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BRASIL

As faces do neofascismo do Bolsonazi (Parte 2)

Paulo César de Carvalho

Então encontraste

qualquer coisa de bom

nestas sangrentas mãos?

O ladrão conseguiu corromper

os seus juízes

graças aos seus troféus?

(BRECHT, Bertold. Antologia Poética.

Rio de Janeiro: Elo Editora, 1982, p. 127)

 

2. Retrato do inimigo

Não é novidade que a farsesca operação Lava Jato, produzida na câmara escura ideológica (nos termos de Marx e Engels) do bonapartismo togado, refletiu a mesma ordem estrutural – bem guardadas as devidas desproporções conjunturais – do discurso prototípico dos paladinos golpistas da extrema direita (com todos os seus “mil tons” verde-amarelos “de cinzas” fúnebres). Sob a aparência de normalidade democrática, de respeito aos ritos institucionais, o teatro jurídico foi armado para dar ares de legitimidade – aos olhos ingênuos da opinião pública – à condenação (sem provas) e à prisão (arbitrária) de Lula, deixando o caminho livre para o milico neofascista. De mentira em mentira, Bolsoasno cavalgaria a rampa do Planalto com a bandeira ufanista de defesa da pátria contra o “perigo vermelho”: a sua pregação messiânica antipetista, entre tantos disparates, atemorizava os fiéis com a “apocalíptica” possibilidade de instauração de uma “ditadura venezuelana” no Brasil.

Nas palavras do professor Rodrigo Patto, “o aspecto mais agudo desse ataque é associar o PT aos ‘narcotraficantes das FARC [Colômbia] e aos bolivarianos liderados por Hugo Chávez” (MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “Anticomunismo, antipetismo e o giro direitista no Brasil”. In: Pensar as direitas na América Latina. Bohoslavski, Ernesto et al. (Org.). São Paulo: Alameda, 2019, p. 88). Como o general Olympio Mourão de Vargas e o brigadeiro João Paulo Burnier de Médici, enfim, o ex-capitão terrorista também sofre da síndrome persecutória do espectro do comunismo, assombrado pela alucinação do grito vermelho de “independência ou morte” da revolução socialista nas margens “flácidas” verde-amarelas.

Não é novidade, aliás, que a cômica substituição de “plácidas” por “flácidas” na letra do Hino Nacional é um dos inúmeros sintomas de que a tragédia histórica reverbera como farsa grotesca no desgoverno neofascista do ignorante ex-milico (diga-se de passagem, o erro do rato nacionalista da caserna é muito mais grave do que a gafe da cantora Vanusa). Neste grave quadro delirante de profundas distorções da realidade, foram inacreditavelmente perseguidos até os médicos cubanos do programa social Mais Médicos, sob a absurda acusação de que seriam “agentes de Fidel” camuflados com jalecos brancos, infiltrando-se sorrateiramente no sertão nordestino para organizar focos guerrilheiros entre cactos, ossadas de bois e carcarás.

Nos obscuros tempos do brigadeiro Burnier, de fato existiam várias organizações clandestinas de esquerda (como ALN, VPR e MR-8) que faziam treinamento em Cuba, confiando poder lutar em condições menos desfavoráveis contra o forte aparato repressivo da ditadura militar. Em 1968, é bom jamais esquecer, a famigerada Doutrina de Segurança Nacional era a base ideológica do regime de exceção, dando fundamento teórico para a caçada e o extermínio dos guerrilheiros: as cabeças pensantes do Exército justificavam a “licença para matar” comunistas, obviamente, valendo-se do pressuposto estrutural de que a defesa interna é um dos papéis constitutivos das Forças Armadas (cuja razão de ser é a atribuição primeira da defesa externa).

