Pular para o conteúdo
MUNDO

O Direito e as Guerras – Parte 2

Por Bruno Figueiredo, de São Paulo, SP

Guerra das Malvinas

A guerra não acaba quando termina
Nem quando chega a paz
É que as feridas ficam abertas
Não cicatrizam jamais, jamais
Não há nada de novo no front
As guerras são tão iguais, são todas iguais
(Inocentes)

 

O presente artigo é o segundo de uma série de três artigos. No primeiro artigo houve uma análise das guerras do prisma do Direito Internacional. Nesta segunda parte pretende-se analisar a materialização do Direito, portanto, analisar os possíveis desdobramentos de uma eventual guerra.

 

A guerra na ótica marxista

Conforme já foi mencionado, tanto Lênin, quanto Karl Marx defendiam a questão da autodeterminação dos povos e a autonomia nacional. Trotsky chega a abordar a questão em um exemplo hipotético, em uma entrevista em 1938:

 

Existe atualmente no Brasil um regime semifascista que qualquer revolucionário só pode encarar com ódio. Suponhamos, entretanto que, amanhã, a Inglaterra entre em conflito militar com o Brasil. Eu pergunto a você de que lado do conflito estará a classe operária? Eu responderia: nesse caso eu estaria do lado do Brasil “fascista” contra a Inglaterra “democrática”. Por que? Porque o conflito entre os dois países não será uma questão de democracia ou fascismo. Se a Inglaterra triunfasse ela colocaria um outro fascista no Rio de Janeiro e fortaleceria o controle sobre o Brasil. No caso contrário, se o Brasil triunfasse, isso daria um poderoso impulso à consciência nacional e democrática do país e levaria à derrubada da ditadura de Vargas. A derrota da Inglaterra, ao mesmo tempo, representaria um duro golpe para o imperialismo britânico e daria um grande impulso ao movimento revolucionário do proletariado inglês. É preciso não Ter nada na cabeça para reduzir os antagonismos mundiais e os conflitos militares à luta entre o fascismo e a democracia. É preciso saber distinguir os exploradores, os escravagistas e os ladrões por trás de qualquer máscara que eles utilizem!

 

Décadas depois Nahuel Moreno se deparou com essa situação na guerra das Malvinas. Na Argentina havia então uma ditadura militar sanguinária. As Ilhas Malvinas, chamadas pela Inglaterra de Falklands, eram de domínio argentino até 1833, quando foram invadidas pela Inglaterra. Em 1982 a ditadura de Leolpoldo Galtieri declarou guerra para reconquistar as ilhas. Houve manifestações de massas. A esquerda se dividiu. Uma parte foi contra a guerra. Mas a linha de Nahuel Moreno foi de fazer exigências ao governo, defendendo a reconquista das ilhas.

A denúncia do governo continuou sendo uma tarefa essencial do partido, mas mudando seu caráter, reconhecendo que o eixo passava pela guerra e pelo confronto com o imperialismo inglês e seu parceiro, o imperialismo ianque. Combinou o slogan de defesa do padrão de vida dos trabalhadores e a defesa dos setores oprimidos e reprimidos pelo governo militar com o ataque ao governo por sua incapacidade de levar a guerra até o fim, por sua incapacidade de atacar o imperialismo em forma total. Ou seja, denunciamos o governo como incapaz de ser anti-imperialista consequente e chamamos a substituí-lo para impor um governo que levará a guerra contra o imperialismo em todos os campos, contando com a mobilização do povo.

Ou seja, a política diante do governo estava condicionada a capacidade do governo de enfrentar o imperialismo. Na medida em que os limites se expõem, que as massas fazem sua experiência, só então se coloca na ordem do dia o questionamento ao governo. O resultado foi que de fato no fim da guerra o governo caiu e se encerrando a ditadura na Argentina.

Os primeiros passos da intervenção imperialista já foram dados. É necessário derrotar tal intervenção imperialista. De modo que as exigências a Maduro devem estar pautadas na lógica de que tenha uma política eficaz para enfrentar o imperialismo. Não se trata de colocar um sinal de igual entre Maduro e Guaidó, muito pelo contrário. O povo venezuelano escolheu Maduro com mais de 60% dos votos. Não existem organizações dos trabalhadores capazes de tomar o poder. O mundo é como é, e não como queríamos que fosse. As tarefas dadas ao movimento operário são aquelas que possam ser cumpridas no mundo real, não no mundo imaginário dos desejos. Existe uma hierarquia nas palavras de ordem. A principal tarefa agora é derrotar o imperialismo.

