor por vir.
Ao mesmo tempo, a actual crise climática foi largamente apagada da narrativa dominante. A comunicação social foi inundada com imagens de céu azul em cidades normalmente eclipsadas por fumo, golfinhos saltando nas vias navegáveis, e animais selvagens a procurar comida em cidades desertas. Muitos observadores preocupados com o meio ambiente expressaram esperança de uma recuperação verde da crise – mas também permaneceram, em grande parte, silenciosos em relação às restrições estruturais que impedem o seu caminho.
Na tentativa de entender a pandemia, as suas origens e as consequências para o movimento pela justiça climática, Dominic Mealy, da Jacobin, sentou-se com Andreas Malm, um estudioso líder mundial em ecologia humana. Autor de meia dúzia de livros e inúmeros ensaios sobre a economia política das alterações climáticas, antifascismo e lutas no Médio Oriente, os trabalhos de Malm incluem The Progress of This Storm e a Fossil Capital, vencedor do prêmio Deutscher . É também autor de um próximo livro sobre COVID-19, intitulado Corona, Climate, Chronic Emergency: War Communism in the XXI-Century , que será publicado pela Verso Books.
DM: Pode começar por explicar a relação entre a actual pandemia da COVID-19 e as alterações climáticas globais?
AM: Desde o início da pandemia, os analistas começaram a fazer comparações entre a crise do COVID-19 e a crise climática. No entanto, argumento que essas comparações directas são falaciosas no sentido de que a actual pandemia constitui um evento específico, enquanto que o aquecimento global é uma tendência secular. No entanto, perdemos a essência do surto de COVID-19 senão o reconhecermos pelo que é, ou seja, uma manifestação extrema – mas há muito esperada – de outra tendência secular: o aumento da taxa de doenças infecciosas que passam de animais selvagens para populações humanas. Essa é uma tendência que aumentou nas últimas décadas e que deve acelerar no futuro.
A força motriz mais importante por trás da produção de pandemias é clara na literatura científica e é o desmatamento – que também é o segundo maior contribuinte para as alterações climáticas globais. O local em que encontramos a maior biodiversidade da Terra é nas florestas tropicais, e essa biodiversidade inclui agentes patogénicos. Esses agentes, que circulam entre animais não humanos em habitats selvagens, geralmente não representam um problema para a humanidade enquanto os humanos ficarem longe deles. No entanto, o problema surge à medida que a economia humana faz incursões cada vez mais profundas nesses habitats. A destruição de florestas para a exploração da madeira, a agricultura, a exploração mineira e a construção de estradas cria novos interfaces nas quais os seres humanos entram em contacto com a vida selvagem. Através dessas interfaces, os agentes patogénicos são capazes de mutar e de passar para populações humanas através de um processo chamado de transmissão zoonótica.
O próprio aquecimento global também acelera esta tendência. À medida que a temperatura aumenta, certos animais são forçados a migrar em busca de climas que correspondam àqueles aos quais estão adaptados. Um caos generalizado ocorre, no qual populações de animais – incluindo significativamente morcegos – são cada vez mais colocadas em contacto com populações humanas, aumentando assim a taxa de transmissão. Embora existam mais de 1.200 espécies diferentes de morcegos, todos compartilham uma característica comum que os torna únicos entre os mamíferos, isto é, a capacidade de se envolver num vôo sustentado. Essa característica compartilhada não apenas as torna altamente móveis e, portanto, susceptíveis à migração induzida pelas alterações climáticas, como também requerem quantidades prodigiosas de energia, levando as taxas metabólicas a um ponto em que as temperaturas corporais atingem 40° C durante muitas horas seguidas, um nível que seria experimentado como febre pela maioria dos outros mamíferos. Esse processo foi identificado como a principal razão por trás dos morcegos serem o principal portador de agentes patógenos, como os coronavírus. Os vírus que se instalam nesses animais conseguem adaptar-se às temperaturas corporais que parecem febre. Embora esses agentes patogênicos não comprometam o sistema imunológico dos seus hospedeiros, podem dominar o sistema imunológico de outros animais, se puderem passar por eles. Em todo o mundo, os morcegos estão sendo deslocados pelo desmatamento e levados a latitudes mais altas devido ao aumento das temperaturas, e a China não é excepção. As populações de morcegos foram cada vez mais direcionadas para o Norte e o centro da China e para uma proximidade mais próxima com os seres humanos que vivem em populações de alta densidade, criando assim cada vez mais novos interfaces através das quais a transmissão zoonótica pode ocorrer.