Não é novidade que a Escola Superior de Guerra alicerçou o edifício ideológico do aparato repressivo da ditadura a partir da tese do inimigo interno, da “ameaça vermelha” que estaria colocando em risco a soberania nacional. Duas décadas antes do plano terrorista do imprudente ex-capitão ser descoberto, os teóricos da alta cúpula do regime autoritário davam salvo-conduto para o aparelho repressivo do Estado eliminar os supostos terroristas infiltrados que estariam a serviço da “ditadura cubana”. Como arma retórica para o combate ideológico, nunca é demais repetir o óbvio álibi dos dissimulados assassinos fardados, os capacetes com cérebro da ESG recorriam a este sofismático – e descaradamente maquiavélico – argumento de autoridade institucional: “O direito de legítima defesa se exerce também contra os ataques internos e interno-externos, oriundos dos nacionais associados às forças da subversão internacional e com elas vinculados pelo apoio político e logístico a bandos armados ou a guerras chamadas revolucionárias, mas na realidade formas disfarçadas de submissão a soberanias alienígenas”. (FON, Antonio Carlos, Tortura – A História da Repressão Política no Brasil. São Paulo: Global, 1979, p. 31).

Não é novidade que não existe mais no país nenhuma organização guerrilheira, como havia tantas sob a mira terrorista do brigadeiro João Paulo Burnier. A Ação Libertadora Nacional (ALN) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), por exemplo, foram desmontadas ainda na década de 70: Mariguella, o cabeça da primeira, foi assassinado em 1969; Lamarca, dirigente da segunda, foi abatido em 1971. Nenhum dos herdeiros da dupla gauche de Carlos engatilhou sucessores. Entregando os fuzis, os sobreviventes da infernal temporada de caça aos comunistas – que atravessaram os intermináveis vinte anos de chumbo grosso e se tornaram figuras públicas – não oferecem mais perigo aos interesses da classe dominante.

Como síntese metonímica dessa afirmação, só para ilustrar rapidamente, vale lembrar que a primeira mulher da história brasileira a chefiar o Executivo – governando duas vezes em colaboração com partidos burgueses – não tem hoje mais do que o nome em comum com aquela jovem guerrilheira da COLINA (Comando de Libertação Nacional) e da VAR-PALMARES (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares): Dilma Rousseff. Com a palavra “governabilidade” na cabeça e sem arma na mão, enfim, a “presidenta” proscrita acabou virando – por ironia do (previsível) destino da colaboração de classes – cúmplice dos imorais agiotas do sistema financeiro e refém indefesa de seus capangas fantasiados de juízes, desembargadores, deputados e senadores, na inescrupulosa “terra em transe do sol” dourado do “diabo” capitalista (ah, Glauber Rocha!).

Não é novidade que a síndrome persecutória da horda de hunos anticomunistas é sintoma agudo da epidemia de “febre vermelha” disseminada aos quatro cantos pelas redes ideológicas bonapartistas e neofascistas. Os anacrônicos “templários” ufanistas da “Idade Mérdia” Bolsonazi, berrando histéricos o mantra “Vai pra Cuba” (a intrépida tropa de energúmenos hipnotizados cavalga veloz “de volta para o passado”), ignoram que a Ilha já não é mais a mesma há muito tempo. Aliás, adernando sempre à direita, cada vez mais próxima de se juntar ao “continente” imperialista, a Cuba de Che Guevara e Fidel Castro está tão irreconhecível que até parece mesmo já ter mudado de lugar no mapa da luta de classes. O historiador Rodrigo Patto chama a atenção para o fetiche dos propagandistas da direita com o “inimigo externo” cubano (substituindo, junto com os venezuelanos, os antigos soviéticos como emblema da luta anticomunista), associado diretamente ao “inimigo interno” petista: “A propósito da URSS, os discursos antipetistas recorrem bastante à estratégia de conectar os estados inspirados na matriz soviética (em especial Cuba) aos governos liderados pelo PT, como se houvesse forte linha de continuidade”. (MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “Anticomunismo, antipetismo e o giro direitista no Brasil”. In: Pensar as direitas na América Latina. Bohoslavski, Ernesto et al. (Org.). São Paulo: Alameda, 2019, p. 87).

