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BRASIL

A austeridade e o SUS: os efeitos do ajuste fiscal na saúde

Jorge Henrique de Sousa, de Brasília (DF)
Jefferson Peixoto / SECOM-BA / Fotos Públicas

Criança é vacinada em Salvador (BA)

A CRISE ECONÔMICA DE 2008 E AS POLÍTICAS DE AUSTERIDADE

A crise econômica que se abriu em 2008, longe de ter sido solucionada, apresenta sinais de recrudescimento a nível global. Os governos neoliberais, orientados pelo Banco Mundial e Pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), apresentaram como saída para essa crise uma profunda política de austeridade para as economias dos países centrais e da periferia.

As políticas de austeridade são conhecidas por exigirem grandes sacrifícios da população, em virtude do impacto negativo das mesmas para os direitos humanos, o direito à saúde, ao trabalho e aos direitos civis e políticos. Elas se caracterizam pela restrição a oferta de bens e serviços, em razão de reformas estruturais e de cortes de investimentos em políticas públicas (1).

Países da Europa como Grécia, Irlanda, Portugal, Chipre e Espanha experimentaram redução de investimento em serviços públicos, após firmarem planos de resgate financeiro com a Troika (cooperação entre o Banco Central Europeu, o FMI e a Comissão Europeia), no período posterior a 2008. Essa redução de gastos proporcionou o aumento do desemprego,da pobreza e da desigualdade social, com consequências graves para a saúde da população (2).

A saúde mental da população, por exemplo, com o aumento da pobreza, é afetada com a elevação da prevalência de depressão e ansiedade, principalmente entre os que perderam o emprego. Outras consequências indesejáveis são o aumento das taxas de suicídio, aumento de doenças crônicas e de doenças infectocontagiosas, diminuição do acesso aos serviços de saúde e aumento do consumo de bebidas alcoólicas (3).

Em análise sobre o efeito de crises econômicas e das políticas de austeridade sobre a mortalidade em 26 países europeus, verificou-se que o de aumento de 1% na taxa de desemprego provoca a elevação de 0,79% nos casos de suicídio em pessoas com menos de 65 anos (3).

Em relação aos sistemas de Saúde, países como a Alemanha e Espanha implementaram reformas estruturais com cortes no orçamento, aumento do co-pagamento, redução das despesas com pessoal e abertura do sistema para a participação de prestadores privados (4). Na Inglaterra, o impacto dessas medidas para o Serviço Nacional de Saúde (NHS) foi a fragmentação da gestão, a mercantilização do sistema, com incentivos à compra de serviços privados e a piora da qualidade dos serviços, com elevação do tempo de espera e insatisfação dos usuários (5).

A EC 95: O CASO BRASILEIRO

No Brasil, há muito tempo o subfinanciamento crônico é identificado como um dos maiores obstáculos para o SUS. (a) Já no início dos anos 1990, os governos começaram a desconsiderar a indicação constitucional de investimento mínimo de 30% do Orçamento da Seguridade Social (OSS); (b) em 1994, com o Fundo Social de Emergência que em 2000 passou para a DRU (Desvinculação das Receitas da União),  é retirado, anualmente, 30% do OSS; (c) desde a década de 1990, são realizados subsídios públicos ao mercado, com a renúncia fiscal às empresas dos planos e seguros privados de saúde, (d) o engavetamento do PL-01/2003, do PL-121/2007 e do PL 141/2012 que elevavam o financiamento federal para o mínimo de 10% da Receita Corrente Bruta da União. (e) a aprovação da MP-656/2014 que permite a entrada do capital estrangeiro no mercado nacional da rede privada da Saúde, (f) a EC-86/2015 que exclui a reavaliação constitucional quinquenal, com valores abaixo dos dispostos pela EC-29/2001, e que constitucionaliza o subfinanciamento federal do SUS (6).

Com insuficientes recursos o SUS enfrenta problemas na manutenção da rede de serviços, na remuneração de seus trabalhadores e no investimentos para a ampliação da infraestrutura pública. O subfinanciamento também proporcionou a livre expansão do setor privado, com a decisão de compra de serviços, subsídios e desonerações para o setor, fortalecendo, assim, a ideologia da privatização (7).

A aprovação no Congresso Nacional da Emenda Constitucional 95/2016 reduziu a correção anual do financiamento federal para a área social, incluindo o SUS. A nova regra zera o crescimento real do financiamento por 20 anos, ao vinculá-lo à variação da inflação do ano anterior e não à evolução das receitas públicas. 1 Com a aprovação da EC-95/2016, o subfinanciamento crônico do SUS fica constitucionalizado, cristalizando as dificuldades acumuladas desde 1988 (7).