Isso, por outro lado, não pode significar um apoio incondicional a Maduro. Pois, sendo um governo burguês, esbarra nos seus próprios limites de classe. De modo que o eixo de exigências de um Governo Operário Camponês seria necessário. Desta forma, enfrentar o governo com exigência e denúncia. Mas neste momento chamar a derrubada do governo Maduro seria uma aventura irresponsável. Cabe, portanto, recordar as palavras de Trotsky no Programa de Transição:

Os sectários só são capazes de distinguir duas cores: o branco e o preto. Para não se expor à tentação, simplificam a realidade. Recusam-se a estabelecer uma diferença entre os campos em luta na Espanha pela razão de que os dois campos têm um caráter burguês. Pensam, pela mesma razão, que é necessário ficar neutro na guerra entre o Japão e a China. Negam a diferença de principio entre a URSS e os países burgueses e se recusam, tendo em vista a política reacionária da burocracia soviética, a defender contra o imperialismo as formas de propriedade criadas pela Revolução de Outubro.

Partimos deste pressuposto, de analisar uma eventual guerra entre os EUA e seus aliados e a Venezuela, sob o prisma de ser uma intervenção imperialista na América Latina. Cabe agora uma breve observação de uma possível evolução do teatro de guerra.

A materialização do Direito, uma análise da guerra

O Direito trata-se de uma expressão do mundo real. Não se pode esperar que o Direito fosse sustentado apenas por belas palavras, isso é poesia. Entretanto, o Direito é apenas uma expressão da superestrutura. A luta política termina por desaguar na luta física, diria Lênin. Portanto, cabe uma breve análise de prognósticos do que pode ocorrer na Venezuela, do ponto de vista bélico. Em coluna recente no Esquerda Online, Valerio Arcary trabalha com alguns critérios para localizar um Estado dentro do Sistema mundial de Estados. Um dos critérios utilizados é o seguinte:

[…] a capacidade de cada Estado em manter a sua independência e o controle de suas áreas de influência. Ou seja, sua força militar de dissuasão, que depende não só do domínio da técnica militar ou da qualidade das suas Forças Armadas, mas do maior ou menor grau de coesão social da sociedade, portanto, da capacidade política do Estado de convencer a maioria do povo, se for incontornável, da necessidade da guerra;

A coesão social é uma condição necessária para definir os rumos de uma guerra, e, portanto, a localização de um Estado dentro do sistema internacional de Estados. Foi tal coesão social que explica a vitória do Vietnã e a derrota dos EUA. Isso que explica a incapacidade dos EUA de vencer as guerras do Iraque e do Afeganistão.

Existem outros elementos determinantes nos rumos de uma guerra. Como principal elemento se tem a capacidade produtiva dos Estados beligerantes. Entretanto, cabe aqui lançar luz para o aspecto envolvendo a Infantaria, que é um reflexo da coesão social.

A invasão do Iraque em 2003 expôs muito além dos limites do Direito Internacional como pretenso sistema de relações entre Estados. Expôs também os limites do pretenso Estado mais poderoso do mundo. Nas batalhas ocorridas na cidade de Fallujah ficou evidente a incapacidade bélica da infantaria dos EUA.

Tradicionalmente havia a divisão das forças armadas entre infantaria, cavalaria e artilharia. A questão é que embora tenha havido um profundo desenvolvimento tecnológico, tendo ocorrido várias mudanças na composição das guerras ao longo da história. Entretanto, a infantaria é e segue sendo o setor determinante. Hoje existem as possibilidades de bombardeios com drones, bombas nucleares, helicópteros, etc. Mas quem toma as cidades são soldados de carne e osso.

Até o século XIX as batalhas tradicionalmente ocorriam no campo, com pelotões atirando. A 1ª Guerra mundial ficou marcada pela guerra de trincheiras. Na 2ª Guerra mundial houve o uso de bombas atômicas, houve uma grande batalha de tanques, em Kursk. Mas a principal batalha se deu na cidade de Stalingrado, onde a onde o Exército Vermelho da ex-URSS e a classe trabalhadora se empenharam em uma batalha sangrenta. Os relatos apontam que em um dado momento da batalha as lutas se davam dentro dos prédios, onde nem havia espaço para usar um fuzil, onde muitas lutas ocorriam com facas ou pistolas. Isso quer dizer, só a infantaria é definitiva neste momento. Na guerra do Vietnã os EUA usou helicópteros como um ataque de “cavalaria voadora”, usou de armas químicas, massacrou civis. Mas o que foi determinante foi a perseverança do povo vietnamita contra o invasor.