Não é novidade que – abro um breve parêntese só para não perder a deixa – diante de tantos disparates distópicos, não pareceria absurdo maior imaginar que, nestes tempos obscuros de “pós-verdade”, se fosse elaborado um “clone” do Plano Cohen, o engodo anticomunista seria parido no sinistro laboratório neofascista de reprodução em série de fake news, tendo fatalmente as “assassinaturas” de todas as facções de facínoras da “desordem e regresso” do desgoverno reacionário do ex-capitão terrorista. Num sórdido concurso de agentes, enfim, a corja verde-amarela seria a responsável pelos ataques ideológicos que levariam à suspensão das garantias individuais e das liberdades democráticas. Não seria difícil adivinhar a autoria das ações da inescrupulosa quadrilha contra o Estado de Direito: estariam lá as marcas imorais do xerife Moro, as digitais indisfarçadas dos justiceiros bonapartistas de capa preta, as mãos sujas dos heróis assassinos das “Farsas Armadas” e, evidentemente, as indefectíveis “arminhas” dos oportunistas bandoleiros “sem nenhum caráter” da grande Familícia 171 (não peço perdão pelos trocadilhos rápidos no gatilho).

Não é novidade que o Brasil certamente não vive em um quadro de “normalidade democrática” (a bem da verdade, nunca viveu de fato) desde as manifestações reacionárias de 2015, que culminariam tragicamente no golpe parlamentar de 2016. Em condições normais de temperatura e pressão das instituições tradicionais do Estado burguês, seria inaceitável, por exemplo, que um parlamentar confessasse publicamente que fuzilaria um ex-presidente da República. Recordemos os fatos: interrogado em 2015 por Jô Soares se estava realmente falando sério quando declarou que fuzilaria Fernando Henrique Cardoso, o ex-capitão terrorista sorriu sarcástico e desafiador, respondendo afirmativamente. O entrevistador protestou indignado: “Mas isto é uma barbaridade”.

Diante das câmeras perplexas, com a habitual arrogância, Bolsonazi replicou agressivo: “Barbaridade é privatizar a Vale do Rio Doce, por exemplo, como ele fez. Barbaridade é privatizar as telecomunicações, é entregar as nossas reservas petrolíferas para o capital externo” (quatro anos depois, essa “barbaridade” se intensificaria no governo neofascista, nos leilões do patrimônio público promovidos pelo inescrupuloso banqueiro Paulo Guedes). A gravidade da declaração de Jair no Programa do Jô, enfim, só não foi maior – é fundamental ressaltar – do que o silêncio cúmplice dos poderes Legislativo e Judiciário. Aliás, só para refrescar a memória das autoridades que se fazem de desentendidas, o monstro autoritário vem crescendo de lá para cá sempre com a conivência de deputados, senadores, procuradores, juízes e desembargadores: em 24 de maio de 1999, em entrevista à TV Bandeirantes, além da ameaça criminosa ao então presidente FHC (o “príncipe” da soberba, desdenhando o adversário, parece hoje ter consciência de que deveria ter levado a sério a séria agressão), o violento parlamentar quadrúpede defendeu o fechamento do Congresso Nacional.

Não é novidade que há mesmo mais traços de semelhança entre o ex-capitão terrorista Bolsonazi e o brigadeiro terrorista Burnier – não custa repetir – do que supõe a vã “discurseira de arrastão” (como diria Mário de Andrade) dos baluartes do regime pseudodemocrático. Não é demais lembrar que o bandido da Aeronáutica planejava executar uma série de explosões como “pretexto para dar início à caça às bruxas”, conforme disse o jornalista Zuenir Ventura (na clássica obra sobre o turbulento ano de 1968, em que a intensificação do combate à ditadura teve como contraponto o endurecimento do regime através da decretação do famigerado AI-5, no final do ano que não terminou). Depois da absurda avaliação do brigadeiro de que a morte de 100 mil pessoas (na explosão do gasômetro na avenida Brasil, no Rio de Janeiro, na hora do rush) “vale a pena para livrar o Brasil dos comunistas”, Zuenir radiografou a mente diabólica do predecessor terrorista do ex-milico de alma – e arma – miliciana.

