Por: Aderson Bussinger, do Rio de Janeiro, RJ
A história nos oferece diversos exemplos de protagonismos sociais de setores da classe média, como, por exemplo, os estudantes de 1968, que corajosamente assumiram a frente da luta contra a ditadura, embora sua resistência não fosse o bastante suficiente para enfrentar os soldados armados que marchavam contra suas aspirações democráticas. Faltou-lhes naquele momento a classe operária, os setores populares mais oprimidos. Já em 1979, os operários do ABC protagonizaram greves e lutas que foram capazes de, mais adiante, empolgar um grande movimento de massas, que pôs fim ao regime implantado em 1964. Dois exemplos, portanto, de protagonismos diferenciados, embora no mesmo sentido e perspectiva democrática.
E ainda voltando mais atrás na história brasileira, encontramos os jovens tenentes oriundos também da classe média da década de 20, que entre 1925 e 1927 percorreram mais de 25 mil quilômetros do interior brasileiro, sob o comando de bravos jovens oficiais do Exército. Essa mobilização foi um dos mais espetaculares e rebeldes movimentos militares já empreendidos em nossa história, sob bandeiras democráticas, como o direito ao voto secreto e denunciando a concentração do poder político nas mãos da elite agrária, a falta de democracia, a exploração dos pobres pelos coronéis (líderes políticos de então), enfim, chamando a população a se rebelar contra tais elites, cujo representante máximo no poder era o então presidente Arthur Bernardes.
Seu principal lema era acabar com a miséria e a injustiça no Brasil e seu protagonismo, em especial, trouxe alento e esperança a vastas camadas populares, sobretudo os mais oprimidos do campo.
Hoje, nestes idos de 2016, encontramos outro setor de classe média, oriundo não das fileiras militares, embora alguns destes sejam muito autoritários, mas da magistratura e ministério público que, capitaneados por um juiz Federal de Curitiba e um núcleo de ativos Procuradores da República lotados no eixo São Paulo-Curitiba-Brasilia, empreendem uma cruzada no Brasil não exatamente pelas causas e motivos da pobreza e da injustiça social, ainda reinantes neste século XXI, mas sim pelo combate, em tons midiáticos, “Lava Jato”, contra uma de suas consequências, a corrupção, que, como é sabido, é filha inconteste da concentração de riqueza, combustível principal a alimentar o empresário-empreiteiro-banqueiro-corruptor.
Este setor, que grande protagonismo vem ostentando, estimulando inclusive mobilizações e anteprojetos de lei, em favor de suas bandeiras anticorrupção, ao contrário dos jovens tenentes que bradavam fundamentalmente contra a injustiça social, é apoiado e saudado, ironicamente, pela mesma elite que de todas as benesses e privilégios se aproveita, não porque esta tenha, subitamente, arrependido-se de integrar a corrupção sistêmica no país, mas simplesmente porque, com isto, conseguem desviar facilmente as atenções das verdadeiras causas das injustiças sociais e econômicas, para o terreno da corrupção (consequência). Isso se dá através de discursos morais, falso-moralismos e flácidas declarações morais, que, inclusive, acabam rendendo votos para os velhos caciques da politica, candidatos anti-PT, anti-MST, anti-corruptos de todas as cores, e assim por diante. Não que o PT não tenha se envolvido na corrupção, muito pelo contrário, mas bradar contra o PT é regozijo desta elite, o que faz lembrar o velho anticomunismo clerical, que de forma competente exorcizava tudo que era vermelho.
Assim, estes jovens e também outros de meia-idade, paladinos da moralidade, da legalidade e do “Estado de Direito”, uma parcela expressiva de procuradores e juízes, vão ocupando lugar na mídia, incensados pelos grandes meios de comunicação, seus eloquentes âncoras, porque habilidosamente deslocam a discussão de onde (e para longe) os tenentes, na longínqua década de 20 heroicamente começaram: o questionamento do poder das elites e as injustiças sociais. Assim, através dos mais variados mecanismos jurídico-processuais, vão prendendo alguns empresários, como se isto por si só resolvesse o problema, até porque o sistema vai substituindo, um a um, os executivos detidos na ininterrupta cadeia de comando dos impérios financeiros envolvidos. Vão passando por cima de garantias processuais, administrando o mecanismo pouco ortodoxo da delação premiada em favor do que querem ver delatado e valendo-se de todos os novíssimos traidores “Silvérios dos Reis” que todos os dias se oferecem a delatar os amigos de ontem. Este é o espetáculo judicial brasileiro: a delação e traição.
Assim, o governo golpista apoiado pelas mesmas elites que festeja a “Lava-Jato” e seus juízes e procuradores, vai tentando lavar seus negócios, sob a proteção dos novos ocupantes do Planalto, com ênfase para a aprovação de uma pauta de privatizações em série e redução de direitos sociais. E ainda congelam o orçamento por 20 anos, como que aplicando uma pena orçamentária aos trabalhadores, pobres, estudantes carentes que realmente precisam dos gastos públicos em saúde e educação. E na sequencia de retrocessos, subtração de direitos, interpretações canhestras da constituição, vem o STF cerceando o direito de greve; reduzindo direitos previdenciários (desaposentação), e ainda alterando a sistemática de manutenção de vigência de cláusulas coletivas, a ultratividade destas. Um quadro bastante preocupante, que não surpreenderá se, em breve, começar a prender também sindicalistas, líderes sem-terra, trancafiando os que lutam, apoiados nas mesmas restrições aos direitos fundamentais que estão praticando em casos de empreiteiros.
Mas, voltando aos procuradores e juízes da denominada Lava Jato, temos um protagonismo social retrógrado, embora existam honrosas exceções que resistem. Uma atuação que, infelizmente, deveria, isto sim, sem deixar também de combater a corrupção, voltar-se para os grandes problemas estruturais do Brasil, promover a prestação jurisdicional sob a motivação dos direitos sociais e humanos, das Convenções Internacionais mais progressistas, empreender medidas jurídicas, via Ministério Público, que viessem a questionar o estelionato e a fraude da dívida externa, os privilégios de setores do próprio judiciário, a falta de proteção ao meio ambiente brasileiro, as ilegalidades do mercado financeiro, a incompleta demarcação das terras indígenas, a terceirização no mercado de trabalho e suas nefastas consequências para o trabalhador, a vergonhosa situação dos presídios superlotados, senzalas modernas, a defesa dos direitos humanos.
Somente aí já teríamos uma agenda positiva, progressista, que se colocaria como contraponto ao projeto reacionário das elites que há mais de 500 anos fazem deste país seu instrumento de privilégio. Evidente que, como acima falei, temos, repito, felizmente exceções neste âmbito de atuação, mas definitivamente o perfil das instituições judiciárias brasileiras não está identificado com a luta por justiça social e, no contexto de golpe institucional que vivemos, age como ator político, de toga, em favor de uma agenda neoliberal das elites e valendo-se de toda a desmoralização dos governos petistas.
Aderson Bussinger Carvalho é integrante do MAIS, advogado e conselheiro da OAB-RJ
Foto: José Cruz/ Agência Brasil
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