Pular para o conteúdo
BRASIL

Uma interpretação para a crise no Brasil

Por: Carmem Toboso*, de São Paulo, SP

A situação brasileira atual é dramática para os trabalhadores e o povo pobre. Não há dúvidas que vivemos um dos mais intensos momentos da história do país no que toca à nossa trajetória de crises e recessões. Interpretar essa realidade e suas consequências, sob uma perspectiva classista, tem sido uma tarefa árdua que exige uma competição desigual com os ideólogos da burguesia e a presença maciça na grande mídia, repetindo o mantra sagrado da necessidade de fazer ajuste fiscal, entre outros dogmas. Mas, tem muito mais caroço nesse angu que a aparente necessidade de “botar a casa em ordem”. Seguem algumas pistas que valem a pena estar no nosso arsenal de combate.

A recessão econômica está instalada no Brasil formalmente desde o segundo trimestre de 2014, quando a economia, medida pelo PIB, começou a encolher. Desde então, foram acumulados 7,9% de variação negativa no PIB.

As eleições de 2014 expuseram duas grandes linhas de interpretação sobre a recessão brasileira: 1 – a situação internacional, com destaque para a diminuição do ritmo de crescimento chinês, seria a principal responsável, 2 – a condução da política econômica interna seria a causa da crise, com destaque para o déficit orçamentário.

Para a defesa dessas teses foram mobilizados, de lado a lado, especialistas de todos os tipos e espécies. Na condição em que se deu esse debate é preciso ter em larga conta que muitas vezes os argumentos serviram muito mais para desgastar ou valorizar determinada candidatura, do que atender com rigor à necessidade de interpretação e, consequentemente, definição de possíveis saídas à situação.

Passados o calor da eleição, a crise política, o impeachment e os primeiros dias do governo golpista de Michel Temer, algumas perguntas ainda não calaram. A primeira delas é: por que o governo Dilma que foi tão bom, tão benevolente com a burguesia, não foi defendido por quem tanto recebeu seus benefícios? É difícil entender como os banqueiros que vinham regozijando-se com a alta das taxas de juros, que passou de 7,25% em outubro de 2015 para 14,25% desde setembro de 2015, apoiaram a queda do governo. Assim como os empresários de outros setores que foram beneficiados com desonerações – só a desoneração da folha de pagamentos rendeu até agora mais de R$ 60 bilhões diretos para os cofres dos empresários – incentivos a exportação, incentivos a importações, créditos do BNDES, entre uma série extensa de medidas pontuais, passaram a distribuir patinhos amarelos e iluminar com as cores da bandeira nacional a sede da FIESP durante as domingueiras manifestações contra o governo. Alguns empresários, no auge da ingratidão, afirmavam, sem corar: “nunca um governo nos deu tanto dinheiro”.

Outra pergunta que precisa ser respondida é: por que esses mesmos setores, que apoiaram o golpe, agora apoiam o novo governo na implementação de medidas que aprofundam a recessão econômica que atravessamos? Desde Keynes ficou muito bem compreendido, sobretudo pelos capitalistas, que as falhas da economia de mercado devem ser compensadas pela atuação do governo. A atuação dos governos nesses casos drásticos não é outra coisa que o aumento de gastos entre outras medidas de estímulo à economia, como a redução dos juros. As medidas como a PEC 241/2016, que limita todos os gastos do governo – menos com o pagamento da dívida – e a permanência das altas taxas de juros aprofundam a recessão e são amplamente apoiadas pelos capitalistas de todos os setores.

Constatado que a lógica em curso vai na contramão das medidas que governos, inclusive os que não têm nada de esquerda, lançam para reativar a economia e diminuir o desemprego fica a hipótese que algo mais terrível que uma recessão econômica estaria ameaçando a burguesia de todos os setores, pois estão em uníssono apoiando o pacote recessivo. Estaria a burguesia confusa no seu papel de classe ou haveria um inimigo ainda maior?

Um pequeno texto intitulado “Aspectos Políticos do Pleno Emprego”, de 1942, do economista polonês Mickal Kalecki vem sendo trazido à baila, e em boa hora, para fornecer pistas que possam explicar porque nossa burguesia tem preferido deliberadamente aprofundar a recessão ao invés de apoiar as tradicionais medidas adotadas para a retomada do crescimento e dos gordos lucros neocoloniais.

A situação de recessão é aquela em que os chamados fatores de produção estão ociosos, dentre esses fatores a mão de obra ocupa o lugar de maior destaque. O crescimento do desemprego no Brasil foi vertiginoso nos últimos anos, passando de 6,5% em dezembro de 2014 para 11,8% em agosto de 2016, ou em números estimados de desempregados ocorreu um aumento de 6,4 milhões para 12 milhões de pessoas, segundo a PNADc (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua) medida pelo IBGE.

