“E os levarei a comer a própria carne de seus filhos, a carne de suas filhas, e se alimentará cada um da carne do seu próximo, por causa do terrível cerco militar e do desespero provocado por seus inimigos, os que planejam de todas as formas tirar-lhes a vida” (Jeremias 19:9)
É um tanto quanto inacreditável que uma parte não desprezível da esquerda, a começar por algumas de suas principais lideranças, tenha saído em defesa de um ministro golpista de um governo neofascista, adentrando assim, ainda que na qualidade de mera torcedora, nas disputas internas do governo Bolsonaro. Convém lembrar que, apesar de arroubos de independência e retórica errática, o ministro, com ares de ator canastrão, se mostrou, em sua coletiva desta noite, mais uma vez como defensor da política de “relaxar o isolamento onde for possível”, chegando até a aconselhar “corridinhas na rua” desde que não sejam feitas por “muitos corredores juntos”, prescrição médica a qual se seguiu outra, feita por um assessor que orientou os cidadãos que, por ventura, manifestem “sintomas gripais a não sair de casa” – ora, mas os outros, devem sair? – possivelmente teremos todos nós nos indagado de pronto naquele momento.
O ministro que hoje se disse “boiadeiro” e fez menção a Almir Sater, por mais que possa estar se postulando como alternativa política, num futuro próximo, ao seu chefe Bolsonaro, segue, ainda que com notas dissonantes, tocando na mesma harmonia deste, segue como músico da mortífera banda presidencial, segue como boi governamental, mesmo que pareça sonhar com o dia em que, talvez “por necessidade”, venha a ser o “dono de uma boiada cujo vaqueiro morreu”, pra citarmos aqui outro compositor regionalista (bem melhor, por sinal). Esperto conquanto simplório, Mandetta discursou hoje já pensando no amanhã, ou melhor, nos amanhãs, dentre os quais, a depender do “sabor das massas”, pode existir tanto aquele em que ele, o ministro, seguirá como um homem racional dentro de um governo forte e irracional, como aquele em que ele se apresentará como a melhor das “maças” à donzela da nossa burguesia, que já mostrou não ter problemas em comer e empurrar ao povo alimentos envenenados caso não encontre nada melhor como opção ao PT no cardápio eleitoral. Assim, se Bolsonaro se mostrar forte, Mandetta terá sido o seu ministro da crise, o seu general na sua guerra mais decisiva (não obstante, ao que tudo indica, ter sido mantido hoje no front pelos generais propriamente ditos); porém, se seu patrão fracassar, ele, vendo-se no jogo político como opção, poderá alegar a impossibilidade de levar a cabo sua estratégia de contenção da pandemia, pegar sua viola e, sem agonia, ir “cantar noutro lugar”, afinal, “todo mundo ama um dia, todo mundo chora, um dia a gente chega, e no outro vai embora”.
Que uma parte da burguesia, ávida por encontrar um nome golpista qualquer adepto do seu programa ultraneoliberal porém com a boca mais contida e modos mais comportados do que o Bufão no poder, tente defender Mandetta – lobista dos planos de saúde e votante da EC 95 que sucateia ainda mais o SUS – é compreensível. Afinal, perto de Hitler, até Himmler poderia parecer razoável e sensato. Mas que uma parte da esquerda saia em defesa do quase-demitido ministro de um governo neofascista exprime irretorquivelmente o fato de que não só desespero, como também a falta de perspectiva estratégica e o estéril pragmatismo político das “alianças amplas” são, não obstante todas as nossas seculares derrotas por elas causadas, ainda muito grandes entre nós. Como já disse certa feita Antonio Gramsci, a “história ensina, mas não tem alunos”
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