Como sabemos, Rosa Luxemburgo foi brutalmente assassinada em 15 de janeiro de 1919 por grupos paramilitares de extrema-direita, que com o seu terrorismo contrarrevolucionário permanente pavimentaram o caminho para a chegada de Hitler ao poder na Alemanha de 1933. Apesar de sua ausência física desde então, Rosa não morreu: ela está entre nós, com o seu exemplo de integridade moral, sua coragem, seu pensamento cortante, sua sensibilidade para a vida em seus mínimos e múltiplos detalhes. Seu espírito anticapitalista, seu respeito pelas grandes massas populares em ação, seu internacionalismo revolucionário, seu marxismo libertário, seu humanismo radical, são chamas que diariamente aquecem corações e mentes mundo afora. Continua inspirando gerações de homens e mulheres que teimam em lutar “por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.
Talvez por isso mesmo, por causa dessa radicalidade, da sua capacidade de atualização permanente, foi que, nesse meio tempo feito de pouco mais de um século, não faltou quem tentasse matá-la (não fisicamente, óbvio, mas sim simbolicamente) novamente, de extirpar de uma vez pra sempre sua presença incômoda e arrebatadora.
Iniciativas nessa direção não faltaram, vindas, geralmente, de seus inimigos ideológicos e de classe e, aqui e ali, de alguns que se dizem adeptos de seu ideário. Expressão concreta disso é a violação periódica de sua memória, as tentativas de domesticação de suas impertinentes ideias, a sua metamorfose de verdadeira revolucionária em sectária, reformista ou até liberal-democrata. Quando não, a sua transformação em fria e sanguinária terrorista ou, então, no seu contrário, uma pacifista dócil.
Neste domingo, 03/05, Rosa Luxemburgo foi vítima de mais uma dessas tantas iniciativas fúnebres, fadada também ao fracasso. Instado por jornalistas do programa “Globonews em Debate” a emitir sua opinião a respeito das manifestações bolsonaristas ocorridas naquele dia em Brasília (que, dentre outras coisas, pedia o fim do isolamento social, intervenção militar, o fechamento do Congresso Nacional e do próprio Supremo Tribunal Federal), Luis Roberto Barroso, ministro do STF, considerou que elas estavam dentro do escopo da Constituição de 1988 e como tal deveriam ser respeitadas e encaradas como normais, democráticas, mesmo que discordasse dos excessos, tais como o episódio em que jornalistas do “Estadão” acabaram agredidos pela horda em transe.
Em outros termos, com seu formalismo jurídico/político tacanho, o Ministro acha possível separar a parte do sentido geral do todo, do conjunto nefasto da obra. Por si só a afirmação do Ministro não deveria causar surpresa ao analista da “história pátria”. Se fizermos um esforço de memória, iremos constatar que o citado Magistrado encarna uma tradição que remonta ao século XIX. Era comum, por essas plagras, os membros letrados da classe dominante citarem autores, antigos e modernos, no Parlamento, na Corte ou na Magistratura.
Discursos no mais das vezes empolados, cheios de frases de efeito, típicos da cultura bacharelesca da época. Não raro, agora no recinto de seus lares (as Casas grandes rurais e os Sobrados urbanos), esses mesmos senhores tocarem piano importado da Inglaterra e cantarolarem – junto com a grande família e convidados especiais de seus seletos circuitos de amizade – canções francesas da moda. Pois bem, as mãos que delicadamente dedilhavam as teclas do instrumento musical e a voz que proferia discursos em prosa retumbante e declamava versos líricos, eram as mesmas que ordenavam e ou/executavam castigos atrozes na escravaria (base da riqueza pública e privada dessa gente proprietária), subjugada-a ao trabalho e a obediência do chicote.
É que nossos liberais, como de resto os de outras partes do dito mundo “civilizado” de então, eram escravocratas da gema, sem que com isso houvesse nenhuma contradição lógica nem tampouco sociológica. Relembrando o nosso literato maior, Machado de Assis, Luis Roberto Barroso vem “dessa terra e desse estrume” que não cessam de exalar violência ao longo do nosso conturbado processo histórico.
Não por acaso ele é natural do município de Vassouras, interior do Rio de Janeiro, um dos mais importantes centros da economia cafeeira que forneceu boa parte dos quadros da escravocracia que mandou e desmandou na vida imperial até bem tardiamente.
É emblemático, a propósito desse passado que teima em se reinventar em muitas das nossas instituições, que os doze membros do STF tenham a seu dispor um séquito de fiéis “servidores”, cujas variadas e imprescindíveis funções vão desde a colocação da indefectível “capa” preta nos corpos de cada um deles, passando por servir o tradicional cafezinho, até o rito do abrir e fechar portas para que os magistrados adentrem ou deixem os luxuosos carros oficiais. Isso para não falar na criadagem que habita o interior das mansões de suas excelências, localizadas nas principais áreas nobres da capital federal.
Boa parte destes trabalhadores e trabalhadoras são negros, o que não é, definitivamente, mera coincidência. Nomeado para o STF por conta de Dilma Rousseff, Barroso (que sempre que pode faz questão de se mostrar publicamente como um filho legítimo das luzes e da ilustração) teve papel de relevo na debacle da ex-presidente em 2016, no “inferno astral” de Lula e na costura institucional que deu ares de legitimidade ao governo anti-popular de Michel Temer, para isso contando com a maioria de seus pares.
Além do que, sempre demonstrou entusiasmo pelas ditas reformas estruturantes (leia-se neoliberais) e, por fim, muito contribuiu, por atos ou omissões, para a escalada de terror que levou ao poder o hoje presidente genocida Jair Messias Bolsonaro. Com um perfil e uma trajetória dessa, nada a estranhar, portanto, nas declarações do Ministro, membro de um poder que, não devemos esquecer, é um dos pilares do autocrático Estado burguês em tempos de degradação.