Estes são apenas alguns dos elos causais entre a crise da COVID-19 e a crise climática. Embora seja necessário fazer uma distinção, as duas tendências de aquecimento global e doenças globais são entrelaçadas por uma variedade de fatores causais diferentes e, como tal, constituem duas dimensões de uma catástrofe ecológica mais ampla e em desenvolvimento.
DM: E, no entanto, a resposta a essas duas crises não poderia ser mais diferente. Embora as alterações climáticas tenham sido amplamente recebidas com inação e meias medidas ineficazes, o surto de COVID-19 trouxe um nível de intervenção económica invisível em grande escala desde a Segunda Guerra Mundial. Como explica este contraste?
AM: Houve um momento em março de 2020 em que muitos de nós, no movimento pela justiça climática, sentimos certo grau de surpresa ao descobrir que os governos na Europa e em outros lugares estavam preparados para basicamente fechar todas as suas economias num esforço para conter a pandemia. Isto é impressionante, dado que os mesmos estados nunca haviam contemplado empreender nenhum tipo de intervenção na economia em prol da crise climática. A principal razão para isso reside na diferente linha do tempo da vitimologia manifestada por estas duas crises.
Agora, no geral, a pandemia ocorreu de maneira semelhante à do aquecimento global, no simples sentido de que aqueles que mais sofreram e que têm mais probabilidade de morrer pertencem à classe trabalhadora – principalmente as pessoas negras da classe trabalhadora e as de vários pontos do Sul Global. Enquanto isso, os ricos conseguiram se auto isolar com facilidade, fugindo para outras casas fora das cidades e puderam aceder aos serviços de saúde privados.
No entanto, há uma grande diferença: a anomalia de que o COVID-19 também atingiu os ricos num estágio inicial, com capitalistas, celebridades e líderes políticos a adoecer, pessoas que não têm vulnerabilidade à crise climática neste estágio. Diferentemente do impacto do aquecimento global, a transmissão de coronavírus segue as linhas da aviação e, para simplificar, as pessoas ricas voam mais do que as pobres. Embora a pandemia se tenha espalhado por outros canais ao chegar a diferentes países, a aviação foi o principal ponto de entrada para o vírus, dando origem ao paradoxo de que as pessoas ricas estiveram entre as primeiras a contrair o vírus. No Brasil, por exemplo, foi a franja rica da sociedade que introduziu o vírus, mas agora são as pessoas comuns da classe trabalhadora que estão a morrer em massa. Este simplesmente não foi o caso dos desastres das alterações climáticas, e é um dos factores que explicam as reaccções radicalmente diferentes por parte dos governos.
Normalmente, pela percepção do Norte Global, desastres acontecem no Haiti, na Somália ou nalgum outro lugar pobre distante, onde as pessoas sempre parecem estar a viver uma miséria atroz. Têm os seus terremotos, a Ebola e HIV, e isso se tornou simplesmente parte do ruído de fundo da vida moderna. A pandemia, entretanto, atingiu países ricos muito repentinamente e num estágio inicial, e, portanto, constituiu uma ameaça à integridade física das mesmas pessoas que deveriam impulsionar a produção e o consumo no centro do capitalismo global, de modo que o Estado entrou em cena. Era também, obviamente, uma questão de sobrevivência política para estes governos. Isso explica, por exemplo, a acentuada reviravolta na política do governo conservador no Reino Unido. Depois de aplicar inicialmente uma estratégia de “imunidade de rebanho”, reorientaram-se para o apoio ao confinamento e de outras medidas intervencionistas depois de perceberem que se deixassem morrer centenas de milhares de pessoas de forma insensível, pagariam o preço político nas urnas.
