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BRASIL

Reflexões sobre a esquerda e os panelaços em Porto Alegre

Márcio Santos*, de Porto Alegre, RS
Roberto Parizotti/Fotos Publicas

A bandeira “Fora Bolsonaro” vem sendo levantada por setores da esquerda no último mês devido as opiniões e algumas decisões tomadas pelo governo perante a pandemia causada pelo Covid-19 que vão de encontro a grande maioria dos pesquisadores que estão dia e noite trabalhando em estratégias com bases cientificas. A pandemia deixa mais clara as ideias políticas de Bolsonaro e seus apoiadores, essas que causarão a perda de muitas vidas segundo projeções, principalmente de pessoas que não possuem condições financeiras para enfrentar a crise sanitária e necessitam das políticas de proteção social do Estado. 

Para combater o governo Bolsonaro dentro das instituições legislativas como o Parlamento Federal, estaduais e municipais se faz necessário a disputa nas ruas, de pessoas que não leram os clássicos marxistas, nem que fazem parte de organizações de base ou estão a par da discussão dentro das vertentes de esquerda. Os trabalhadores e estudantes com condições matérias precárias são os que mais sentem as políticas neoliberais propostas pelo governo e, por isso, são eles que mais possuem conhecimento prático de perdas de direito e de poder de consumo. Cabe a esquerda militante conseguir conectar-se a essas pessoas: sem pressão popular o “Fora Bolsonaro” é impossível. 

O impeachment de Bolsonaro não é suficiente para parar as reformas, mas o capital político construído para derrubá-lo pode pressionar o Congresso Nacional a barrá-las, ou em um senário mais pessimista, diminuir sua intensidade dando mais tempo para esquerda se organizar junto à população mais vulnerável. Acompanhar a movimentação do centrão e dos liberais se faz fundamental na compreensão dos processos e na estratégia de ação. Liberais podem ser aliados táticos para se conseguir sua saída e, em verdade, sem o aceite de agentes de centro tirar o Bolsonaro é praticamente inviável na atual conjuntura. 

Ao não discutir suas contradições e seguir com essa linha institucionalista e dissimulada o PT impossibilita a coesão da esquerda brasileira em uma Frente Ampla e consequentemente uma ação nacional contundente contra o governo. O “processo terapêutico” deve ser constante dentro das organizações de esquerda para que possam trabalhar seus próprios problemas internamente e organicamente, e com isso, ter uma ação mais eficiente com a população. A direita liberal e principalmente os bolsonaristas, que são uma versão de Partido Republicano estadunidense só que ainda sem partido, se aproveitam fortemente das contradições e dos problemas intentos que esquerda insiste em não resolver. 

Os panelaços vêm servindo como um catalizador do que aconteceria inevitavelmente em seu mandato, mas que agora parece mais claro: sua inabilidade política e de gestor. A manifestação já foi realizada representando algumas pautas como o Fora Bolsonaro, pelos profissionais de saúde e mesmo a favor do governo. Os atos foram até agora puxados em sua maioria por setores progressistas como uma forma (e talvez a única devido ao momento) de mostrar insatisfação ao presidente. Mas ela possui algumas problemáticas que necessitam ser apontadas para que o protesto possa ter mais eficiência e compreensão da população e não ficar em uma ação quase esquizofrênica e desconexa da realidade posta.

O panelaço em Porto Alegre e a opinião da esquerda

A regional de Porto Alegre do Coletivo Afronte! divulgou um questionário para coletar informações da militância de esquerda sobre o segundo panelaço chamado para o dia 09/03. Opiniões divergentes presentes na sociedade também constroem de forma muito parecida a visão de indivíduos que se consideram de esquerda, dos organizados ou independentes, dentro dos coletivos e partidos, gerando conflitos, velados e explícitos, sobre modos de percepção e ação que podem dificultar a construção para fora da organização. 

 Sendo assim, foi possível mapear os tipos de respostas opinativas utilizando a variável de classe a partir de diferenças dos retornos obtidos nos bairros centrais e periféricos: pessoas de bairros de considerados de classe média no geral responderam que são a favor do panelaço, mas o que mais chama a atenção é a problematização trazida sobre a apropriação do ato por movimentos de direita e como isso pode ser usado e trabalhado pela esquerda. 

As respostas das pessoas de bairros mais centrais se dividiram em: desconforto em se manifestar desta forma, mesmo assim o fizeram; outros admitem que não aderiram ao ato devido ao seu significado, mas praticamente todas as pessoas desses dois grupos dizem entender a importância de fazê-lo. Já um terceiro grupo diz aderir convictamente a manifestação sem fazer qualquer tipo de apontamento negativo, afirmando a importância de demostrar satisfação neste momento. Nenhuma crítica ao ato de se manifestar veio de bairros de classe média, mas sim a forma. 

