Na última semana não se debate em outro assunto na mídia, rodas de conversa, ambiente de trabalho, que não seja a pandemia do COVID-19. Enquanto observávamos tudo de longe era uma coisa, mas, quando os casos chegam ao nosso lado, a forma de encarar muda completamente. Muda porque há mudanças objetivas que vão necessitar serem colocadas em nossa rotina e muda também pela psicologia do pânico.
Por outro lado, o mais interessante nisso tudo é o urgente debate sobre saúde pública e seguridade social que necessariamente uma pandemia causa. Vivemos num mundo de incentivo ao individualismo, empreendedorismo, onde gerações foram convencidas que o serviço público não presta e é composto por trabalhadores “parasitas e privilegiados”. Não quero aqui fazer o discurso simplesmente do “eu avisei”, porquê não é isso que resolve nada, a não ser inflar egos. Mas sim o discurso do “precisamos refletir sobre”.
Hoje, a pandemia chega ao país.
Um Brasil que passou por uma reforma trabalhista e da previdência que aumentou significativamente o número de empregos informais e ameaçou o direito à aposentadoria dos idosos. Um Brasil que aprovou a PEC 95 que estipula um teto de gastos para saúde, educação e segurança públicas por 20 anos, congelando esses gastos, acabando com os concursos públicos e portanto com a reposição da força de trabalho com garantias sociais.
Ainda por cima, temos um Brasil que colocou em dúvida os conhecimentos científicos e a credibilidade científica mundial, fazendo piadas com isso e realmente criando uma geração de terraplanistas e sexistas, que acreditam que a ciência é uma piada, cospem nas evidências científicas, caçoam da mídia, tratam servidores públicos como parasitas e aprenderam a chamar direitos sociais conquistas de privilégios.
Esse é o Brasil do coronavírus.
E te digo, que é só graças a essa massa de servidores públicos da saúde, exaustos em suas rotinas e ao sistema público de saúde brasileiro que vamos sobreviver a essa crise. Não tenham dúvidas, os profissionais de saúde serão e já estão sendo na linha de frente desse combate.
São eles os que estarão nas trincheiras das triagem, do atendimento, prevenção e cura dessa pandemia. São os mais expostos e são também aqueles que estão sob um governo que caçoa das ações necessárias e que só vai usá-las quando enxergar nessas ações a oportunidade pra repressão e coerção.
O SUS, felizmente, tem muitas reservas, reservas de excelentes profissionais, reservas de excelentes programas de prevenção, de protocolos de serviços que quando disparados funcionam de maneira ágil e eficaz. Mas o SUS também sente os cortes, a pressão social, o desespero da população sem orientação. Também sente a falta de política pública unificada, sente falta de recursos. Sente o desmonte da atenção básica e lotação dos prontos socorros (lugares errados para essa triagem inclusive).
Falar sobre isolamento do pessoas, de trabalhadores, é necessariamente falar sobre seguridade social. Pois enquanto a Itália está reembolsando quem é obrigado a se isolar, o Brasil destrói sua previdência social e aumenta a informalidade no emprego. Não adianta a histeria da classe média, sem uma política pública que dê condições das pessoas terem responsabilidade social. Ou vocês acham que só vai pegar covid-19 quem tem direito trabalhista? Não. E isso expõe a maior ferida dos trabalhadores nesse momento. O sistema de seguridade social é essencialmente um sistema de solidariedade coletiva, e que num momento como esse se mostrará essencial, ou teremos um crescimento ainda mais rápido da propagação.
É verdade por outro lado, que não ter pânico é essencial, saber que a letalidade do vírus é baixa ..apesar de ser importante. Mas a real é que precisaríamos pensar num sistema que fosse capaz de proteger os vulneráveis: idosos, pessoas com comorbidades, imunodeprimidos, gestantes. Para isso é preciso sim ter responsabilidade social, mas é preciso também ter políticas públicas, em vez de individualizar a responsabilidade apenas.
O SUS e a previdência social são patrimônios da classe trabalhadora desse país e são eles, ou o que resta deles, que vai controlar tudo isso. E ficará de lição… será que o SUS , o serviço público, a previdência social, os “mais médicos cubanos”, deveriam ser descartados e colocados em nosso discurso como algo a ser substituído pela ação individual empreendedora das pessoas? Acredito que não. Não somos jovens para sempre, responsabilidade social com outra geração é a essência da previdência social destruída por esse governo.
* Mariana Pércia é médica e residente em ginecologia e obstetrícia.
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