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Poderá Bolsonaro dar o golpe em meio à pandemia? Burguesia e ofensiva bonapartista num país à beira do caos

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“O bonapartismo é a verdadeira religião da burguesia contemporânea. Cada vez mais fica claro para mim que a burguesia é incapaz de governar diretamente, e por isso ali onde não existe uma oligarquia que em troca de uma boa remuneração (como se faz aqui na Inglaterra) pode-se encarregar de dirigir o Estado e a sociedade no interesse da burguesia, a forma normal é a semiditadura bonapartista. Esta defende os interesses materiais essenciais da burguesia até contra sua própria vontade, mas ao mesmo tempo, não lhe concede acesso ao poder (político). Do outro lado, esta mesma ditadura, por sua vez, se vê obrigada, contra a sua vontade, a fazer seus os interesses materiais da burguesia”
(Engels, em carta a Marx) (1)

Visto pelos de cima como a única opção com viabilidade eleitoral capaz de derrotar o petismo e preservar o programa econômico do Golpe de 2016, Bolsonaro, uma vez eleito, sempre governou, por assim dizer, um tanto quanto “descolado” da burguesia. O caráter bonapartista de seu governo, dotado de traços protofascistas, se expressa limpidamente em sua própria composição suja, em seu próprio “material humano” degradado, na medida em que nos postos-chave do comando político não estão as representações tradicionais, partidárias, institucionais, orgânicas das nossas classes dominantes, ou pelo menos não dos seus setores mais fortes, importantes e organizados.

Os esforços de Bolsonaro, por meio de Guedes e demais ministros e quadros arregimentados entre arrivistas e aventureiros de uma lumpemburguesia, para atender aos interesses dos setores monopolistas e financeiros do grande capital, sobretudo por meio das contrarreformas e de uma austeridade inclemente e desumana, não negam, em absoluto, a existência dessa autonomia relativa do governo em relação à classe dominante. Do contrário, eles apenas confirmam a natureza bonapartista do governo, natureza esta que o governo intenta impor ao regime, no que, aliás, não faz questão alguma de disfarçar. Conseguir apresentar-se, em um momento de crise e instabilidade, como o salvador supremo da burguesia, oferecendo-lhe ganhos econômicos obscenos e estabelecendo com esta uma relação direta e sem intermediários, ao passo em que lhe submete politicamente, lhe priva de suas próprias representações políticas e lhe retira os instrumentos de seu poder político direto: eis o propósito, o sentido e o caráter de todo regime bonapartista.

Nas últimas semanas, esse descolamento, essa decalagem do governo em relação ao grande capital, parece ter aumentado, o que se verifica na inegável crise institucional do país, intensificada pelas convocatórias dos atos contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, encampadas pela “intrépida” trupe governamental, a começar pelo próprio presidente bufão, seus filhos degenerados e um general senil. As representações tradicionais da burguesia, ou pelo menos as dos seus setores que têm se portado como “liberais” – e que talvez a melhor designação para eles seja a de liberais-blindados, posto que adeptos da democracia blindada (2), que, sem maiores problemas, funcionava relativamente bem até o Golpe de 2016  –, reagiram de pronto, e aumentaram o tom das críticas ao candidato a Bonaparte. À maneira de um zagueiro “xerifão”, conquanto fleumático e desprovido de bravura, Rodrigo Maia reagiu como se dissesse: “Aqui não!”. Ainda um tanto quanto acovardado, o STF, contudo, também respondeu a Bolsonaro, e o fez por meio de seu decano, Celso de Mello, que acusou o presidente de “desconhecer o valor da ordem constitucional”  (3) – o que, na verdade,  faz tanto sentido quanto acusar um devoto de ter devoção ou um ateu de desconhecer o valor do reino celestial. Talvez mais significativo dessa reação à ofensiva bonapartista de Bolsonaro por parte da burguesia, ou pelo menos por parte desse seu estrato político liberal-blindado , foi o papel assumido pela grande imprensa monopolista, com destaque para A Globo , A Folha de São Paulo e O Estadão , que indiscutivelmente subiram o tom da crítica ao governo, ao seu despreparo contumaz e às suas diatribes despropositadas – mesmo que, como de hábito, o fizessem entoando incontinentemente o mantra neoliberal da necessidade de manutenção de um ajuste fiscal (que, como pontua Elaine Behring, no Brasil já é permanente) (4) e da realização de “mais reformas”, em especial no que tange à retirada de direitos dos trabalhadores do setor público. (5)