Carl Von Clausewitz tem um livro clássico que se chama “Da Guerra”. Neste livro ele dedica um capítulo ao tema do armamento do povo. Ele coloca como a melhor tática de defesa contra um invasor estrangeiro o armamento da população. Isto criaria focos de guerras irregulares, corta as linhas de suprimentos do invasor, gera instabilidade e um grande número de baixas. Ele teria proposto esta opção à nobreza prussiana no momento das invasões napoleônicas. Entretanto, a nobreza preferiu não correr o risco de ter sua população em armas, pois após a derrota do invasor os nobres teriam que enfrentar o seu próprio povo. Preferiram ser derrotados pelo invasor. Essa teria sido a opção de Saddam Hussein.

Na atualidade, um exército invasor provavelmente teria muita dificuldade de conseguir tomar uma cidade populosa com o povo em armas. O Iraque é um país desértico, que tem quase metade do tamanho da Venezuela. O país caribenho é recortado por montanhas e selvas. Ou seja, o teatro de guerra seria dentro do país, onde o invasor teria muita dificuldade de avançar e controlar os terrenos. Sendo um terreno propenso para a formação de guerrilhas, e táticas de resistência.

Como parte das contradições do chavismo, na Venezuela existe o armamento do povo. Onde civis são treinados e recebem armas, estima-se que existam entre meio milhão e um milhão de pessoas treinadas nestes moldes. O exército regular venezuelano seria de 150 mil soldados, além de 190 mil policiais. O exército regular do Brasil é de cerca de 300 mil soldados. Os EUA usou 300 mil soldados para invadir o Iraque, se utilizando a época da comoção do 11 de setembro.

A Venezuela está instalando uma fábrica de fuzis AK-103, a versão moderna da AK-47. Recentemente comprou 100 mil fuzis da Rússia. A força aérea da Venezuela conta com 23 caças Sukhoi Su-30, além de 16 caças F-16, 10 Helicópteros de ataque Mi-35, e um sistema antiaéreo S-300V. O Brasil hoje não tem nenhum caça, nenhum helicóptero de ataque, nem sistema antiaéreo.

Clausewitz considera as seguintes condições necessárias para tornar uma guerra popular eficaz:

  1. A guerra ser drenada para o interior do país.
  2. Uma única catástrofe não deve ser suficiente para definir o destino da guerra.
  3. O teatro de guerra deve abraçar uma extensão considerável do território.
  4. As medidas tomadas devem corresponder ao caráter nacional.
  5. O país deve ser do gênero acidentado ou inacessível, quer seja montanhoso ou arborizado.

Pode-se dizer que o que se desenha para a Venezuela é exatamente este cenário. Ou seja, o cenário ideal para uma guerra popular. Neste cenário, ações de pequenos grupos, com táticas de guerrilha, tanto rural como urbana, podem ir minando as tropas invasoras.

Quando houve a insurgência iraquiana contra a invasão norte-americana, comumente os soldados norte-americanos eram mortos por atiradores. Surgiu até mesmo um “personagem-símbolo” da resistência, que seria o atirador Juba, que publicava vídeos de soldados americanos sendo abatidos. Isso cria uma tensão permanente e assustadora nos soldados invasores. Isto faz com que a moral da tropa seja abalada. Principalmente se não existe a confiança necessária na causa pela qual se luta.

A guerra popular tem uma característica fundamental pela sua capilaridade. Sendo como o fogo baixo, onde a superfície de contato é mais extensa. De modo que as tropas invasoras quanto mais adentram no país invadido, mas estão se expondo a ataques pela retaguarda.

Mesmo com todas as provocações do imperialismo, tudo indica que há uma grande coesão social na defesa da Venezuela. Do outro lado, nem no exército dos EUA nem do Brasil há coesão social suficiente para garantir qualquer guerra.

Mesmo que os EUA consiga usar seus mísseis Tomahawk, com toneladas de explosivos, tudo que consegue é destruir o país. Mas isso não garante que vá conseguir controlar o País depois.