“É uma forma de manifestação localizada, que tem historicamente uma relação com protestos contra a fome da classe trabalhadora na América Latina, mas que nos últimos anos no BR acabou se tornando parte do repertório da direita para derrubar a Presidenta Dilma num golpe parlamentar, o que por consequência gera um receio em parte da esquerda em fazer tal manifestação. De fato a classe média tem mais acesso as informações o q acaba gerando uma manifestação maior por parte deste setor, mas se temos acesso a esse tipo de informação, seja onde for, se não houver disposição para iniciar uma manifestação ela de fato não irá acontecer. Se há falta de acesso de todo tipo a classe trabalhadora o cerne do problema é o capitalismo, o qual devemos derrubar. Não há essencialismo de classe, existem condições materiais que levam as ações das classes, devemos combater o sistema e não fazer ataques pontuais de iniciativas importantes e concretas. É por isso que lutamos ? Bairro Higienópolis, 20 anos, gênero masculino.

A quarentena alavanca a adesão ao panelaço fato que foi citado em grande parte das respostas nestes bairros, situação que gera provavelmente mais insatisfação direcionada ao presidente. Não é uma equação onde quanto maior estresse gerado pela quarentena resulte em uma insatisfação com o governo, mas sim que o isolamento horizontal somado as ações do presidente criam em uma sensação de insegurança que acaba sendo direcionada a ele. 

Também não significa dizer que a culpa é da mídia pelo motivo de ela estar gerando histeria como os bolsonaristas acusam, a culpa é do Bolsonaro que não sabe e não quer acalmar a situação, pois este é o objetivo: tensionar, é a estratégia do núcleo duro. Não é estranho, se pensarmos em governos de outros países que adotam a mesma linha política de testar os limites institucionais, no Brasil, devido a frágil democracia, na pratica há mais espaço para pressioná-las.

Outro ponto relevante, mas por sua ausência, visto que se trata de um aspecto presente neste fenômeno é a falta de uma opinião sobre a participação de indivíduos que vivem na parte periférica da cidade.  Mesmo em respostas de pessoas que visivelmente possuem um certo conhecimento sobre desigualdade no Brasil e que provavelmente militam por alguma causa progressista a análise sobre as diferenças sociais aparece de forma rasa no questionário. As pouquíssimas menções que surgem nas respostas são indiretas, onde afirmam que é uma manifestação que predomina nos bairros de classe média, mas sem aprofundar o motivo de isso ocorrer e nem propor soluções para que haja uma maior adesão de pessoas que vivem em lugares mais afastados.

A insatisfação (e potência) da mulher que vive na periferia!

“o tipo de manifesto mais quieto, covarde e burguês… não é possível que a esquerda tendo tanta outras coisas pra imitar a direita se concentrou nesse ato fútil, que pobre que vai bater panela? isso é coisa de rico que muda jogo de panela em estações… sem contar que não faz diferença alguma a não ser barulho mesmo, fico pensando se quem teve essa ideia um dia pensou que essa forma de manifestação agrega a todos ou somente os bairros nobres que tem panela pra fazer isso e mais: já está em casa pra bater panela, no meu bairro, na minha realidade a gente chega em casa 22h, qm chego nesse horário nobre é no mínimo burgues, ou melhor, é no mínimo alguém que vive numa bolha; na qual teve essa ideia…” Bairro Rubem Berta, 23, feminino. 

Algumas respostas vindas de mulheres que vivem nas periferias da cidade são bastante críticas ao modelo de protesto; a adesão de pessoas que vivem em bairros mais centrais e sua condição material de participação. Até o fato de se morar em prédios de apartamentos torna o ato mais acessível para uns e dificulta a participação para outros segundo respostas coletadas. A situação pode ser vista como uma barreira, não só material para a adesão, mas também a indiferença dos que vivem nos bairros centrais para com os que moram na periferia. 

Levando em consideração que maioria das pessoas que vivem nas periferias das cidades do Brasil são negras é possível supor que esta diferença nas respostas surge por uma conjunção de fatores sócio-históricos e que em grande medida também adentram questões de raça. No Rio Grande do Sul cerca 20% da população se auto declara como negra, em contraste com o outro extremo que é o estado da Bahia, ao qual 81% da população se identifica como tal. A esquerda do RS não pode esquecer de analisar a conjuntura da periferia, suas necessidades, possibilidades e vontade de aderir a uma manifestação contra o governo. No caso porto-alegrense, se não estamos falando de uma maioria de mulheres negras, fala-se de pessoas que sofrem uma grande opressão de gênero e classe que pode ser somada ao racismo.