DM: Certamente este parece ser o caso em que a esquerda foi apanhada de surpresa pela escala da intervenção estatal realizada para combater a pandemia. Políticas que apenas alguns meses atrás teriam sido ridicularizadas como impossíveis pela maioria dos comentadores do momento são agora um dado adquirido. É este o caminho da morte do capitalismo neoliberal? Poderia ser de facto uma oportunidade para a esquerda mobilizar apoio para os seus próprios movimentos e ideias?
AM: Penso que, de um modo geral, os governos estão a adoptar essas políticas na expectativa de que a crise acabe em breve e que possamos voltar à actividade como de costume. Até agora, não vejo nenhuma das iniciativas para enfrentar o COVID-19 além de manter o sistema vivo. No entanto, esta é uma oportunidade, no sentido de que interrompeu temporariamente muitas das actividades mais prejudiciais ao meio ambiente, a aviação em massa foi suspensa, as emissões de carbono diminuíram, os combustíveis fósseis permanecem no solo e assim por diante. Este é um momento em que podemos dizer aos governos: “Se conseguiram intervir para nos proteger do vírus, também podem proteger-nos da crise climática, cujas implicações são muito piores. A actual conjuntura proporciona-nos, portanto uma oportunidade de oposição ao regresso à actividade habitual, exigir a transformação da economia global e o lançamento de algo como o Green New Deal.”
No entanto, temos que ser honestos sobre a situação em que nos encontramos. O COVID-19 provocou a súbita obliteração do movimento pela justiça climática em termos de tudo o que foi construído até o final de 2019. Desde o início de 2020, o COVID- 19 paralisou completamente todos os desenvolvimentos mais promissores do movimento ambientalista – Fridays for Future, Extinction Rebellion, Ende Gelände, etc. – esta é uma situação de grave desastre. Antes disso, havia um impulso crescente para interromper de maneira agressiva as actividades, realizados como habitualmente, e embora tenham havido tentativas de mover temporariamente essas ações para o on-line, simplesmente não há como exercer o mesmo tipo de pressão por meios digitais. Não se pode substituir a acção directa e a organização de massas a segurar cartazes no Instagram. Na minha opinião, a digitalização da política tem sido desfavorável para a esquerda radical e benéfica para a extrema-direita, logo mais digitalização não trará nada de bom para nós.
Também precisamos ser realistas sobre o equilíbrio de forças. Em grande parte do mundo, a tendência política geral tem sido a ascensão da extrema-direita. Em muitos países, particularmente na UE, estes foram temporariamente marginalizados, com os eleitores a reunir-se em torno dos seus governos incumbentes. Agora está a chegar o momento interessante, à medida que as restrições ao bloqueio são facilitadas. Um degelo político está programado para ocorrer, com muitas das forças que estavam em movimento antes do COVID-19 a voltar à vida assim que a crise da saúde pública se transforma numa crise econômica auto-fortalecedora. A questão torna-se então quais forças que estarão mais bem posicionadas para beneficiar de uma situação de desemprego em massa e de deslocamento social. Talvez seja excessivamente pessimista, mas parece-me que será a extrema-direita, simplesmente porque estava numa posição de muito maior força antes do surto do COVID-19 e também porque a pandemia reforçou certos paradigmas políticos nativistas, em termos de encerrar as fronteiras, colocar a nação em primeiro lugar, e a suspeita para com os estrangeiros.
