25 de julho de 1992 foi defendido como dia de luta, reflexão e resistência da mulher negra latino-americana e caribenha contra todas as formas de opressão que as atingem. É um momento para denunciar e combater o racismo e o machismo, também de reafirmar a trajetória de luta de nossas ancestrais, mulheres que foram arrancadas de suas famílias, sociedades, culturas, modos de viver na África e que criaram e recriaram um modo de vida nas Américas.
E queremos destacar uma das várias formas de recriar o mundo, recriar a beleza e a feiura que nos cerca e ter em mente quanto esses elementos “pessoais”, são púbicos e políticos. Em 1906 um jornal da Bahia, o Diário de Notícias (D.N.), descreveu em detalhes as características do que seria uma mulher bela, segundo este:
“para que seja verdadeiramente bella, […] a fronte não deve ser nem muito alta nem muito baixa. Deve-se harmonizar com o oval do rosto; a pelle deve ser branca e isenta de rugas. Os cabellos devem ser compridos, espessos e ondulados. As cores mais estimadas são a loura e a negra. […] As faces devem ter um tom rosado e ser aveludadas e o pé deve ser carnudo, pequeno e rosado.” (D.N. 13/03/1906 p. 3)
Esta e várias outras notícias do início do século XX demonstravam como as relações sociais eram estabelecidas no cotidiano, aqui explicitada a partir da ideia de beleza, um padrão no qual as mulheres negras e indígenas jamais caberiam. Beleza, diferente do que se afirma, não é algo de “fórum íntimo” ou relativo, “depende de quem vê”.
É por causa dessa condição que no passado, mulheres negras sofreram mais com a violência, porque supostamente eram mais fortes, aguentavam mais peso e dor. A velha notícia de jornal, “prefere-se com boa aparência” deixou muitas mulheres desempregadas, mesmo tendo qualificação. Foi por causa dessa condição que muitas mulheres negras ficavam solteiras até o fim de suas vidas. Elas eram as feias, com cabelo “ruim”, pele preta.
O D.N. também registrou em 10/11/1904 que “Elisa Maria da Conceição, parda, 12 anos, que veio de Sergipe para Salvador acompanhado de Amado de tal, que prometera à mãe arranjar-lhe um emprego, mas na casa que esta se encontrava, no Rio Vermelho, foi maltratada e fugiu”. Encontramos também o registro do mesmo jornal em 27/12/1904 de Virginiana Maria da Conceição, parda, 10 anos, que ao fazer o trabalho de costura feriu-se com agulha, dando entrada ao Hospital Santa Izabel.
Não conseguir o trabalho adequado atingia a vida econômica das mulheres negras, elas estavam sujeitas a trabalhar precariamente, geralmente nas ruas da cidade, vendendo alimentos crus ou cozidos. Muitas se deslocavam para as casas de “famílias”, para realizar os mais diversos trabalhos domésticos: cozinhavam, lavavam, passavam, engomavam, costuravam e realizavam tantos outros serviços. As jornadas de trabalhos eram infinitas, com hora para começar e sem horas para terminar.
Várias mulheres chegavam nas casas de “famílias” ainda crianças, como citado pelo D. N. em 27 de dezembro de 1904, o caso de “Virginiana Maria da Conceição, parda, 10 anos, que ao fazer o trabalho de costura feriu-se com agulha, dando entrada ao Hospital Santa Izabel”, e em 10 de novembro de 1904 “Elisa Maria da Conceição, parda, 12 anos, que veio de Sergipe para Salvador acompanhado de Amado de tal, que prometera à mãe arranjar-lhe um emprego, mas na casa que esta se encontrava, no Rio Vermelho, foi maltratada e fugiu”. Essas crianças, entre outras, cresceram como empregadas domésticas que em sua maioria não recebiam salários e “eram da casa”, vestiam as roupas usadas das filhas dos patrões, dormiam no chão, e comiam o que sobrava.
Muitas mulheres cresceram e morreram nessas casas. Além de todas as consequências mentais e físicas de viver num mundo que as rejeitavam, num mundo ainda muito próximo da escravidão e, portanto, com ideias petrificadas da naturalidade da servidão dos negros e do seu lugar de subalternidade. Elas eram muitas vezes submetidas ao assédio e a estupros dos patrões e de seus filhos. As histórias dos filhos das empregadas com seus patrões ainda são muito comuns para que as estranhemos.
Não ter a aparência branca fez/faz com que a sociedade negligencie mais as crianças negras, como as que estão nas ruas sofrendo todo tipo de violência cotidiana, são expulsas mais rapidamente das lojas, bares e comércio em geral. Quantos pais brancos cujos filhos negros foram acusados de roubo ou maltratados nas lojas e virou notícia? Para os pais negros essa é uma prática corriqueira, que dificilmente chega ao noticiário. As crianças e adolescentes negros são os mais abordados de forma violenta pela polícia. São as mães negras que correm as madrugadas por hospitais e necrotérios para encontrar os seus filhos, e o mais terrível é que elas os encontram.
Por isso o embranquecimento conseguiu ser tão concreto na vida da população brasileira, ter crianças mais claras que um dos pais era o ideal, apagar de algum modo as “marcas da raça” era, para um passado não tão distante, um passo importante para a aceitabilidade do negro na sociedade. Ou para apanhar menos, ou para ter um emprego melhor, ou para não ser negligenciado no atendimento hospitalar, ou para não ser barrado pelo segurança ao entrar em uma loja. Mas, como sabemos, o embranquecimento não reduziu o racismo.
Ao longo do século XX as mulheres negras tiveram que forjar formas de sobreviver burlando o racismo e o machismo, indo contra os ideais de feminilidade que inventou uma mulher sem parâmetro na realidade, uma mulher que tinha que ser doce, gentil, frágil, fraca, irracional, emocional e mãe. Essa mulher só existiu no imaginário masculino e branco e na busca por essa mulher, a sociedade terminou por violentá-la, sobretudo as mulheres negras. Estas que cotidianamente traz na pele, no nariz, na boca, no cabelo, no sorriso a força e a certeza de que a luta contra o racismo e o machismo é cotidiana e árdua.
A resistência é a nossa face mais visível, com ela nós denunciamos, por exemplo, os que reproduzem e associam a mulher negra a uma suposta sexualidade exacerbada, exalta o ideal da “gostosona”, a serviçal, a burra. A “nossa carne”, dizem, “é a mais barata do mercado”, no entanto, nossos corpos negros continuarão a marcar essa sociedade, impondo a nossa presença sempre que ela nos vira a cara.
Viva Maria Felipa!
Viva Dandara!
Viva Luiza Mahin!
Viva Marielle Franco!
Viva as nossas mulheres!
*Meire Lúcia Alves dos Reis é mestra em História Social pela UFBA. Atualmente é professora da Faculdade São Bento da Bahia/UNIDOM nos Cursos de Pós-Graduação em História da Bahia e História do Brasil.
Artigo publicado originalmente no site do PSOL Nacional.
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