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BRASIL

O “novo normal” precisa ser revolucionário e ecossocialista

Carol Coltro, de São Paulo, SP

No mundo todo, pessoas veem o mundo pelas janelas e tentam imaginar quanto tempo vai demorar para termos uma vacina e até lá como vamos viver.

No mundo todo, os pobres não escapam da contaminação inevitável de quem precisa sair em busca de sustento e de quem divide pequenas casas com muitas pessoas, onde tantas vezes falta água potável.

A ideia do que será o “novo normal” é debatida a todo momento: o trabalho à distância, a educação à distância, a crise econômica que vai abalar o mundo de uma forma inédita e acachapante e os novos padrões de sociabilidade. Debate-se a importância dos investimentos estatais em saúde e educação e a ineficácia do neoliberalismo.

Pandemia e crise climática

Não podemos debater o futuro após o coronavírus sem entender a origem de uma pandemia que afronta a humanidade. O capitalismo envolve o mundo em uma crise climática, nesse momento, e há uma relação entre o coronavírus e o “problema do clima” que nos atinge. Pode até parecer que crise climática e sanitária sejam coisas separadas, como se os efeitos do aquecimento do planeta estivessem mais distantes do que imaginávamos antes, como um inimigo do futuro. Mas o que queremos constatar aqui é que se o “novo normal” não passar pela mitigação dos efeitos da crise climática não será possível sair do ciclo das epidemias e da ameaça iminente de novas pandemias. Como consequência, seguiremos lamentando as mortes em massa da população mais vulnerável do globo.

Fato é que a Covid-19 não é um castigo divino, nem uma obra de uma “natureza” alheia e raivosa que resolve se vingar. Também não é uma eventualidade, uma contingência. O coronavírus e, mais ainda, seus efeitos, são um produto social, provocado pela forma como nos relacionamos com a natureza através da mediação do modo de produção capitalista. Essa relação com a natureza se tornou alienada e irracional, como também se tornou a relação entre as pessoas e o trabalho.

A pandemia mundial do coronavírus é, na verdade, uma expressão das mais cruéis dessa dinâmica. Há um consenso científico sobre a existência de uma crise climática, ignorado por todos os governos, mas gritante e inescapável. Consenso científico não é “opinião da esquerda”. Foi revelado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU. Desde 1992, se debate o aquecimento global – e sua dinâmica acelerada – em função da produção capitalista. Entre os consensos científicos, está uma avaliação sobre os efeitos de um aquecimento além de 1,5 ºC (após a revolução industrial), impossíveis de gerir e com consequências irreparáveis para a vida humana.

Os efeitos do desflorestamento a serviço dos pastos e da monocultura, além da emissão de CO2 irão provocar em proporções cada vez maiores senão freados, segundo os relatórios do IPCC, impactos significativos à saúde, em especial dos mais pobres no mundo. Muitos efeitos são indiretos e resultado da associação entre o clima e as baixas condições de saneamento e moradia, ou seja, a pobreza em si.

Em seu último relatório em de 6 de outubro de 2018, foi publicada uma nova “tabela” de impactos da crise climática, inclusive à saúde: um conjunto de doenças causadas pelo calor, poluição do ar, redução da disponibilidade de alimentos, escassez de água potável e aumento de doenças infecciosas transmitidas por pela água, pelo alimento ou por vetores.

O crescimento de doenças como Chikungunya, Malária, Dengue, Zica e outros são produto das modificações e transformações nos habitats. Tais transformações são resultado direto do desequilíbrio meteorológico (temperaturas extremas, cheias e secas mais intensas) ou podem ser provocadas pelo desflorestamentos e a conversão das florestas em pastos ou monocultura. Sendo que esses últimos alimentam o primeiro problema, já que diminuem as áreas verdes que filtram o ar com excesso de CO2, invertendo com isso o ciclo natural e funcionando como um aquecedor do planeta ao invés de garantir o equilíbrio da temperatura. Nesse “ciclo” forçado pela lógica capitalista, os habitats são destruídos e transformados ampliando a população de vetores que transmitem doenças.