Nesta semana, quando a pandemia do coronavírus, aquilo que Bolsonaro chamara de fantasia, mostrou ser real e letal no país, e quando, diante disto, o governo segue não fazendo muito mais do que lavar as mãos – ou melhor, não lavá-las –, cresceu a insatisfação de parcelas da população com o presidente, o que vem se expressando na ocorrência de “panelaços” plebeus em algumas grandes cidades, os quais, entretanto, ainda não alcançaram massivamente seus bairros mais populares e periféricos. Ao que tudo indica, infelizmente, o cheiro de morte traduzir-se-á, nos próximos dias, em milhares de mortes, sobretudo entre os trabalhadores mais pobres e desprotegidos pelo Estado e, claro, pelo deus-mercado. A crise econômica, já instalada há tempos, vai se agravar, o que, claro, tende a provocar falências, bancarrotas e atingir inclusive parcelas dos segmentos médios adeptos do bolsonarismo. Da parte do governo, são cogitadas medidas militaristas de exceção, de restrição de liberdades como forma de conter o alastramento viral, o que poderá funcionar como ensaio e preparação para uma ofensiva golpista cuja tarefa não será então muito mais do que tornar permanente o que supostamente era para ter sido apenas temporário, fazendo da excepcionalidade, finalmente, a regra, e transformando a anormalidade em norma. Ainda alquebrada pelas recentes derrotas, a classe trabalhadora, trancafiada em casa ou indo compulsoriamente trabalhar, parece dar sinais de que pode começar a sair das cordas, mas, por ora, ainda assiste, assustada, resignada ou indiferente, à luta no andar de cima, à luta do projeto bonapartista ultraneoliberal e reacionário de Bolsonaro contra as instituições e representações políticas da democracia-blindada , também estas adeptas, convém assinalar, de um programa econômico ultraneoliberal e socialmente devastador.

Diante desse ominoso cenário descrito de modo assaz breve nas linhas acima, no qual o tal descolamento do governo em relação às representações e instituições burguesas – descolamento este intrínseco ao atual governo, vale lembrar – dá sinais de estar aumentando, algumas questões devem ser colocadas à esquerda socialista, para qual está colocada a necessidade de, por meio de uma análise concreta de uma situação concreta, estabelecer tarefas estratégicas e táticas: a) Bolsonaro parece ou não estar aproveitando a crise pandêmica para avançar no seu projeto de implantação de um regime bonapartista de jaez semifascista? No caso da resposta à tal indagação ser positiva – o que nos parece correto –, deve-se, então, colocar-se outra: b) Bolsonaro, para além de suas fanáticas bases pequeno-burguesas e de seu lumpesinato miliciano, já conta para sua empresa golpista com o apoio da alta hierarquia das Forças Armadas e, sobretudo, com o apoio, em grau suficiente, daquilo que Marx chamou de “ a massa extraparlamentar da burguesia ”, isto é, a burguesia propriamente dita, os grandes “homens do mercado”, os quais estariam então inclinados a se desfazer de seus representantes políticos tradicionais, dos seus partidos, da sua imprensa, do seu Congresso, do seu Supremo e se submeter politicamente a Bolsonaro, optando, assim, em meio ao pandêmico caos nacional, por “ um fim com terror, do que [por] um terror sem fim ”?

Se a resposta for sim, presume-se, portanto: que Bolsonaro está então agora mais forte do que antes para dar o golpe; que, sob a “quarentena”, com muita gente em casa e com o Congresso funcionado online, ter-se-ia uma “tempestade perfeita”, uma oportunidade socialmente adequada para implementação de um “estado de exceção”, como disseram Rejane Hoeveler e Danilo George; e que as críticas cada vez mais acerbas da parte das instituições burguesas, como destaque para a grande imprensa, seriam então não mais do que expressões de seu declínio, de sua perda de representatividade política junto ao grande capital, e que estas estariam prestes a ficarem suspensas no ar, desprovidas de base social burguesa, restando-lhes uma oposição meramente política ao golpismo bolsonarista. Nesse caso, o aumento do descolamento do governo em relação às representações da classe dominante, isto é, o aumento da autonomia relativa de Bolsonaro em face à burguesia, significaria uma maior rendição política e simultaneamente um maior apoio social desta àquele, e, assim, recorrendo a uma analogia com a própria história política do país, o atual presidente estaria agora, no que tange exclusivamente à relação “ governante bonapartista-massa extraparlamentar da burguesia ”, mais para o Vargas de 1937 do que para o Vargas de 1945 – ano este em que, mesmo tendo marcado eleições, o ditador dava sinais de querer seguir no poder, sendo deposto a 29 de outubro pelos seus próprios generais, então já sob às ordens de uma burguesia que se reorganizava politicamente. Vitorioso ao cooptar socialmente a burguesia e quebrá-la politicamente, Bolsonaro mostraria, então, que “ só o roubo pode salvar a propriedade; o perjúrio, a religião; a bastardia, a família; a desordem, a ordem !”

