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Na Casa Grande, todos ainda estão surdos: das lutas por direitos ao arrombamento de um portão

Reprodução

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”
(Bertolt Brecht)

 

Há poucos instantes recebi, pelo telefone, uma trágica imagem de populares que, no afã de conseguir leitos para seus familiares adoecidos, arrombaram com as próprias mãos as grades da entrada de um hospital, em Belém do Pará. Imediatamente, por óbvio, foram reprimidos pelos policiais no local, de modo que a uma primeira expressão da barbárie, a saber, gente morrendo às portas de um hospital fechado por superlotação, seguiram-se outras duas: o arrombamento do portão, que em nada vai resolver a dramática situação daquelas pobres pessoas e, depois, a indefectível e covarde repressão contra elas. O tal desespero, que já foi moda em 1973, cantou certa feita um talentoso bardo, está de novo em cena no país, mas agora em proporções tão dantescas que infelizmente farão a cena do tal arrombamento não ser senão a primeira de uma cruenta sequência novelesca que, embora hoje protagonizada pela Besta presidencial, não começou a ser escrita hoje e nem por ele, e sim quando há algum tempo nossos roteiristas da Casa Grande decidiram tratar com manipulação e repressão um povo que implorava pelo direito de ter transporte, escola e um corpo são.

Há aproximadamente sete anos, milhares e milhares de brasileiros foram às ruas exigir mobilidade, educação e, sobretudo, saúde – sem a qual de pouco adiantam as outras duas eventuais conquistas. Conquanto politicamente desorganizadas e subjetivamente confusas, as massas deixaram claro o que queriam, e não queriam muito, convenhamos. Mas o pouco aqui, na periferia, para nossa burguesia, é sempre muito. Por meio da sua imprensa monopólica, nossos senhores da Casa Grande, que de pronto tinham rechaçado os protestos, aderiram a eles na mesma medida em que se acomodavam às suas formas ingenuamente inovadoras, adulteravam suas pautas programáticas e subvertiam seu conteúdo social e político. Com a incorporação aos atos dos rebanhos advindos das classes médias conservadoras, convocados pelo berrante do capital na telinha global, as Jornadas de Junho de 2013 logo se transformaram em “atos cívicos” contra uma obscura PEC que ninguém tinha ouvido falar, contra uma seletiva corrupção e contra a política como atividade humana. Por trás da fachada de combate ao “sistema”, uma retórica protofascista, que então reivindicava o aumento do poder do Ministério Público e dos juízes, não fazia senão fortalecer o mesmo sistema, o sistema capitalista e neoliberal, na medida em que despolitizava a política e fazia levedar os expedientes bonapartistas e coercitivos da democracia em crise, tornado o regime político cada vez mais adaptado às novas exigência da acumulação. De tanto dizer que as ruas pediam o que não estavam pedindo, a imprensa do capital conseguiu, finalmente, que, em parte, as ruas, agora já com bandeiras e camisas verde-amarelas, e com ataques aos de camisas vermelhas, pedissem o que ela queria que fosse pedido. O “combate à corrupção” implicava, assim, segundo os jornalistas do capital, a redução do Estado na economia (pois, segundo eles, onde há Estado há política, e onde há política há corrupção) e o fortalecimento de sua esfera judiciária-policial.

Destarte, a melodia burguesa com suas únicas duas notas seguia sendo tocada pela banda, ou melhor, pelos bandos que nos telejornais davam e dão voz à Banca. Mais austeridade e mais repressão, eis a simples receita que é melíflua ao paladar do bom patrão. Os elementos centrais do projeto bonapartista que, por dentro, corroeriam nos anos seguintes a democracia blindada, já estavam ali. O roteiro parecia já alinhavado, mesmo que nem todos os seus personagens tivessem ainda entrado em cena. Para um povo que, nas origens do movimento, isto é, em sua fase autêntica, clamava por direitos sociais, portanto, desejava o aumento do investimento estatal nos serviços estatais, o governo Dilma ofereceu um pacto vertebrado por cinco pontos, cujo primeiro era justamente a manutenção da austeridade fiscal; dizendo que ouvia a voz das ruas, nossa anêmica social-democracia, sempre cedendo à nossa mórbida burguesia, respondeu ao povo tal qual um surdo a alguém que berra o seu nome, portando-se de forma tão insensata como um sujeito que oferece um banho de sol a um outro que, desidratado, implora por água. Capturado, subvertido e, finalmente, derrotado o movimento de Junho, a burguesia deu-se momentaneamente por satisfeita, e o jogo seguiu no ano seguinte, em 2014, quando se combinaram espasmos da primeira e genuína fase das revéis jornadas, como as ocupações de escolas e algumas greves importantes, e o crescimento célere, embora sub-reptício, das forças da extrema-direita, que também estiveram com força nas ruas na segunda e inautêntica fase daquele inverno quente de 2013.