É com a transformação e destruição dos habitats que animais e vetores chegam em lugares que não chegavam antes, passando a estabelecer contato com alimento humano, água consumida por humanos ou mesmo criações industriais. Inclusive, é neste momento que pode se dar a ultrapassagem da barreira da espécie, ou seja, quando o vírus se adapta ao ser humano e passa a desenvolver doenças nessa espécie.

Essa é a mesma lógica em que se deu a transmissão de doenças antes próprias de animais selvagens para humanos como o Ebola e o HIV.

Também, por conta disso, assistimos regularmente o abate de criações industriais de animais infectados com vírus já conhecidos para impedir a propagação de epidemias recorrentes de gripe aviária, por exemplo, a Sars ou a Mers. Também são estudados permanentemente em laboratórios esses animais que já se aproximam da convivência humana para prevenir que os vírus transmitidos sejam conhecidos e sua possível propagação em seres humanos possa ser prevenida. Mas essas medidas combatem apenas os sintomas do problema.

O coronavírus provavelmente ultrapassou a barreira da espécie no mercado de animais silvestres. Ou seja, longe de ser uma praga bíblica, a COVID-19 é produto de uma interação com o meio ambiente absolutamente destrutiva e totalmente desequilibrada. Essa é uma ameaça à vida que foi prevista (em sua lógica, pelo menos) e é fruto de um consenso científico ignorado. A continuidade desse erro ameaça a sociedade como a conhecemos.

Os diversos efeitos da crise climática se encontram e aprofundam a tragédia

Não podemos tratar a pandemia como um problema paralelo, mais ou menos importante que a crise climática, mas como produto de uma mesma contradição: a forma como o capitalismo destrói a vida para se reproduzir como modo de produção.

Até porque as tragédias se retroalimentam de forma dramática. A mesma tabela de impactos do IPCC demonstra a maior incidência de furacões tornados e ciclones. Nesse momento, Bangladesh, já castigada pela epidemia da Covid-19, é atingida por dois efeitos desta “premonitória” tabela de impactos.

Cidades atingidas pelas enchentes ou pela seca durante a pandemia ampliam os níveis de contágio. As populações já castigadas por problemas respiratórios provocados pela poluição do ar terão uma taxa de mortalidade maior. Aquelas populações castigadas por outras doenças infecciosas, pela desnutrição e pela fome, quando atravessadas pela COVID-19 têm poucas forças para resistir.

Então como enfrentar pandemias cada vez mais iminentes, quando outros efeitos da crise climática começam a atingir mais intensamente populações inteiras? Como a escassez de água doce provocada pelo aumento do nível do mar em lugares que já são os mais pobres do mundo, pela contaminação da água potável e perda de territórios de água doce – caso já latente no Oriente Médio. A cada grau de crescimento da temperatura cai a produção de trigo e arroz em quase 10%. Sem contar a maior incidência de pragas nas lavouras.

Capitalismo e crise climática 

Ao resgatar Marx de forma mais concreta, para além da visão produtivista que vigorou no século XX, Jonh Bellamy Foster, Koei Sato e outros autores retomam a ideia de que a humanidade e a natureza possuem uma relação metabólica determinada historicamente. O modo de produção capitalista é uma mediação dessa relação. Nesse sistema, o metabolismo se rompe pela degradação das próprias fontes “naturais” e “humanas” de riqueza, através de uma dominação que se dá de forma irracional, não planificada e alienada.

A vantagem, de que fala Engels, que a humanidade teria em relação às demais espécies de poder conhecer as leis da natureza e nos servirmos dela se transforma em seu oposto: o capitalismo ignora as leis da natureza fazendo da relação entre humanidade e ambiente natural uma relação de auto degradação e não de obtenção e manutenção da fonte de vida. Na frase, que vem ganhando fama ultimamente, resgatada do Capital, na qual Marx descreve o problema da relação da agricultura com a grande indústria na Inglaterra, essa contradição fica expressa: “a produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social ao minar simultaneamente as fontes de toda riqueza: a terra e o trabalhador.”

Sendo a dinâmica do sistema capitalista, no seu atual estágio, esse processo de transformar forças produtivas em forças destrutivas podemos dizer que as epidemias, pandemias e suas consequências  são um fenômeno social, produto desse modo de produção. O “novo normal”, tão falado, não pode ser novo após essa pandemia, nos marcos desse sistema. No capitalismo, o “novo normal” após coronavírus, será uma normalidade de mais epidemias, mais acidentes climáticos, mais fome.