Qualquer semelhança entre o terrorista que defendeu o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso e o criminoso da Aeronáutica que planejou o extermínio de opositores de diversos matizes políticos, enfim, não é mera coincidência (desgraçadamente, isto não é uma novela): “De repente, como num pesadelo, o horror ia ganhando forma. Aquilo era um plano, não havia mais dúvida, e previa várias missões, uma das quais seria o sequestro de 40 personalidades, a serem lançadas ao mar. E cinco já estavam escaladas: Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek, D. Hélder Câmara e o general Olympio Mourão Filho. As outras seriam anunciadas verbalmente, de cinco em cinco”. (VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 215-216).

Não é novidade que a “escalação” das principais lideranças burguesas para o voo da morte em 1968 servem de alerta para as frações democráticas que apoiaram o candidato nostálgico da ditadura militar nas eleições de 2018. Para dimensionar os riscos que correm os que hoje se opõem ao monstro neofascista que alimentaram, e justificar as analogias, vale fazer uma breve recapitulação histórica. Em primeiro lugar, recordando que Carlos Lacerda, o ardiloso “corvo” da conservadora UDN (alcunha dada pelo jornal Última Hora, de Samuel Wainer), tentou articular um golpe para impedir a posse do presidente Juscelino Kubistchek e do vice João Goulart, eleitos em 1955 na dobradinha PSD-PTB, apoiada – atenção – pelo PCB. Em dezembro de 1959, o então tenente-coronel Burnier, por sua vez, também tentou dar um golpe para derrubar JK, que entrou para os anais sombrios da tradição antidemocrática brasileira como Revolta de Aragarças: o plano dos conspiradores liderados pelo futuro brigadeiro terrorista previa o bombardeio do Palácio das Laranjeiras (RJ), sede do governo federal. Um ano depois da tentativa fracassada, seriam eleitos Jânio Quadros, pelo PTN, e novamente Jango, pelo PTB: com a renúncia, em 1961, do excêntrico populista que havia condecorado Che Guevara, o vice – que estava viajando pela China comunista – assumiria a Presidência da República com forte resistência dos três ministros militares e, obviamente, das forças conservadoras da UDN de Lacerda. O golpe militar só não se consumou, vale registrar, pela ameaça de guerra civil sinalizada pela mobilização de forças – populares e do aparato repressivo do Estado – por Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul.

Não é novidade que o discurso anticomunista – inaugurado nos anos 30, em pleno bonapartismo da Era Vargas – foi retomado e revigorado, enfim, como reação à posse de Jango. O cientista político Emir Sader faz uma síntese esclarecedora da tensa correlação das forças políticas naquele grave quadro de crise que antecedeu o fatídico Golpe de 64: “O setor nacionalista de Jango e de Brizola ganhava assim importância dentro da esquerda. Chegou ao poder pregando reformas de base que democratizariam o capitalismo, especialmente a reforma agrária e o controle das remessas de lucros das empresas internacionais ao exterior. O governo de Jango representou um período de recrudescimento da luta de classes, com os interesses das classes populares e das elites dominantes se polarizando acentuadamente (…). À esquerda se lutava pela reforma agrária e pela reforma urbana, pelo controle da remessa de lucros para o exterior, enquanto à direita se pregava que a democracia e a liberdade estavam em perigo, pela ação de um Estado controlado pelos nacionalistas, mero disfarce dos comunistas de Cuba e da União Soviética” (SADER, Emir. O anjo torto: esquerda (e direita) no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 98-99).

Não é novidade que – a bem do rigor – o que estava mesmo em disputa superestrutural eram os interesses conflitantes das duas frações centrais da burguesia: a nacionalista, apoiada pela esquerda reformista do PCB (a análise etapista, a tática de colaboração de classes da frente popular e a estratégia eleitoral, refreando a mobilização das massas oprimidas, conduziriam os trabalhadores a mais uma derrota – desastre anunciado pelos ziguezagues oportunistas da direção stalinista, guiada pela traidora bússola teórica, “desgovernada” e fatal, do terceiro período); e a imperialista, apoiada pelos liberais conservadores da UDN lacerdista e pela alta cúpula das Forças Armadas, ferrenhos opositores do intervencionismo estatal e do populismo trabalhista (para eles, a crise econômica exigia a retirada, não a concessão de direitos sociais).