A estrutura capitalista atual coloca peso maior nas mulheres negras, muitas delas sustentam suas famílias e possuem jornadas duplas ou triplas de trabalho situação que tira suas possibilidades de ação política, ficando alienadas em partes no sentido trazido por Marx. Mas essa alienação é também relativa, pois a pressão da sociedade estratificada em classes recai sobre elas e tem como efeito colateral a obtenção de conhecimentos e experiencias que são norteadores para a compreensão das opressões, e por consequência, das ações dos movimentos sociais. Outros trabalhadores também passam por esta situação, mas sem dúvidas são as mulheres, negras, da periferia que são a base da sociedade brasileira e, considerando que os países de economia dependente sustentam outras nações, mundial. Elas são a resistência. 

“Sinceramente, vejo como um protesto burguês. Não se vê esse tipo de manifestação nas comunidades, pois ao invés de bater panela, as pessoas estão ocupadas procurando formas de manter elas cheias (e inteiras).” Lomba do Pinheiro 20, feminino.

Uma das tarefas da esquerda mais ligada a partidos e movimentos sociais é ir ao encontro das pessoas que vivem na periferia, de mulheres que demonstram uma indignação com toda a estrutura social e política, e com razão, pois os benefícios e os direitos mais básicos não são tão universais com dizem os detentores de poder político econômico. As mulheres que responderam o questionário estão representando a si mesmas e suas mães, tias, vós irmãs que não são estão dentro das organizações que se propõe a defende-as. 

Elas sustentam suas casas, cuidam de seus filhos e da família (o debate de gênero também se faz necessário, assim como inúmeros outros), possuem uma jornada trabalho formal (quando empregadas) de nove, dez, onze, as vezes doze horas incluindo o deslocamento que somando ao trabalho doméstico não remunerado, na prática, trabalham 24h por dia nos 7 dias da semana. Toda são a força motriz da revolução e essa nunca será feita sem sua potência e da população da periferia no geral. 

Mas esta não é apenas uma tarefa da esquerda com condições materiais. As pessoas que vivem nas periferias também precisam participar desta construção coletiva junto a setores que representam aquela esquerda mais tradicional para derrubar o governo Bolsonaro e organizar-se dentro de seu bairro, junto a familiares e vizinhos. Salvadores não existem, não aparecerá uma pessoa ou um grupo pequeno e homogêneo com soluções prontas para todas as brasileiras e brasileiros, essa precisa ser construída em conjunto, levando em consideração a complexidade do Brasil. Reuniões de bairro, trabalhadores, estudantes ou de qualquer grupo ou indivíduo que tenha interesse coletivo dentro da uma comunidade, além de um direito a organização é um dever da vida democrática. 

A partir daqui regressamos ao problema das condições materiais. Como resolvê-las? Se não há possibilidades de acabar com as diferenças econômicas e sociais, pelo menos se tem necessidade de amenizá-las ou contorná-las.

O Panelaço em disputa

Apesar das diferenças de percepção sobre a manifestação dentro da própria esquerda é fato que o panelaço foi o primeiro ato de 2020 contra o governo Bolsonaro com adesão para fora da bolha composta pelos militantes mais identificados. Atores ´políticos alinhados com o governo claramente sentiram-se incomodados com as manifestações. Foi um achado relevante, mesmo com seus problemas e limitações, considerando também o momento de isolamento social. Mesmo não sendo um ato liderado exclusivamente pela esquerda, como os atos pela educação logo no início de 2019, o saldo parece positivo pelo desgaste causado ao governo. 

Os comentários contra o panelaço também trazem questões que necessitam ser trabalhada pelos movimentos sociais. Algumas pessoas que vivem na periferia demonstraram sua clara insatisfação perante a o tipo de manifestação, trazendo a diferença material como um fator preponderante para a adesão. Neste sentido, sempre levando em consideração o momento de pandemia, aparece a necessidade da construção de ações com foco nas periferias da cidade, que possuam cunho estratégico alinhado aos panelaços e outras manifestações.

Os grandes exemplos que surgem são as ações de distribuição de alimentos e cestas básicas como a organizada por membros da comunidade do bairro Rubem Berta em Porto Alegre, em conjunto Sindippd, Resistencia-PSOL e o Coletivo Afronte. As necessidades da população são diferentes, a atuação da militância deve ser diversificada, mas o objetivo de buscar um mundo mais igual ainda segue o mesmo. Uma respondente do bairro Lomba do Pinheiro logo acima apresenta a dificuldade que o povo da periferia tem em manter suas panelas cheias. A resposta da militância acertadamente foi auxiliar nesta tarefa material, que para muitas pessoas é extremamente difícil. Esse é um dos caminhos para seguirmos disputando os rumos da situação política que se desenvolve.

 

*Militante do coletivo Afronte-POA