O Covid-19 no Brasil, até o dia 10 de abril, tinha registrado 19.943 casos e 1.074 mortes, além das inúmeras subnotificações já reconhecidas pelos governos estaduais e pelo ministério da saúde. Diversos especialistas vêm apontando a maior e mais eficaz medida para combater o vírus e achatar a curva de contágio: o máximo de isolamento social.
Felizmente, as universidades públicas, polo de resistência em defesa da ciência no país, foram uma das primeiras instituições a parar e declarar a suspensão do seu funcionamento presencial. Mantiveram normalmente apenas o essencial no combate ao Covid-19: os hospitais universitários e as pesquisas. No entanto, na contramão desse movimento, o Ministério da Educação publicou no diário oficial, dia 18 de março, uma medida liberando o ensino a distância de cursos presenciais. A partir disso, o debate surgiu em diversas Instituições Públicas de Ensino Superior, e as decisões foram tomadas, muitas vezes, por fora da participação da comunidade universitária. Superficialmente, pode parecer um simples debate sobre a necessidade de manter os calendários acadêmicos, mas de fundo é uma discussão sobre permanência estudantil e projeto de universidade.
Não vivemos um período de normalidade. Não temos como prever todas as consequências da pandemia, mas sabemos que ela já iniciou afetando de diferentes formas as vidas das pessoas, em especial aquelas que se encontram em situações econômicas difíceis. Nesse sentido, a principal preocupação das universidades deveria ser com a saúde e as vidas de sua comunidade acadêmica e não com a necessidade de manter o semestre acadêmico a qualquer custo. Estamos falando de estudantes que podem adoecer ou ter casos de adoecimento na família. Estudantes que podem ter perdido seu emprego ou ter visto a renda familiar diminuir, enquanto temem o futuro da permanência estudantil durante a crise. O mesmo pode acontecer com os professores e técnicos administrativos. A crise sanitária, econômica e social traz diversos problemas para o cotidiano da comunidade universitária e, neste momento, não pode ser que acompanhar o semestre letivo por plataformas online se torne mais uma pressão e um motivo de angústia aos estudantes.
Além disso, muito felizmente, a composição social as universidades públicas vem se popularizando, a partir de diversas lutas travadas nos últimos anos. Uma pesquisa divulgada em maio de 2019 mostra que 70,2% dos estudantes das universidades federais são de baixa renda (renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo) e a realidade das universidades estaduais também não é tão distante. Temos hoje estudantes universitários em diferentes situações sociais e econômicas: nem todos têm computadores, internet de qualidade, lugar adequado para o estudo em suas casas. Mas esses não são os únicos problemas da implementação do ensino à distância. Sabemos que essa crise nos afeta de formas desiguais: em um momento em que o cuidado e a saúde estão no centro das necessidades, as mulheres assumem ainda mais tarefas e responsabilidades. As diversas estudantes e professoras mães passam agora por ter que cuidar de seus filhos a maior parte do dia, com o fechamento das creches e escolas, além de muitas vezes também ser responsável por parte dos cuidados de seus familiares.
Outro problema é que a estrutura das instituições não está preparada para o modelo EAD, nem fisicamente, nem pedagogicamente. Durante uma pandemia, com o fechamento de todos os espaços coletivos e com a volta de diversos estudantes para suas cidades, transformar seus cursos em disciplinas online é uma afronta à universidade pública. Na maioria dos casos, os professores estão dando suas disciplinas da maneira como podem, o que também é um tipo de precarização do trabalho e do ensino. Estamos acostumados a usar diversas plataformas digitais que dão apoio e facilitam nossos estudos. Mas elas são, e devem ser, apenas isso: um auxílio às aulas presenciais.
Estamos diante de muitas incertezas, do medo de adoecer, de perder pessoas e do receio com a crise econômica. Para quem enfrenta ansiedade, depressão e outras questões de saúde mental, isso se torna ainda mais difícil. O isolamento e os problemas com atendimento psiquiátrico e psicológico na quarentena afligem uma parcela muito importante da nossa população. Sabemos que esse é um tema muito delicado nas universidades. Lidamos com a realidade de diversos estudantes que passam por isso. E para quem sente isso na pele, como é possível garantir a conclusão do semestre?
Vemos com tudo isso que uma “quarentena tranquila” e o “tempo ocioso” é um privilégio de poucos estudantes, não é a realidade da maioria. A decisão do MEC e as universidades que estão mantendo seu semestre pelo modelo EAD escolhem secundarizar o tema da permanência estudantil e de um ensino acessível e de qualidade. Não pode ser que nesse momento difícil que estamos passando, algum estudante fique para trás no meio do caminho. Sabemos que se acontecer, serão aqueles que já estão sendo prejudicados de diferentes formas pelas crises e pelos governos que colocam os lucros acima das vidas e dos empregos. As universidades públicas devem servir como polo de resistência da ciência, ajudando no combate ao coronavírus, mas também devem ser linha de frente na defesa de um perfil cada vez mais diverso para o ensino superior, da permanência estudantil e do ensino presencial.
Manter o calendário acadêmico com o modelo EAD é mais uma demonstração do elitismo que ainda combatemos nas universidades. Mas não podemos esquecer que não existe espaço vazio na luta política: se a gente retrocede eles avançam. Uma brecha pro ensino à distância hoje pode se voltar contra nós no fim do isolamento social por parte dos setores mais reacionários da nossa sociedade, uma vez esse debate tem tudo a ver com a discussão sobre projeto de universidade. Antes da pandemia já existiam diversas propostas como o “ensino misto” (presencial + a distância), ou mesmo de substituição gradual do modelo atual para o EAD, ao não sermos veemente contra o EAD, ideologicamente essas propostas podem ganhar força.
Nós temos um lado: o lado da permanência estudantil, da solidariedade, da defesa da vida e da universidade pública. Nenhum estudante pode ficar para trás.
*3ª Vice – Presidente da UNE e integrante da Coordenação Nacional do Afronte
** Coordenadora do Centro Acadêmico de Ciências Humanas da Unicamp, ambas da Coordenação Nacional do Afronte!
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