Em recente artigo na revista The Economist há uma análise do risco de uma intervenção militar na Venezuela. Onde se identifica que existe um exército nacional coeso, de modo que mesmo que os EUA ganhe a guerra, não conseguiria gerenciar o caos depois. Há um grande risco de o conflito tomar proporções regionais, se espalhando para toda América Latina.

A eventualidade desta guerra pode ter um efeito devastador em toda a América Latina. Tanto do ponto de vista de mortes diretas pelo conflito. Como também traria uma profunda instabilidade regional, como ocorreu no Iraque. Os EUA já estão se utilizando de mercenários colombianos no conflito. Tanto nos episódios na fronteira, como nas sabotagens no sistema elétrico. Ocorre que encerrado o conflito tais mercenários serão convertidos em bandos criminosos. Como também haverá um profundo impacto da destruição das forças produtivas dos países envolvidos no conflito. Em outro artigo, The Economist avalia que basta um jato venezuelano bombardeando Bogotá para se ter um efeito catastrófico na região.

Após quase duas décadas os EUA ainda tentam um acordo de paz com os Talibãs no Afeganistão. A Síria enfrenta quase uma década de guerra civil, com mais de meio milhão de mortos e 8 milhões de desalojados. Nada garante que na Venezuela o cenário venha a ser muito melhor.

Clausewitz, em “Da Guerra”, parte do seguinte conceito: “A guerra é pois um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade”. Desenvolve o raciocínio no sentido de que a guerra não é nunca um ato isolado. A realidade muda no transcurso da guerra. A guerra não consiste em um só golpe sem duração. Ou seja, existe uma dialética no tempo e no espaço do desenrolar da guerra. A guerra tem por objetivo neutralizar as forças do inimigo, para que o custo da continuidade da guerra seja mais oneroso do que aceitar a paz. Todavia, o preço da derrota da recolonização é um preço inaceitável para o povo venezuelano.

O Ministério da Defesa do Brasil, em 2017, produziu um documento com alguns prognósticos sobre as possibilidades de conflitos que possam envolver o Brasil. Neste documento há o seguinte trecho:

Instabilidade política e social na Venezuela Os fortes antagonismos e convicções ideológicas dividindo a população venezuelana, somados à gravíssima situação econômica, possivelmente levem o país a uma convulsão política e social, com destituição do presidente e deflagração de uma guerra civil. Nesse caso, seria improvável uma atuação exitosa da UNASUL. Na iminência de guerra civil ou para interrompê-la, poderia ser criada uma força de paz/observadores, conforme ocorreu no caso do conflito Equador/Peru, em 1995. Caso a situação venezuelana se deteriore a ponto de evoluir para a ruptura institucional, com ou sem guerra civil, poderia haver ingerência extra regional, principalmente por parte dos EUA, com implicações para o Brasil.

Todavia, o conflito que se utiliza como comparação, Equador e Peru, 1995, não chegou sequer a um total de 500 mortos. O confronto que se desenha para a Venezuela muito provavelmente vai ultrapassar em muito essa escala. No próprio documento há a seguinte caracterização: “Conflitos convencionais, decorrentes de projeção de poder/invasão provavelmente transitarão para conflitos assimétricos/híbridos contra os vitoriosos.” Essa última caracterização parece muito acertada. Mesmo que haja uma vitória militar, haverá uma continuidade do conflito de forma “assimétrica”, ou seja, focos, guerrilhas, insurgências, etc. De modo que não existe na história recente da América Latina nenhum paralelo desse tipo de conflito.

Na guerra do Vietnã morreram cerca de 60 mil soldados dos EUA. Na Coréia, nos anos de 1950, foram cerca de 40 mil mortos norte-americanos. Na Guerra do Iraque, cerca de 5 mil. Os EUA não querem mais arcar com os custos das mortes na guerra. Para isso estão dispostos a alugar forças mercenárias. Mas como tropa invasora organizada, de certa forma os EUA dependem do Brasil se envolver diretamente nesta guerra, o que por enquanto está descartado pelas Forças Armadas brasileiras e o governo Bolsonaro.

Há uma grande probabilidade de esta guerra ter um enorme custo de vidas de brasileiros, para se entregar o petróleo venezuelano aos EUA. Há, portanto, para o Brasil um custo inaceitável para tal guerra. Onde não existe vitória. Não há a possibilidade de êxito. Pois o Brasil como Estado não tem o que ganhar com tal guerra.

 

(Continua…)

Leia a primeira parte deste artigo

Direito e as guerras (1)

 

Marcado como:
direito