O oposto dessa situação é aquela em que todos os fatores disponíveis podem ser empregados, ou seja, é o chamado pleno emprego, caso em que todo(a) trabalhador(a) que oferecer sua força de trabalho, a determinado salário de equilíbrio, será empregado. Segundo Kalecki a oposição dos empresários à situação de pleno emprego pode ser classificada em três categorias:

a) não gostam da interferência do governo porque este retira da iniciativa privada a prerrogativa de gerar emprego e renda, nessa situação os déficits orçamentários – mesmo os que são feitos em benefício dos próprios empresários – são vistos com reserva. Aqui entra o mantra repetido 24 horas por especialistas e mídia grande de que as reformas propostas pelo governo golpista têm como objetivo recuperar a confiança na economia. Quem está desconfiado, do quê e o que isso significa? Os empresários são os desconfiados, desconfiados da perda de seu controle de gerar empregos e da perda de controle do rumo do déficit orçamentário; quando eles ficam desconfiados com relação ao futuro param de gastar, assim como todos nós, mas o gasto deles é o investimento privado de toda a economia, do qual também depende o emprego e a arrecadação fiscal do governo. Quando os trabalhadores fazem greve deixam de entregar horas trabalhadas, quando os empresários fazem greve, deixam de investir. Essa é a crise de “confiança” de que tanto se fala. Em outras palavras, trata-se de uma espécie de greve de investimentos da burguesia.

b) os empresários opõem-se à maneira como os gastos são realizados, seja na forma de investimento público ou de subsídio. Outro mantra que traduz essa forma de oposição ao pleno emprego é que o governo deve limitar-se a atuar diretamente apenas em algumas áreas, como saúde e educação – a PEC 241/2016 vai além disso limitando atuação para todas as áreas. A oposição ao subsídio ao consumo está, por exemplo, na crítica ao Bolsa Família que a burguesia não tem coragem de atacar frontalmente, mas também não deixa de repetir que é preciso ensinar a pescar e não dar o peixe. A maioria dos que dizem isso nasceram em iates abarrotados de bons peixes ou acreditam ingenuamente na disseminação dessa ideologia que interessa ao dono da vara, já que o peixe em algum momento ainda é da natureza.

c) por fim, os empresários não gostam das mudanças sociais e políticas que o baixo nível de desemprego proporciona. Sobre esse último aspecto nos deteremos mais longamente, pois é o item mais relacionado à atuação direta dos trabalhadores.

Segundo Kalecki, o pleno emprego, ou baixas taxas de desemprego, indisciplinam os trabalhadores, fomentam greves, aumentam os salários e a “autoconfiança e consciência de classe da classe trabalhadora”. Ainda que os lucros sejam maiores para os industriais na situação de pleno emprego e, eventualmente possa colocar em xeque os interesse dos rentistas, existe algo mais importante e capaz de eliminar as diferenças entre os interesses dos rentistas e dos industriais. Mais importante que o lucro é a própria sobrevivência de classe: “seu instinto de classe lhes diz que um pleno emprego duradouro é inaceitável a partir do seu ponto de vista e que o desemprego é uma parte integrante do sistema capitalista ‘normal’”.

Alguns eventos recentes no Brasil parecem confirmar a situação descrita por Kalecki, um deles é o crescimento vertiginoso do número de greves. Há dez anos, em 2006, o número de greve registrado no Brasil foi de 316; em 2012 havia subido para 873 e, em 2013 atingiu o nível espetacular de 2.050 greves1. Desde então, as estimativas para 2014, 2015 e 2016 é que permanecessem nesse mesmo patamar de aproximadamente duas mil greves por ano. Os dados preliminares para 2016 já deram conta de 800 greves nos primeiros quatro meses. Todos esses dados e estimativas são do SAG (Sistema de Acompanhamento de Greves), elaborado e acompanhando pelo DIEESE.

A situação de baixo desemprego possibilitou ligeiro aumento do rendimento médio real. Ainda segundo os dados da PNADc-IBGE, entre dezembro de 2012 e dezembro de 2014 houve aumento de 4,9% do rendimento médio real, e desde então os trabalhadores resistem heroicamente à sua queda real que até agosto de 2016 registrava recuo de 2,7%. Mas, essa queda ainda é considerada pouco significativa para a burguesia, portanto mais desemprego deverá ser criado a fim de derrubar ainda mais o rendimento médio e toda a massa salarial dos trabalhadores do país. E não há nada melhor que uma recessão para gerar esses bons frutos para toda a classe capitalista.

Ainda nesse raciocínio, a burguesia precisa, portanto, de mais recessão para atingir o estado de “confiança” a partir do qual considerará confortável voltar a investir e permitirá ao governo algum aumento de gastos. A burguesia divergiu do PT nos ritmos. Dilma chamou Levy para aplicar as mesmas políticas, mas os capitalistas queriam mais garantias, então prefeririam o golpista Temer, como o compromisso de fazer as reformas em um ritmo alucinante. Temer ironicamente fez o compromisso de não tentar eleição, mas nem precisaria ter feito esse compromisso pois, com a tarefa que recebeu dos que apoiaram o golpe e somado a seu mórbido carisma, dificilmente teria pernas para uma corrida presidencial em um país com o povo cada vez mais empobrecido.

Se a aplicação das ideias de Kalecki para nossa realidade tiver parecido razoável significa concluir que a crise não teria tido o cenário externo como elemento gerador determinante, e sim a situação interna em que o descontentamento da burguesia com os mínimos avanços que os trabalhadores vinham obtendo, somou-se à desconfiança do governos petista em aplicar as reformas para conter esses avanços. A nosso ver, ainda não é possível ver o fundo do poço da situação recessiva criada propositadamente pela burguesia, o que podemos ver é muita luta pela frente.

*Carmem Toboso é economista | [email protected]

Foto: Em vermelho-escuro, os países oficialmente em recessão (isto é, com dois trimestres consecutivos de queda no produto interno bruto) durante a crise financeira de 2007-2009. | Wikipedia