Isto representa um problema sério para o movimento ambiental, no sentido de que forças de extrema-direita – particularmente na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil – emergiram como um dos mais fortes defensores retóricos do capital fóssil. Eles negam a ciência climática e promovem uma aceleração do desmatamento em massa e da extração de combustíveis fósseis. Portanto, é claro, por exemplo, que se se quiser fechar as minas de carvão na Alemanha, precisaremos realizar uma grande derrota política contra a [extrema-direita] Alternative für Deutschland; se quisermos impedir a dizimação da floresta amazónica, precisaremos assumir o movimento político que está em redor de Jair Bolsonaro. Portanto, não pode haver mitigação climática sem uma derrota maciça da extrema-direita nos países capitalistas avançados e também em muitos estados em desenvolvimento.
Uma estratégia bem-sucedida para enfrentar a crise climática precisará encontrar uma maneira de unir a justiça ambiental, a luta da classe trabalhadora e a oposição à extrema-direita. A saída da crise econômica e de saúde em desenvolvimento será a construção de um movimento capaz de conseguir uma transição muito rápida dos combustíveis fósseis, não um Keynesianismo verde, nem alguns novos investimentos renováveis ligados à economia de combustíveis fósseis, mas a destruição real do próprio capital fóssil, incluindo o encerramento imediato de minas de carvão e o fim da aviação em massa. Isso só pode ocorrer através de investimentos públicos maciços e do maior controle estatal sobre grandes áreas da economia. Toda crise é uma oportunidade para a esquerda, mas provamos ser bastante hábeis em desperdiçar estas oportunidades no passado.
DM: Pode dar aos nossos leitores uma ideia da extensão da intervenção necessária para alcançar uma transição verde sustentável?
AM: O nível de intervenção necessária é mais ligeiro e mais difícil do que o implementado para combater a pandemia. Ninguém está a pedir um bloqueio para lidar com as alterações climáticas, ninguém está a pedir a prisão domiciliar para populações inteiras ou para que a economia pare de um dia para o outro. Por outro lado, o que é necessário é uma transformação fundamental do sistema e da produção de energia de maneira sustentada em longo prazo, não apenas um hiato temporário ao status quo. Para estabilizar o aumento das temperaturas globais a 1,5° C, as emissões deverão ser reduzidas em 8% por ano até que se atinja o zero líquido. É totalmente impossível fazer este tipo de alteração simplesmente mexendo nos mecanismos de mercado ou introduzindo alguns impostos sobre o carbono; pelo contrário, irá requerer a expansão maciça da propriedade estatal e um planeamento económico compreensível.
DM: Como responde à objecção habitualmente levantada contra tais argumentos de que muitas empresas de serviços públicos já são propriedade do Estado, mas continuam sendo as principais fontes de emissões?
AM: A propriedade pública não é uma cura por si só, mas facilita significativamente a tarefa de descarbonização. A vantagem de ter concessionárias de serviços públicos é que esta permite que os governos as reorganizem rapidamente. Não é preciso expropriá-los primeiro ou assumir a tarefa de forçar empresas privadas a rever as suas práticas actuais e a deixar os combustíveis fósseis no solo.
DM: Está entre os principais críticos da noção de antropoceno, tendo cunhado o termo “capitaloceno” para descrever a época geológica atual. O surto de COVID-19 parece ter ressuscitado a noção de uma responsabilidade colectiva compartilhada pela crise, talvez melhor encapsulada pelo slogan “O Corona é a cura, os humanos são a doença”. Como responde a esse desenvolvimento?
AM: Este argumento, de que a própria humanidade é o problema, é como um fantasma que assombra o discurso ambiental. Encontramo-lo no recente documentário de Michael Moore, Planet of the Humans, na retórica de extrema-direita, no discurso ambientalista liberal – isto é pernicioso, profundamente errôneo e politicamente perigoso. Nada sobre a pandemia do COVID-19 a torna mais credível do que era antes. Não é a humanidade em geral que assume a responsabilidade pelo desmatamento, pelo aquecimento global e pelo comércio de animais selvagens, que constituem os principais impulsionadores do aumento da transmissão zoonótica; pelo contrário, é o capital.