Enfim, para voltar ao ponto que interessa especificamente ao recorte temático deste artigo, justificando os parágrafos digressivos, recorremos às reflexões complementares – e conclusões convergentes – de Emir Sader e Rodrigo Patto. Na síntese do cientista político, eis a questão: “A grande burguesia brasileira participou passivamente do golpe (…) terminando com ad ilusões dos supostos interesses divergentes em relação ao imperialismo (…). Consolidou-se uma firme unidade interna das classes dominantes que, naquele momento, sob pretexto da defesa da liberdade e da democracia, conseguiram levar atrás de si amplos setores da classe média. Com os trabalhadores isolados e com uma concepção equivocada a respeito de seus possíveis aliados, a esquerda ficou na defensiva e foi derrotada” (SADER, Emir. O anjo torto: esquerda (e direita) no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 100).

Não é novidade que há fortes traços de semelhança – bem guardadas as devidas proporções históricas – entre os erros de ontem e os equívocos de hoje: relendo as linhas de Sader, pode-se rever a derrota trágica sendo reencenada como farsa. Em outras palavras, atando as pontas da analogia, é como se os desvios do PT – num previsível e terrível “efeito Orloff” – duplicassem a ressaca do PCB (“eu sou você amanhã”). Novamente, a crise econômica combinada com a estratégia de colaboração de classes amplificou a dor de cabeça política da esquerda – não só a reformista –, fruto dos devastadores venenos do anticomunismo inoculado na consciência vulnerável da classe média. Complementando o balanço do cientista político, enfim, o historiador vai direto ao ponto nevrálgico da enxaqueca ideológica provocada pela ação conjunta dos antigos “aliados” com a extrema direita conspiradora: “Outras questões influenciaram o golpe de 1964, que se manifestou na inflação descontrolada e na redução das taxas de crescimento, e também as denúncias de corrupção contra o governo [Jango].

Entretanto, a crença na ameaça comunista foi o tema mais importante na mobilização golpista (…). Os argumentos anticomunistas foram especialmente significativos em 1964 por unirem grupos que tinham divergências em outras questões, por exemplo, liberais e fascistas. Ademais, eles ofereciam a oportunidade de expressar a crise em linguagem compreensível para amplos setores sociais que havia tempos estavam acostumados a ouvir discursos sobre o perigo vermelho. Além de superar as divergências dos golpistas, o anticomunismo prestou outro serviço ao movimento de 1964: contribuiu para a legitimação do novo regime, já que os seus líderes usaram o perigo vermelho para convencer a opinião pública da justeza das ações autoritárias” (MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “Anticomunismo, antipetismo e o giro direitista no Brasil”. In: Pensar as direitas na América Latina. Bohoslavski, Ernesto et al. (Org.). São Paulo: Alameda, 2019, p. 82-83).

Não é novidade, pois, revendo essas evidências históricas, que não só as organizações reformistas de esquerda (como o PT e o PSOL), mas também as democrático-burguesas (como o PDT e o PSDB), tão absortas nas eleições de 2022, parecem realmente não ter a real dimensão (o pleonasmo é enfático) dos grandes perigos que estão sujeitas todas as vozes discordantes neste quadro regressivo do desgoverno reacionário de Bolsonazi: de olhos cobiçosos na sucessão do facínora neofascista, fecham displicentemente os olhos (o direito e o esquerdo – o trocadilho redundante só faz rever, pela milésima vez, o que é tão evidente mas, por paradoxal que seja, passa despercebido) para a possibilidade concreta de fechamento do regime – e, consequentemente, das urnas. P

ara dar um exemplo sintomático de erros de diagnóstico das forças democráticas tradicionais, enfim, lembramos a entrevista que Fernando Henrique Cardoso deu à Veja (veja só), em 18 de outubro de 2019. Vinte depois de ser fuzilado verbalmente pelo ex-capitão terrorista, aquele mesmo que defendeu seu fuzilamento literal, como se ainda vivesse na onipotência assassina dos anos de chumbo, a explicação de FHC para o fato de não ter citado o quadrúpede nos quatro volumes dos seus Diários da Presidência representa metonimicamente, de forma bem ilustrativa, o perigoso equívoco de avaliação do poder do inimigo: “Na minha época de Presidência, Bolsonaro não tinha importância. Tinha presença apenas na política corporativa, agitando os quartéis. Os militares o viam com preocupação, pois era um capitão rebelde, mas nunca imaginavam que chegaria à Presidência”.