Se a resposta à tal questão, entretanto, for negativa, afirmar-se-á, portanto, que Bolsonaro, mais próximo ao Getúlio de 1945 do que ao de 1937, está hoje mais fraco do que ontem junto à tal massa da burguesia , aos grandes empresários e banqueiros, e que, por conseguinte, sua ofensiva seria um sinal de desespero, uma tentativa de, apostando no espírito de iniciativa e na inércia de seus adversários, conter, antes que seja tarde, o seu enfraquecimento progressivo por intermédio de um golpe de força, um golpe de Estado que, sendo exitoso, colocaria à classe dominante um fato consumado, diante do qual os nossos homens de fortuna, então politicamente desafortunados, nada poderão fazer salvo se conformar e, claro, lucrar. Bolsonaro, não obstante xucro e bronco, mostraria, assim, ser dotado de mais cachimônia do que nossos ilustrados e insignes homens do Leblon e dos Jardins, e evidenciaria que ele é quem sabe o que é politicamente melhor para estes, a despeito de suas consciências, e que a única forma da bolsa ser salva é se a coroa estiver em sua cabeça e o cetro, ou melhor, o fuzil, em suas mãos.

Entretanto, se Bolsonaro, enfraquecido junto à burguesia e já um tanto desgastado junto ao trabalhadores em um cenário de caos econômico e sanitário, não conseguir ter êxito em, ou nem mesmo tentar, um putsch bonapartista, poderia ele, a julgar pelo que hoje podemos vislumbrar acerca das condições sociais e da correlação de forças, ser deposto por obra da classe dominante, isto é, ser apeado da presidência por meio de uma manobra que se valesse das instituições burguesas tradicionais? No caso da resposta ser positiva, e se então viéssemos a ter algo como um impeachment, a tendência da burguesia brasileira e de suas forças políticas seria a de tentar restabelecer a democracia blindada em seu estágio pós-Golpe de 2016, isto é, com tendências autoritárias e sem reconhecer ao PT a possibilidade de governar, entregando a Maia ou a outra insípida figura parlamentar o leme de um regime semiliberal, ou ela, a burguesia, iria além, livrando-se do inconveniente presidente bufão mas incorporando setores bolsonaristas como Mourão, e, assim, instalando aquilo que Gramsci chamou de um “cesarismo sem César”, um semibonapartismo fascistizante mas sem um inconveniente candidato a Bonaparte, em uma palavra, um bolsonarismo sem Bolsonaro?

Evidentemente, apesar de certas inclinações hipotéticas, não temos respostas às tais questões, porém, pensamos que, coletivamente e por meios da articulação de adensadas pesquisas empíricas e análises teóricas sofisticadas, talvez seja possível à esquerda socialista tentar respondê-las. Nossa intenção, aqui, foi apenas a de enunciá-las o quanto antes.

 

NOTAS

1 –   ENGELS, F. “Carta de Engels a Marx (13 de abril de 1866)” apud BARSOTTI, Paulo. “Engels e o bonapartismo” in Novos temas (Revista do Instituto Caio Prado Jr.), n°. 1. Salvador: Quarteto/ São Paulo: Instituto Caio Prado Jr., setembro de 2009, p. 108. Esta carta pode ser encontrada também em MARX, Carlos e ENGELS, Frederico. Correspondencia . Buenos Aires: Cartago, 1973, p. 174.

2 –   Quanto ao conceito de “democracia blindada”, ver DEMIER, Felipe. Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017.

3 – Notícia da Rede Brasil Atual

4 –   BEHRING, E. “‘Escassez é um mito vendido caro’: sobre o orçamento público em tempos de pandemia”. Esquerda Online, 19/03/2020.

5 –   Ver a coluna “Opinião do Globo” de 20/03/2020, intitulada “Funcionalismo tem de dar a sua contribuição”.
6 –   MARX, K. O 18 brumário de Luís Bonaparte [e Cartas a Kugelman]. Tradução de Leandro Konder e Renato Guimarães. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978, p. 99. Grifos do autor.

7 –    Idem , p. 104. Grifos do autor.

8 –  HOEVELER, R. e GEORGE, D. “Pandemia e golpismo: a tempestade perfeita no Brasil”. Esquerda Online, 19/03/2020.

9 –  MARX, K. O 18 brumário de Luís Bonaparte [e Cartas a Kugelman]. Tradução de Leandro Konder e Renato Guimarães. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978, p. 123. Grifos nossos.

10 – GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere . 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007., volume III, p. 77.

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