A EC 95 não congelou apenas o gasto mínimo com saúde e educação, mas estabeleceu um teto para as despesas primárias, que são as despesas com políticas públicas que atuam sobre os determinantes sociais da saúde, tais como:saneamento básico, alimentação, segurança pública, moradia, assistência social, entre outros.Algumas pesquisas estimam que a redução no investimento em políticas públicas será de até oito pontos percentuais, de 20% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2016 para 12% até 2036 (8).

Para a pesquisadora do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), Fabíola Sulpino, o congelamento dos investimento agrava os efeitos negativos da crise econômica, pois reduz a proteção social no momento em que os indivíduos estão sofrendo com o desemprego, endividamento, depressão, etc, o que diminui ainda mais a capacidade de resposta do SUS (8).

OS EFEITOS DA AUSTERIDADE NA SAÚDE DOS BRASILEIROS

Davide Rasella, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), coordenou um estudo sobre os efeitos das medidas de austeridade fiscal na saúde dos brasileiros, utilizando um modelo de microssimulação, que compara o cenário de redução na cobertura do Programa Bolsa Família (PBF) e da Estratégia Saúde da Família (ESF) com o cenário em que esses programas mantêm os níveis de proteção social, principalmente para um indicador especifico: a mortalidade infantil.

As evidências demonstram que a alta cobertura municipal do PBF – que melhorou a nutrição infantil – e a alta cobertura municipal da ESF reduziram a taxa de mortalidade infantil em 17% e 12%, respectivamente, no período de 2004-2009 (9).

De acordo com o estudo, as previsões indicam que, no período de 2017 a 2030, a redução da cobertura do PBF e da ESF, em comparação com a manutenção de sua cobertura, poderia resultar em uma taxa de mortalidade infantil até 8,6% maior em 2030. Essas medidas de austeridade seriam responsáveis por quase 20.000 mortes evitáveis ​​na infância e 124.000 hospitalizações evitáveis ​​na infância entre 2017 e 2030 (9).

Em que pese a crônica falta de investimentos no SUS, no período de 1998 a 2018, o número de equipes de saúde da família aumentou, progressivamente, de cerca de 2000 para 42.975, aumentando a prestação de serviços de 7 milhões (4% da população) para 130 milhões de pessoas (62% da população) (10).

O Brasil também registrou um declínio de 42% na mortalidade infantil entre 1990 e 2000 e uma incidência de 27,6 mortes por 1.000 nascidos vivos após o período de 10 anos, teve o segundo melhor desempenho na redução da mortalidade em crianças menores de 5 anos, de 1990 a 2006, e foi um dos poucos países que alcançou a Meta de Desenvolvimento do Milênio ao reduzir a mortalidade infantil em dois terços entre 1990 e 2015 (13,3 mortes por 1.000 nascidos vivos) (10).

Corroborando com as previsões sobre os efeitos das medidas de austeridade implementadas em 2018, os resultados dos cenários simulados mostram que o congelamento dos investimentos reverterá o declínio e agravará as desigualdades regionais de mortalidade infantil, com um aumento de 5% nas áreas mais pobres em comparação com 2015, inaugurando o primeiro aumento desse indicador desde 1990 (10).

As estimativas de uso dos serviços de saúde indicaram que o SUS foi a principal fonte de assistência médica para a população de baixa renda que não tem acesso a seguros privados de saúde.10, no entanto, as previsões com a austeridade fiscal evidenciaram que os municípios mais pobres seriam, desproporcionalmente, os mais afetados, garantindo que as desigualdades já existentes no Brasil persistam até 2030 (9).

O INVESTIMENTO EM SAÚDE E O PIB

Em consonância com a EC 95, que deixou de fora do teto de gastos as despesas com pagamento de juros e com a amortização da dívida pública, reformas estruturantes dos serviços públicos estão sendo implementadas com o objetivo de privatizá-los e de aumentar o rentismo de credores nacionais e internacionais.

Na saúde, além da manutenção das renúncias fiscais em níveis elevados e das privatizações dos serviços, o Governo Federal discute a proposta de desvinculação total dos recursos em políticas, programas e serviços de saúde e a criação de planos de saúde acessíveis à população, como forma de subvencionar os seguros privados.

O outro lado dessa moeda é que os gastos sociais podem ser vistos como investimento para o crescimento do PIB. Estudos recentes demonstram que o financiamento em políticas sociais tem efeito multiplicador para a economia, como o realizado em 25 países europeus, Estados Unidos e Japão, onde verificou-se que a cada unidade monetária investida em saúde e educação o aumento esperado para o PIB é de três unidades monetárias (1).