As políticas empregadas para lidar com a pandemia procuraram apenas resolver o sintoma, ou seja, o próprio vírus, enquanto as causas principais foram deixadas completamente sem menção e sem tratamento. A responsabilidade de conter a propagação do contágio foi terceirizada para pessoas comuns, que são punidas rotineiramente se não se puderem auto-isolar. Não podemos lidar com os fatores que impulsionam estas pandemias a apelar aos cidadãos para que mudem as suas práticas, assim como não podemos lidar com as alterações climáticas alterando os padrões de consumo.
Tomemos, por exemplo, o óleo de palma, cujo cultivo é um dos principais fatores de desmatamento nos trópicos, principalmente no Sudeste Asiático, onde um grande número de morcegos e outros animais selvagens sofrem com a invasão das plantações. Se, aqui na Suécia, quero comer um pedaço de bolacha de aveia, é quase impossível encontrar um que não contenha óleo de palma e não há nada que, como consumidor, possa fazer sobre isso – o ônus está no produtor. Além disso, a maioria do óleo de palma não vai para produtos que os consumidores comuns compram, mas é usada em processos industriais que não podem ser hipoteticamente alterados por uma mudança no consumo.
DM: O poder estatal deve ser usado para restringir certas formas de consumo prejudicial ao meio ambiente ou apenas para mudar a produção?
AM: Definitivamente, o poder do Estado deve ser usado para impedir as emissões de luxo perpetradas pelos ricos – os jatos particulares devem ser banidos, assim como os SUVs e outros veículos que consomem quantidades completamente indefensáveis de combustível. Isto é pouco para o movimento de justiça climática, e estas fontes de emissões estão entre as socialmente menos necessárias. A situação é completamente diferente quando consideramos, por exemplo, o metano dos arrozais na Índia, onde os problemas causados pelas emissões devem ser pesados contra a necessidade de produzir alimentos para sustentar as populações. Uma transição bem-sucedida dos combustíveis fósseis não implicaria o planeamento completo da economia, no sentido dos estados planejarem e racionarem o consumo individual – longe disso. Mas algumas formas de consumo terão de facto de ser limitadas ou abolidas totalmente – isto não pode ser feito através dos mercados ou de apelos ao consumo ético, mas apenas pela regulação estatal.
Tal aumento do poder estatal traz consigo o perigo de burocratização e de autoritarismo. De facto, já existe uma tendência nesta direção, com a Hungria, por exemplo, a usar a pandemia para minar a democracia e aumentar a coerção do Estado. No entanto, se tivermos uma transição energética provocada por forças populares de baixo, com movimentos sociais a ter poder sobre os órgãos estatais que conduzem a transição, este perigo poderá ser contido. Embora possa parecer utópico neste estágio, é importante fazer a proposta de fechar instituições projectadas para pesquisar e controlar populações e redirecioná-las para atacar o capital, fechando as fontes de aquecimento global e de transmissão zoonótica. No livro, por exemplo, proponho a abolição das agências de controlo das fronteiras e as transformemos em instituições para reprimir o comércio de animais selvagens.
DM: Falando em utopias, você parece rejeitar completamente os argumentos dos aceleracionistas de esquerda e defensores do Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado e, em vez disso, apresenta a ideia de “comunismo de guerra ecológico”. Pode explicar os seus argumentos aqui?
AM: Acho que toda a ideia por trás destas perspectivas tecno-utópicas é completamente infantil e fora de contacto com as realidades materiais. A noção de que estamos à beira de um reino de abundância material sem precedentes é aquela que não pode ser sustentada racionalmente, devido às severas restrições materiais que se estão a aproximar de nós em praticamente todos os aspectos, incluindo o esgotamento do solo, a diminuição dos ciclos de água doce e o aumento do nível do mar. Mesmo se cessássemos todas as emissões neste exacto momento, enfrentaríamos graves repercussões climáticas por muito tempo.