Que referência foi essa? Foi aquela frase segundo a qual “liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente”.
O que, entretanto, causa redobrada repulsa na declaração do Ministro, é o fato dele ter citado Rosa Luxemburgo para justificar tamanha aberração. Que referência foi essa? Foi aquela frase segundo a qual “liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente”.
Mesmo aqueles que não são versados na complexa obra de Rosa, já leu ou pelo menos ouviu falar nessa famosa assertiva. Ao mesmo tempo, é a mais descontextualizada, vilipendiada, deturpada e incompreendida sentença da autora. Antes de mais nada, convém esclarecer que o trecho mencionado é parte de um conjunto de anotações que Rosa reuniu quando se encontrava presa em 1918.
A sua publicação póstuma, em 1922, esteve envolta em polêmica que não é o caso de aqui retomar. Para o que nos interessa diretamente, basta destacar que esse foi dos primeiros balanços críticos, do ponto de vista da esquerda, dos caminhos e descaminhos da revolução russa de 1917. No supracitado texto, Rosa fazia uma série de críticas (fraternas, porém firmes, como, aliás, como era típico de seu jeito polêmico de ser) aos bolcheviques, o grupo que dirigiu a mais importante revolução da história.
O alvo principal de Rosa foi a crítica à supressão das chamadas liberdades democráticas (proibição de circulação de determinadas publicações, extinção dos outros partidos de base operária ou camponesa, restrição do debate no interior do próprio partido dirigente, fechamento da Assembleia Constituinte etc). Para ela, ao assim agirem, os dirigentes russos se equivocavam tremendamente. Em vez de restringir, Lenin, Trotsky e seus camaradas deveriam ampliar os espaços públicos de participação das massas na arena politica, até para que instituições como os sovietes não corressem o risco de se burocratizarem.
Na sua lúcida avaliação, o antídoto contra o perigo apontado acima, era a criação de um ambiente que possibilitasse aos trabalhadores se educarem na própria experiência da luta, na ação de destruição do velho e construção do novo. Só assim a revolução, em que pese todas as dificuldades enfrentadas, poderia se salvar e avançar em suas conquistas. O trecho completo de Rosa, omitido por Barroso e tantos outros liberais, sociais- democratas e reformistas de diferentes quadrantes, é o seguinte: “Liberdade somente para os partidários do governo, somente para os membros de um partido – por mais numerosos que sejam – não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente.”
Não por fanatismo pela ‘justiça’, mas porque tudo quanto há de vivificante, salutar, purificador na liberdade política depende desse caráter essencial e deixa de ser eficaz quando a ‘liberdade’ se torna privilégio”. Aqui, como de resto no texto como um todo, não vemos nenhum culto à noção abstrata de democracia ou coisa que o valha.
Para nossa autora, se tratava de estabelecer as mais amplas e irrestritas liberdades públicas e individuais, o que não implicava, de modo algum, em qualquer concessão para os inimigos de classe da revolução, os agentes da reação ligados ao antigo regime. Para vencer a resistência da contrarrevolução, admitia o emprego da força, embora ela tenha feito uma diferenciação que se mostrou fundamental com o ascenso posterior do stalinismo: violência revolucionária não é sinônimo de terror puro e simples. Quer dizer, um embate entre revolucionários acerca da melhor maneira de se construir a democracia socialista, posteriormente se transformou em panacéia pra tudo, inclusive para desfigurar totalmente o sentido original que a autora atribuiu a seus próprios termos.
No caso em tela, com um agravante: o pensamento de alguém que no passado foi vítima de forças proto-fascistas, foi usado por Barroso para justificar, no presente, uma manifestação de caráter neofascista, com potencial pra, no limite, eliminar fisicamente os herdeiros antifascistas, embora não só eles, da grande revolucionária polaco-alemã.
Curioso é que até o pouco democrático Sistema Globo de Comunicações, responsável pelo canal e pelo programa em que o Ministro esteve no último domingo, reconheceu e desde então vem denunciando que se tratou de um ato antidemocrático. Quer dizer, em seu contumaz reacionarismo o ministro foi mais real que a majestade da outrora toda poderosa. Essa não foi a primeira vez que Rosa Luxemburgo permeou o pensamento de membros da mais alta Corte do país. Em novembro de 2018, ela foi evocada por sua homônima, a ministra Rosa Weber, que usou exatamente a mesma frase, só que desta vez, digamos assim, por uma “boa causa”, ou seja, para fundamentar o contundente voto que pronunciou contra a ação de forças policiais que invadiram diversas universidades públicas, no transcurso das eleições daquele fatídico ano.
No caso de seu colega togado, ele extrapolou todos os limites do razoável, mesmo visto pelo prisma do estreito horizonte da nossa capenga democracia liberal burguesa. Uma prova a mais de que, se a solução não é, de modo algum, fechar o STF (conforme desejo de manifestações fascistas que o Ministro tolera), o caso chama a atenção para a urgência de mudanças radicais em sua natureza, dinâmica e funcionamento, no que toca aos interesses da maioria da população brasileira. Diante do exposto, tomamos a liberdade de bradar em alto e bom som: Senhor Ministro, tire as mãos de Rosa Luxemburgo. Rosa Luxemburgo é nossa.
Rosa Luxemburgo é patrimônio da classe trabalhadora e de todos os párias da história. Rosa Luxemburgo é ícone de uma nova, possível e necessária humanidade, redimida de toda forma de exploração e opressão!
*Professor de história da Universidade Federal de Campina Grande.
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