“Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas a espada” (Mateus 10:34)
Não estamos sob um regime fascista no Brasil, convém sempre lembrar. Contudo, nos parece inegável o crescimento das tendências bonapartistas em nossa democracia blindada, cujos blindados eliminam quase que diariamente vidas negras e empobrecidas. Em detrimento dos habituais métodos parlamentares de condução política, assim como das tradicionais representações políticas do grande capital, o protagonismo de ousados bonapartes de toga e de farda salta aos olhos, e sua reacionária base social pequeno-burguesa não é outra senão a que levou o neofascismo ao governo nas últimas eleições.
Bolsonaro e sua plêiade de cavaleiros lumpens sabem que chegaram ao poder pelo voto, mas fazem votos e atos para que possam se livrar o mais rápido possível dos inconvenientes do regime político eleitoral. Seu projeto é salvar a sociedade burguesa para a burguesia, mas do seu jeito cruento, tosco e plebeu, o que inclui não só realizar o extermínio de direitos e quaisquer garantias sociais, mas também o extermínio da razão, da ciência, da cultura, da arte, do humor autêntico, dos sindicatos independentes, dos movimentos sociais, dos partidos de esquerda, da oposição em geral, e, claro, de muitas vidas de pobres, negros e trabalhadores. A lumpemburguesia neofascista no governo sabe que o único modo de não vir a ser facilmente descartada pelo grande capital é, para além de efetivar o projeto econômico ultraneoliberal deste, atender aos abjetos e já nada secretos desejos dos estratos médios reacionários, cujo ódio aos de baixo, a inveja aos intelectuais, o repúdio à universidade, a aversão à arte, o horror às letras, o temor ao humor crítico e a idolatria ao presidente bufão são tão grandes quanto foi a confiança da mulher de Maomé em seu marido.
Sem dúvida, é do seio dessa “aristocracia da ignorância”, para resgatarmos a atualíssima expressão de Balzac, que brotam grupos dispostos a ações como a que atingiu a produtora do Porta dos Fundos na véspera de Natal. Se a ideologia do fascismo histórico era composta, como escreveu Trotsky, “de todas as exalações pútridas da sociedade burguesa em decomposição”, as ideias delirantes e esotéricas que alimentam o neofascismo brasileiro do século XXI não parecem ficar muito atrás. A afirmação, exposta pelo autodenominado “Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Família Integralista Brasileira”, acerca de uma aliança entre os grandes burgueses sem moral e o “marxismo cultural” depravado contra a família brasileira se assemelha bastante às teorias alardeadas pelas alas mais plebeias, “radicais” e “anticapitalistas” do nazismo alemão, em particular pelo grupo dos strasseristas e pelas milícias paramilitares Sturmabteilung (SA), lideradas pelo histérico e paranóico Ernst Röhm – alas devidamente eliminadas à faca em 1934 pelas Schutzstaffel (SS), depois que a aliança de Hitler com o grande capital alemão se consolidou.
Nesse sentido, o mais preocupante não é o acobertamento e a proteção aos autores do atentado da última terça-feira por parte dos membros do governo neofascista e de seus porta-vozes. É sabido que, historicamente, o fascismo só pode se desenvolver com a cumplicidade e anuência de muitos membros do aparato estatal, com destaque para juízes, procuradores, policiais, ministros e mesmo presidentes. O que realmente deve fazer com que a esquerda socialista e todos os democratas definitivamente liguem o sinal de alerta são o silêncio e a omissão quanto ao novo terrorismo brasileiro por parte do grande capital e seus porta-vozes tradicionais. Se as grandes corporações midiáticas do capital, como a Globo, costumam limitar suas críticas ao governo neofascista a alguns programas de humor (muito bons, aliás), parecem, valendo-se da estética e retórica dos terroristas do tal comando integralista, também tratar apenas no âmbito do humor o atentado incendiário a Gregório Duvivier e seus talentosos e heréticos companheiros do Porta dos Fundos. O caráter caricato e burlesco dos novos terroristas brasileiros, que ano passado já atacaram a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), parece servir de justificativa para que o gesto de terror não receba a devida atenção jornalística por parte do capital. Por detrás desse aparente menosprezo ao ocorrido, no entanto, se esconde uma aquiescência envergonhada ao mesmo da parte da nossa classe dominante, cuja atividade e a passividade desde o golpe de 2016 têm sido fundamentais para a crise do regime democrático-liberal, o fortalecimento de seus traços bonapartistas reacionários e o crescimento exponencial de hostes neofascistas no país.
O já citado Trotsky afirmou, certa feita, que “a burguesia, prudentemente, não vê com bons olhos a maneira fascista de resolver os seus problemas, pois os abalos, embora provocados no interesse da sociedade burguesa, são ao mesmo tempo perigosos”. De origem pequeno-burguesa, o fascismo, seria, assim, para a classe dominante, a sua última cartada, a sua última opção no cardápio das formas de dominação política. No entanto, conforme a crise econômica e social se aguça, e a hegemonia burguesa se desfaz, o fascismo, normalmente tolerado apenas episodicamente na cena política e com acesso permitido aos suntuosos salões do poder apenas pela porta dos fundos, passa a ser gradativamente aceito e mesmo requisitado pelo grande capital, até que este finamente se curva politicamente àquele como forma de garantir seus interesses econômicos. Quando a paz dos negócios só é possível de ser obtida pela guerra das espadas, quando o Deus mercado só pode reinar pela força dos soldados de Deus, quando a fortuna de poucas famílias só pode ser preservada pela virtude dos defensores da família, e quando a segurança das pessoas da sala de jantar só pode ser preservada por aqueles que mal sabem segurar os talheres ao jantar, a burguesia não costuma hesitar.
Assim, a julgar pelo trato dado pela nossa classe dominante aos terroristas que disseram carregar a “espada de Deus”, não nos surpreendamos se, em pouco tempo, o neofascismo, na forma de regime político, for por ela convidado a entrar pela Porta da Frente.
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