“Enquanto o caos segue em frente/Com toda a calma do mundo” (Renato Russo, em “Sereníssima”)
Em seus 35 anos de existência, a democracia blindada brasileira – cujas origens remontam à transição pelo alto dirigida pela cúpula civil-militar do regime ditatorial anterior – parece ter exercido um papel profundamente contrarrevolucionário no âmbito “moral e intelectual”, ou, se quisermos, na esfera cultural, entendendo esta no seu sentido mais amplo. Não me refiro aqui apenas à hegemonia do neoliberalismo como visão de mundo, como uma foRma de ser do sujeito social – e aqui a “nova razão do mundo” de Dardot e Laval e a “cultura da crise” de Ana Elizabete Mota são estudos de muita valia -, como também a um outro aspecto, que se relaciona intimamente com essa hegemonia neoliberal, e que remete diretamente ao tema da indústria cultural.
Indubitavelmente, o Brasil é hoje um país mais escolarizado e com muito mais pessoas com acesso às informações, ideias e produtos culturais, daqui e do mundo, do que há 35 anos. Contudo, essa ampliação quantitativa da escolaridade e do acesso à cultura parece ser quase que inversamente proporcional à redução qualitativa da formação cultural e intelectual das gerações nascidas sob o regime de 1988, sobretudo se nos restringirmos, na comparação, às esferas da pequena-burguesia urbana, de onde normalmente são recrutados os membros da chamada intelligentzia nacional, ou, como preferem alguns, de onde advém os ditos “formadores de opinião”. O tema, claro, necessitaria ser pesquisado, e imagino que os métodos de aferição para uma hipótese que envolve um objeto complexo como esse seriam bastante complicados e trabalhosos, além de questionáveis. A empresa investigativa urge ser feita, e talvez estudiosos da indústria cultural e/ou da educação, como Romulo Mattos, Pedro Rocha, Kátia Hale, Guilherme Leite, Adriana Facina, Regis Arguelles, entre tantos outros, possam dizer um pouco sobre suas possibilidades e caminhos.
De todo modo, o que digo aqui, e o faço de maneira quase intuitiva, é que, se, por um lado, temos muito mais jovens escolarizados e com acesso tecnológico à cultura e informação do que há 35 anos atrás – o que, por óbvio, é algo positivo -, por outro, nos deparamos com massas de jovens dos estratos médios que beiram o analfabetismo funcional, que não conhecem e nem se interessam em conhecer os clássicos da literatura, da música e do cinema, e para os quais o século XIX e o X são temporalmente equidistantes em relação ao hoje, pois estão tão longínquos deste como o ontem – o que já foi notado por Harvey, Jameson e outros estudiosos da “cultura pós-moderna”. Assim, temos graduandos que não leem quase nada, e que muitas vezes não compreendem nada deste quase nada, e pós-graduandos que consideram ler um artigo para a aula algo tão hercúleo quanto marcar o Bruno Henrique. Boa parte da militância política de esquerda, por sua vez, prefere os tuítes dos seus parlamentares às obras básicas do marxismo, e aqui o número de caracteres não é algo de menor importância na análise. Mesmo para a dita “vanguarda”, os videos de youtube são mais acessados do que os escritos de Marx, Lênin, Rosa, Florestan, Marini etc, e, nesse sentido, talvez o ex-guerrilheiro e transformista Alfredo Sirkis tenha razão quando disse, faz tempo, que a sua geração – e aqui ele se referia aos setores de uma juventude pequeno-burguesa de perspectiva crítica – foi a “última geração literária”. O ex- carbonário pode ter exagerado, mas talvez não tenha se equivocado por completo.
Socialmente abaixo dos setores médios, culturalmente privilegiados, por assim dizer, temos, e não poderia ser diferente, massas e massas de jovens populares que só “leem” memes, só escutam áudios de WhatsApp e eternos sucessos de duas semanas, e que só se comunicam por stickers. Qualquer coisa, qualquer texto, qualquer nota que exija o mínimo de atenção e esforço cognitivo são dispensados como um celular obsoleto. A miséria econômica e a miséria cultural talvez estejam hoje em compasso, em harmonia, em sintonia, numa triste e melancólica sinfonia de um Brasil que sofre, mas que não parece ter condições intelectuais de entender o porquê.
Sim, é esse o terreno que lutamos, e se nos lamentar de nada vale, a constatação dos fatos não deixa de ter, talvez, alguma importância. Afinal, talvez não seja mera coincidência o fato de termos, justo hoje, uma esquerda em estado crítico, indigente teoricamente e débil culturalmente, que durante dez anos confundiu aumento do consumo popular com welfare e quiçá socialismo, e que sabe fazer contas pra eleger meia dúzia de deputados mas que conta nos dedos os seus quadros capazes de pensar a construção de uma contra-hegemonia à escala nacional, para não dizer internacional. Afinal, talvez não seja também coincidência o fato de que foi com as gerações nascidas e crescidas sob a democracia blindada, gerações, portanto, mais escolarizadas e com maior acesso tecnológico à cultura que suas predecessoras, que os nossos preconceitos mais ancestrais, a nossa ignorância mais assustadora e a nossa estupidez mais atroz conseguiram ser sintetizadas no neofascismo bolsonarista, que, não podemos negar, possui uma forte capilaridade entre as massas, incluindo a juventude advinda dos setores médios. Seus ideólogos são talvez os mais ignorantes que a direita brasileira produziu, mas talvez, justamente por isso, essa direita nunca foi tão forte. A indústria cultural, sob a nossa democracia, não brincou em serviço. Cabe a nós lutar nesse terreno, lutar nessa lama, mas, quando pudermos, colocar um ou outro calçamento, sob pena de nos acostumarmos a ela e, por conseguinte, nela chafurdarmos, até o caos. Da lama ao caos.
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