Pelo visto (o trocadilho não abre os olhos dos cegos), não apenas a elite fardada não acreditava que o ex-milico explosivo “estourasse” de verdade, sendo ouvido por tantos e chegando tão longe: o tão arguto sociólogo – crendo ter cem olhos de Argos – também não lhe deu ouvidos, não vendo o tamanho do buraco aberto pela “arminha” do soldadinho de chumbo grosso (os trocadilhos no gatilho acertam o “centro” – à direita e à esquerda).

Não é novidade que o “Príncipe” dos sociólogos (em terra de cego, quem tem um olho nem sempre é rei) não via – vinte anos atrás – e não poderia mesmo ver, a esta altura da vida, nada além da via eleitoral como “arma” para vencer o facínora do Planalto, como se pode ler na sua resposta à penúltima pergunta da Veja: O presidente chegará forte a 2022? Em vez de derrubar o aprendiz de tirano, FHC espera que ele caia sozinho, tropeçando na própria estupidez: “Bolsonaro procura casca de banana para escorregar. Ele se mete em tudo, cria caso, cria confusão. Então, pode escorregar. Não o estou menosprezando, pois é preciso levar em consideração que ele fala bem a um grupo de eleitores”.

Não custa refrescar a memória dos oportunistas que apoiaram o golpe parlamentar de 2016 e deixaram livre o caminho para a cavalgadura do PSL chegar à Presidência da República: Carlos Lacerda ajudou a derrubar Getúlio em 1954, tentou derrubar Juscelino em 1955, ajudou a derrubar Jango em 1964, defendeu entusiasticamente o regime militar e, por fim, terminou provando o próprio veneno, cassado pelos despóticos “fardas verdes”. Pouco antes, quando já era tarde demais, ao perceber que o regime de exceção era mais perigoso do que jamais supôs, o “Corvo” foi atrás dos antigos desafetos para organizar ao lado das duas maiores lideranças políticas do país a resistência democrática, como relatou Zuenir Ventura: “A Frente Ampla fora organizada dois anos antes por Carlos Lacerda, ao constatar que, além da área parlamentar, não havia uma oposição organizada capaz de se contrapor ao governo militar. Sua formação foi cheia de obstáculos, pois exigia conciliar o que parecia inconciliável. Lacerda teve que ir a Lisboa fazer as pazes com Juscelino Kubitschek, um inimigo de 15 anos, e depois ir a Montevidéu fazer o mesmo com João Goulart, desafeto de 20 anos” (VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 128).

Não é novidade que a esquerda reformista, que aposta na tática do desgaste progressivo do desgoverno, tem um discurso semelhante ao do tucano bom de bico, repetindo o histórico estrabismo político de acreditar que é nas urnas, e não nas ruas, que se pode efetivamente derrotar as forças de extrema direita no poder. Chamando novamente a atenção dos “vermelhos” (nos vários matizes da paleta socialista) para o “óbvio ululante”, vale citar – nestas linhas finais – o início do ensaio do pesquisador Rodrigo Motta, retomando a questão fundamental problematizada neste artigo: “O anticomunismo voltou a ocupar lugar central no debate político brasileiro. Será necessário demonstrar essa afirmação? Depois dos episódios no sul do Brasil no início de 2018, quando a caravana de Lula foi recebida com tiros e gritos de ‘lincha que é comunista’?”. (MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “Anticomunismo, antipetismo e o giro direitista no Brasil”. In: Pensar as direitas na América Latina. Bohoslavski, Ernesto et al. (Org.). São Paulo: Alameda, 2019, p. 75). De golpe em golpe, de bomba em bomba, enfim, fica o alerta de Leon Trotsky (trecho destacado na epígrafe do primeiro artigo desta nossa série no EOL): “Não há em política crime maior do que contar com a tolice de um inimigo forte”.