Desenvolvo a ideia de comunismo de guerra ecológico no livro como uma contrapartida da ideia de longa data de que a Segunda Guerra Mundial fornece um modelo a seguir para os países ao lidar com a crise climática, uma noção que ressurgiu recentemente no discurso em torno da pandemia de COVID-19. O meu argumento é que, embora a mobilização da Segunda Guerra Mundial forneça um análogo útil, esta tem algumas limitações, entre as quais o esforço de guerra foi baseado no prodigioso consumo de combustíveis fósseis e deixou a posição da classe capitalista em grande parte intacta.
Enfrentar a crise climática e impedir a transmissão zoonótica, entretanto, requer ações emergenciais que vão contra os interesses de facções muito poderosas das classes dominantes e que facilitam a rápida transformação das economias. O comunismo de guerra fornece um análogo que pode ser usado – não no sentido de copiar tudo o que os bolcheviques fizeram durante a Guerra Civil Russa, assim como o exemplo da Segunda Guerra Mundial não nos leva a enfrentar o aquecimento global lançando outra bomba atômica em Hiroshima. Em vez disso, o comunismo de guerra fornece um exemplo de uma transformação rápida da produção conduzida pelo Estado e da organização da economia face à oposição maciça das classes dominantes. Uma transição verde irá exigir também um grau de autoridade coerciva a ser imposta sobre as empresas de combustíveis fósseis que até agora têm feito tudo ao seu alcançe para adiar e bloquear a mitigação das alterações climáticas.
DM: Você trabalha sobre isso no livro ao pedir um “Leninismo ecológico”. Pode explicar o que quer dizer com isto?
AM: Dado que o capitalismo precisará ser desafiado para que ocorra alguma transição significativa, o legado socialista oferece um conjunto de recursos para se basear. O problema da social-democracia é que não tem conceito de catástrofe – tem como premissa o contrário: a noção de que temos tempo à nossa disposição e a história do nosso lado, o que significa que podemos avançar por passos incrementais em direção a uma sociedade socialista. Qualquer que seja a sua veracidade histórica, este certamente não é o caso agora. Encontramos-nos numa situação de emergência crônica, com crises a atingir um ritmo acelerado e, assim, a impor um cronograma completamente diferente daquele enfrentado, por exemplo, pela a social-democracia sueca nas décadas de 1950 e 1960. Portanto, é necessário olhar para parte do legado socialista que tem uma ideia de catástrofe. O anarquismo também é insuficiente para esta tarefa, uma vez que, por definição, é hostil ao Estado. É incrivelmente difícil ver como algo além do poder estatal poderia realizar a transição necessária, uma vez que será necessário exercer autoridade coerciva contra aqueles que desejam manter o status quo.
A escolha óbvia ao procurar uma tradição que tenha o conceito de usar o poder do Estado numa situação de emergência crônica é a tradição leninista anti-estalinista. Embutido nesta tradição há também uma visão dos perigos e das contradições do poder estatal que surgem das lições da Revolução Bolchevique. Toda a direcção estratégica de Lenin após 1914 foi transformar a Primeira Guerra Mundial num golpe fatal contra o capitalismo. Esta é precisamente a mesma orientação estratégica que devemos adoptar hoje – e é isso que quero dizer com Leninismo ecológico. Precisamos encontrar uma maneira de transformar a crise ambiental numa crise do próprio capital fóssil.
SOBRE O AUTOR
Andreas Malm está na Divisão de Ecologia Humana da Universidade de Lund. É o autor de Fossil Capital: The Rise of Steam Power e the Roots of Global Warming, lançado em breve pela Verso Books.
SOBRE O ENTREVISTADOR
Dominic Mealy é editor e escritor, com sede em Berlim, que atualmente prepara um projeto de doutoramento sobre a crise capitalista e a comercialização na UE.
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