No Brasil, calculou-se que o efeito multiplicador para o PIB é de 1,7 para a saúde e 1,85 para a educação, o que é considerado um efeito positivo para a economia, ao contrário dos gastos com os juros da dívida pública, que tem multiplicador de 0,71, ou seja, um efeito negativo para a economia (1).

DEFENDER O SUS É LUTAR CONTRA A AUSTERIDADE

O Presidente Jair Bolsonaro, à época da aprovação da EC 95, em 2016, votou favoravelmente à Emenda do Teto dos Gastos, e agora conduz seu governo para aprovar a proposta que desobriga o Estado a investir um valor mínimo em saúde. Além disso, seu governo apresenta uma nova forma de financiamento da APS com base no número de pessoas cadastradas nas Unidades Básicas de Saúde e não mais no número de habitantes de um município, o que pode reduzir ainda mais os repasses de verba para a APS.

Talvez não seja plausível a extinção do SUS assim como ele é hoje, mesmo com a progressiva falta de investimento dos governos, pois no momento de sua inscrição na Constituição de 1988, vinculou-se os interesses das classes dominantes, o que também o tornou em um lócus de acumulação, circulação e expansão do capital (10).

Mas o SUS dispõe de uma rede de instituições de ensino e pesquisa como universidades, institutos e escolas de saúde pública, possui um legado de avanços no sistema de vigilância em saúde, na vigilância sanitária, no sistema de informação, na assistência farmacêutica, nos transplantes, no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), no controle de doenças infectocontagiosas e da qualidade de hemoderivados (6).

Tem destaque também a Atenção Primária em Saúde (APS), que vincula cerca de 60% da população brasileira às equipes de Saúde da Família, além de ser responsável pelo desenvolvimento do maior programa de imunização do mundo, o que confere ao País a autossuficiência na produção de imunobiológicos (5).

Por estes e outros motivos, é essencial defender o SUS e expandir investimentos em um sistema público e universal para fortalecer políticas econômicas, tecnológicas, industriais e sociais que desenvolvam os serviços de saúde, aperfeiçoem os recursos humanos e reduzam as desigualdades em saúde. É preciso um novo compromisso político dos sindicatos, dos trabalhadores e dos movimentos sociais da saúde, que coloque na ordem do dia os interesses da população pobre e que acabe com o projeto do capital para a saúde.

 

  • Jorge Henrique de Sousa é enfermeiro da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, graduado pela Universidade Federal do Piauí e especialista em Saúde Coletiva pela Fiocruz Brasília.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. Santos IS, Vieira FS. Direito à saúde e austeridade fiscal: o caso brasileiro em perspectiva internacional.Ciênc. saúde coletiva[online]. 2018, vol.23, n.7, pp.2303-2314. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232018237.09192018.
  2. Stuckler D, Basu S. The body economic: why austerity kills. New York: Basic Books; 2013.
  3. Aranikolos M, Heino P, Mckee M, Stuckler D, Legi- do-Quigley H. Effects of the global financial crisis on health in high-income OECD countries: a narrative review. Int J Health Serv 2016; 46(2):208-240.
  4. Giovanella L, Stegmuller K. Crise financeira europeia e sistemas de saúde: universalidade ameaçada? Tendên- cias das reformas de saúde na Alemanha, Reino Unido e Espanha. CadSaude Publica 2014; 30(11):2263-2281.
  5. Giovanella L. “Austeridade” no Serviço Nacional de Saúdeinglês: fragmentação e mercantilização – exemplos para não seguir. CadSaude Publica 2016; 32(7):e00092716.
  6. Paim, JS. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos.Ciênc. saúde coletiva[online]. 2018, vol.23, n.6, pp.1723-1728. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.09172018.
  7. Santos, NR. SUS 30 anos: o início, a caminhada e o rumo.Ciênc. saúde coletiva [online]. 2018, vol.23, n.6, pp.1729-1736. Disponível em:  https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.06092018.
  8. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Os Efeitos do Ajuste Fiscal na Saúde. Consensus 2018[acesso em 18 mar 2020]. Disponível em:http://www.conass.org.br/consensus/os-efeitos-ajuste-fiscal-na-saude/.
  9. Rasella D, Basu S, Hone T, Paes-Sousa R, Ocké-Reis CO, Millett C. Child morbidity and mortality associated with alternative policy responses to the economic crisis in Brazil: A nationwide microsimulation study. PLoS Med 2018; 15(5):e1002570.
  10. Castro MCMassuda AAlmeida GMenezes-Filho NAAndrade MVde Souza Noronha KVMRocha RMacinko JHone TTasca RGiovanella LMalik AMWerneck HFachini LAAtun R. Brazil’s unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet.2019 Jul 27;394(10195):345-356.