A intensificação vertiginosa da crise econômica e a necessidade do capital de implementar as contrarreformas, isto é, a retirada de direitos e a austeridade fiscal, numa velocidade e profundidade sem precedentes fizeram com que a classe dominante não pudesse aceitar o resultado eleitoral do final do ano de 2014 e começasse a preparar o golpe. Para a execução do mesmo, as massas conservadoras das classes médias, que desde findadas as jornadas só faziam desenvolver seus aparelhos privados de hegemonia fascistas, não tendo abandonado por um segundo sequer a sua “guerra cultural” contra a esquerda, foram novamente requisitadas pelo andar de cima, de modo a servir como base social que justificasse o impeachment. Com o golpe assestado, e com Temer à frente do Executivo, a ofensiva contra os direitos por parte de um Estado que reduzia sua atuação nas áreas sociais exigia cada vez mais desse mesmo Estado uma forte atuação na área judiciária-policial, e foi assim que, por meio da Operação Lava Jato liderada pelo ilibado e desafinado Moro, tal como pelas ações repressivas do aparelho estatal contra qualquer manifestação por direitos nas ruas, nas escolas e nas universidades, os aspectos bonapartistas foram sendo ingurgitados a ponto fazer do regime político atual não mais do que uma esquálida e taciturna sombra da democracia liberal firmada pela Constituição de 1988.

O plano do capital, como se sabe, era lavar o golpe pelas urnas, posto que o projeto econômico dos golpistas deveria ser continuado em 2019, mas a partir de então por meio de algum representante orgânico e tradicional da burguesia, o qual, diferentemente de Temer, teria a legitimidade popular que as urnas costumam conferir ao vencedor do pleito. Ocorre que, permanentemente mobilizadas, as massas conservadoras das classes médias, ao longo do processo eleitoral de 2018, mostraram não estarem dispostas a depositar seus votos em qualquer um dos políticos habituais da classe dominante, afinal, todos os políticos são corruptos – elas haviam dito em 2013 e continuavam a fazê-lo sem rodeios durante a campanha presidencial. Desenvolvendo a crença de que poderiam elas mesmas governar diretamente o país, nossa pequena-burguesia reacionária foi buscar justamente nos tidos como “não-políticos”, como os militares e juízes – os quais vinham desenvolvendo sua força na medida em que cresciam as tendências bonapartistas da democracia em crise -, os seus lídimos representantes na cena política. De tão amantes da família brasileira, nossos homens de bem encontraram em uma família em especial, e mais precisamente no seu patriarca, o seu líder, o seu führer.

A alternativa neofascista estava posta, e ela incluía não só as contrarreformas neoliberais, como também, e mesmo principalmente, a negação da ciência, a rejeição às vacinas, a desconfiança do formato esférico da Terra, o fim da cultura, o desprezo pelo pensamento, o avanço da repressão à esquerda, o aumento do preconceito, a perseguição aos oprimidos e, sobretudo, como bem vem enfatizando o amigo Marcelo Badaró, uma incontrolável pulsão de morte que parece não ser saciada, e sim estimulada conforme corpos de trabalhadores, pobres e negros vão sendo jogados pelo caminho nessa estrada do caos que o Brasil percorre. Diante dessa alternativa neofascista com seu sadismo indisfarçado e a outra, a da volta dos inteligentes, preparados e cordados social-democratas que haviam sido por ela depostos em 2016, a burguesia brasileira escolheu a primeira opção, e entregou o país a um degenerado capitão.

É por isso, e só por isso, que estamos na atual situação, na qual, no Rio, cadáveres começam a cheirar mal na lateral de um hospital, e, em Belém, familiares são levados à fúria para evitar que seus doentes partam para o além. O que hoje pode parecer – e em parte é – irracional aos olhos dos senhores da Casa Grande e de seus prepostos na televisão não é senão a mórbida tragédia a qual nos conduziu a sua oportunista e mesquinha razão. Ainda hoje, no entanto, seguem colocando o lucro acima da vida, seguem colocando os negócios acima dos josés e marias, e seguem condenando à morte aqueles que, digamos, nasceram sem herança e sem sorte. Os que hoje arrombaram no hospital um portão foram os mesmos que, não faz muito tempo, gritaram e imploraram nas ruas por transporte, saúde e educação. Mas vocês, caros senhores da Casa Grande, escolherem não ouvir como opção. Vocês, o grande fazendeiro, o corajoso industrial, o bispo de olhos vermelhos, o ousado empreendedor comercial e o banqueiro com um trilhão, vocês não ouviram. Vocês estavam todos surdos, e ainda estão. Mas quando do nosso ódio, angústia e dor se fizer revolta, mas dessa vez com organização e direção, arrombaremos outro portão, o do seu Estado, e “cairá o inimigo então”. Todos os que nessa pandemia de nós se despedem estarão nesse dia ao nosso lado, e conosco empurrarão esse portão, e vocês senhores, que hoje sobre corpos só fazem lucrar, pagarão e é dobrado cada lágrima nesse nosso penar.

 

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