A defesa da vida é a luta anticapitalista

A humanidade terá uma nova chance. Certamente não será a última. Resta saber o que sobrará para erguer um novo mundo. Foi preciso uma pandemia que ameaça milhões de vidas para que se tenha reduzido as emissões de CO2 de forma acidental, por conta da necessidade de isolamento social.

Não se trata de uma oportunidade meramente. A questão é a impossibilidade de permanência neste fluxo de morte e genocídio. Já estamos acima de 1º C de um limite governável de 1,5ºC, segundo o IPCC. Mas a  temperatura é só um indicador e talvez não seja o indicador mais decisivo para convencer a classe trabalhadora a interromper a barbárie. A cada milímetro que sobe no termômetro, são inúmeras queimadas e destruição de florestas, inúmeras vidas perdidas no conflito no campo, inúmeras epidemias de malária, zica e dengue, são inúmeras enchentes nas grandes cidades causada pela mudança no curso dos rios e pela ocupação desordenada do solo, são centenas de cidades nas quais o uso de máscaras já era uma necessidade provocada pela poluição.

No país de Bolsonaro, apesar de uma redução importante da emissão de CO2 por combustíveis fósseis, as emissões cresceram por conta da queima da floresta e das atividades agropecuárias. A insistência da base ruralista no Congresso Nacional em aprovar o PL 2633 em meio ao cenário de 1000 mortes diárias por coronavírus revela a obstinação da burguesia brasileira. Este PL que anistia a grilagem em grande escala obriga as populações indígenas atingidas pela COVID-19, totalmente vulneráveis, a se defenderem do conflito no campo durante a pandemia. O desmatamento, acentuado por este PL pode transformar a Amazônia em uma nova fábrica de epidemias pela destruição do habitats de tantas espécies. Em menos de dois anos de governo nossas praias foram contaminadas por um vazamento de óleo sem nenhum controle e o céu de São Paulo virou noite em pleno dia por conta das queimadas nas florestas.

Mobilizar pelas demandas concretas

Cada uma dessas tragédias caminha junto à crise climática. Cada uma delas deve ser um motor para mobilizar as vítimas desses efeitos. Só há um sujeito capaz de interromper este ciclo: será a classe trabalhadora, mulher, negra aliada ao povo indígena, aos pequenos extrativistas e sem terra, defensores da floresta. Só quem é vítima da catástrofe que pode se obstinar a interrompê-la e isso só será possível com este bloco de classe, como ensaiou Chico Mendes. E a maioria só pode vencer por meio da revolução, porque a luta será inevitável. Infelizmente, não é o termômetro que irá mobilizar o nosso povo, mas a organização da luta pela vida, contra os efeitos da crise climática, social e econômica.

É preciso enfrentar a crise econômica que será brutal com um plano concreto para a nossa classe. Precisamos pensar nele. Um “green new deal” pode ser uma forma de fazer isso, se for um programa de mobilização de uma saída dos trabalhadores pós-pandemia. Se for usado como um programa anticapitalista que mobilize a partir de demandas concretas. Se for um programa que atribua a cada país medidas de acordo com suas responsabilidades na crise e consistirá em luta anti-imperialista, em luta por uma justiça climática na qual os países que foram roubados e sugados por outros tenham a chance de se desenvolver e que às “aves de rapina” sejam impostas as responsabilidades pela interrupção da destruição.

A questão não é anunciar o fim do mundo, mas construir o mundo novo, da vida contra o capital. Nunca a planificação da economia, a racionalização consciente dos recursos, a produção intensa de bens necessários para a satisfação das necessidades e a diminuição e até interrupção da produção de bens degradantes para a humanidade, foram tão urgentes.

O novo normal só será novo se for uma normalidade de revoluções. Revoluções por empregos na produção de fontes de energia sustentáveis, revoluções por reforma urbana, revoluções por reforma agrária, revoluções que comece colocando abaixo o neofascismo negacionista e os farsantes do “impossível capitalismo verde”.