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A morte na esquina: Bolsonaro e a nossa agonia

Antonio Pereda e Salgado

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

A morte está solta, e nós, presos. A cada dia, a cada hora, seu odor se torna mais intenso, porquanto mais próximo. Imparável, e mesmo desejado pelos sádicos do poder e da bolsa, seu espírito, o espírito da morte, torna-se carne, faz-se corpo, toma corpos e os leva ao mundo dos mortos, como se quisesse poupar esses corações de um mundo sem coração, como se quisesse livrar logo essas pessoas carentes dessa situação carente de vida, como se quisesse poupar de uma vez essas pobres almas de uma realidade social desalmada. Há poucos dias, só víamos a tragédia em parte, mas agora, então, a vemos face a face.

A agonia cresce, pois começa a ser ladeada por cadáveres, ou ao menos pelas notícias deles. A morte mora ao lado, e por isso as portas estão fechadas. No seu íntimo, no seu imo, o capital, em sua mórbida fase ultraneoliberal, quer abri-las, de modo que o mercado, com ou sem modos, faça, a seu modo, o serviço, escolhendo, como Deus mundano que é, quem deve ou não deixar esse mundo, agora tomado por caos, pandemia e falta da autêntica fé – a fé na vida. Mas se o íntimo dos ultraneoliberais não pode vir à superfície diretamente, se as suas oníricas vontades ainda são constrangidas por alguma fachada de razoabilidade, alguns de seus íntimos amigos, como os neofascistas, podem, no entanto, se encarregar de dizer e fazer o que deveria ser feito mas jamais dito, ou pelo menos não à luz do dia. Quando os desejos do mercado se traduzem em uma sociedade-necrotério, Bolsonaro é não mais do que a burguesia sem superego.

Mas, se às claras, Bolsonaro e os neofascistas, sob olhares críticos da grande imprensa, conjuram a morte, na calada da noite, por sua vez, Maia e os seus, como bons rapaces, porém tratados pela mesma imprensa como bons rapazes, roubam covardemente direitos de um povo prestes a perder de vez o direito à vida. “Aos bancos e a todos os homens de fortuna, tudo; aos desafortunados, miséria, morte e luto”, parece ser esse o adágio das nossas instituições e seus chefes que, se comparados aos milicianos, podem mesmo parecer impolutos. Mas só parecem. Alinhados com Guedes, os ilustres e “racionais” representantes de uma burguesia que há muito abandonou a ilustração, e que por aqui sempre temeu mais o povão do que amou a razão, aproveitam-se, tal qual gatunos, da fragilidade, da inércia e do medo de milhões para, em furtos noturnos, tira-lhes seus já escassos tostões. De modo vil e timorato, levaram assim o capitalismo ultraneoliberal de imediato ao encontro da profecia que diz que “a quem tem, mais se lhe dará, e terá em abundância; mas, ao que quase não tem, até o que tem lhe será tirado”.

As tardes caem como viadutos sobre nós, nossos poetas adoecem, as panelas anunciam a noite e extravasam um pouco a nossa repulsa ao horror, mas, enquanto amanhã não for ainda outro dia, e enquanto não tivermos ainda afastado de vez o temor, os dias seguirão amanhecendo com nossos celulares iniciando nossas rotinas lúgubres com anúncios fúnebres. O Brasil vai descendo a ladeira da morte e, progressivamente, os dados ganham identidade, rosto, carne e corpo, e os mortos passam a ter nome, sobrenome, endereço, tendo sido gente pela qual nós tínhamos contato, amizade, amor e apreço. A morte, antes longínqua, periférica e severina, agora está na esquina. Pretos, quase todos pretos. Pobres, quase todos pobres. Trabalhadores, milhares de trabalhadores. Uma ingente massa de gente que acabará, talvez, enterrada como indigente, em funerais apenas de corpos, já que nem os vivos poderão enterrar seus mortos, e nem mesmo os mortos de alma poderão fazê-lo, deixando a cargo de Deus levar as marias, selmas e matheus.

O único jeito de frear essa carnificina é derrubar, o quanto antes, Bolsonaro, Mourão, Moro, Guedes, Teich e todos os que, amantes mais ou menos declarados do Terceiro Reich, fazem do Brasil um imenso cemitério para trabalhadores, negros e todo o tipo de gente que nunca foi de fato ouvida por nenhum ministério. É gente humilde, dá vontade chorar, mas eles, os generais, o capitão, o bispo de olhos vermelhos e o banqueiro de um trilhão, não são de chorar, pois dedicam muito tempo a lucrar. Mas agora, é o lucro ou a vida, a vida ou a morte, e chegou a hora de decidirmos, nós mesmos, a nossa sorte. Quem vai viver e quem vai morrer, não podem ser a bolsa e Bolsonaro a escolher. Também não podem ser Maia, Dória, Witzel e toda essa gente que com o povo só tem desprezo. Façamos nós com as próprias mãos tudo que a nós nos diz respeito.

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