Na Guerra Muitas Coisas Crescerão
Ficarão maiores. As propriedades dos que possuem
E a miséria dos que não possuem
As falas do guia
E o silêncio dos guiados.
(Bertolt Brecht)
Com este primeiro artigo de três, o Esquerda Online abre um debate sobre as implicações jurídicas (e políticas) de uma possível invasão americana na Venezuela, através da colaboração das Forças Armadas brasileira e colombiana, levando aquele país a uma guerra.
O Direito permeia quase todas as relações sociais. Mesmo as guerras começam com uma Declaração de Guerra e terminam com um Tratado de Paz. Portanto, existem dois contratos, ao menos, que são firmados na guerra.
Existem alguns aspectos jurídicos que merecem ser abordados no caso que envolve a atual crise com a Venezuela. O Presidente do Brasil literalmente bate continência para os chefes militares dos EUA. Vários meios de comunicação norte-americanos já tratam a guerra como uma certeza. No dia 13 de março o Senado americano votou contra o suporte que os EUA têm dado à Arábia Saudita na guerra com o Iêmen, o que altera a relação militar dos EUA com a Arábia Saudita.
Entretanto, o envolvimento do Brasil em uma guerra de invasão a Venezuela, romperia com uma tradição diplomática-militar do Estado Brasileiro, desde o início da República, em que o Brasil não participou de nenhum conflito armado na América Latina. Neste marco, existem muitas dúvidas de quais seriam os desfechos possíveis de uma guerra.
Partindo da hipótese de que o presidente do Brasil declare guerra a Venezuela, Pretende-se aqui analisar a questão sob os seguintes aspectos: o Direito Internacional e a Guerra; a Materialização do Direito, uma análise da Guerra; como o Direito Brasileiro encara a Guerra?
Parte I – O Direito Internacional e a Guerra
O Direito Internacional é um tipo específico do Direito muito complexo de ser analisado. O Direito de modo geral é uma expressão superestrutural da correlação de forças da luta de classes. Entretanto, nos Estados Nacionais o Direito se expressa por um Estado organizado. Mas na ordem Internacional o Direito ganha uma forma distinta. Existe um sistema internacional de Estados. Uma expressão organizativa deste sistema é a Organização das Nações Unidas. Que também se expressa por diversos tratados multilaterais. Entretanto, não se pode dizer que a ONU seja um exato equivalente internacional dos Estados Nacionais.
Nos clássicos do marxismo encontrar-se-á várias referências a autodeterminação dos povos e ao Direito, inclusive Direito Internacional. Evgeny Pashukanis desenvolve uma análise sobre o conceito de “Direito Internacional”. Uma das principais polêmicas de Lenin com Rosa Luxemburgo foi sobre o tema da autodeterminação dos povos.
O Direito é uma expressão superestrutural da luta de classes. O que Pashukanis desenvolve é que ao não haver um Estado que imponha o Direito Internacional, isto limita até mesmo a compreensão do Direito Internacional como Direito de fato. Todavia, após a Segunda Guerra o Direito Internacional, passou a expressar uma correlação de forças no mundo por meio da ONU. A forma de organização da ONU expressa a correlação de forças internacionais que se instalou após a Segunda Guerra Mundial.
Existem normas Internacionais, o que se pode chamar de Direito Internacional. Ainda que seja um Direito relativo. O Direito regula diretamente as relações sociais, atendendo aos interesses da classe dominante, que é assegurado pelo seu Poder organizado, o Estado, na definição de Piotr I. Stutchka. Mas no caso do Direito Internacional, não existe esse poder organizado que crie a imposição do Direito.
No Direito Internacional há regulação do sistema internacional de Estados. Expondo de forma mais evidente o Direito como uma expressão da correlação de forças. Onde o cinismo e a hipocrisia do “Direito” ficam mais expostas, onde o Rei está nu. Um exemplo evidente disto foi a invasão do Iraque em 2003. Por todas as normas internacionais do Direito a invasão seria ilegal, pois foram argumentadas provas falsas da posse de armas químicas, que de fato não existiam. Entretanto, depois de deflagrada uma guerra, pouco importa o direito ou quem tem razão. O que se impõe é a correlação de forças de fato entre as nações e/ou as classes.
Em que pese que os socialistas não tenham acordo com o sistema de Estados, porque esta ordem mundial apenas atende aos interesses do imperialismo, para melhor colonizar outros países. Entretanto, cabe expor as contradições e exigir que as Leis internacionais sejam aplicadas, na medida em que sua aplicação seja um anteparo contra o avanço da barbárie.
Carta da ONU
A Organização das Nações Unidas tem uma Carta, que deveria ser seguida por todos os Estados. No primeiro Artigo está expresso que:
Propósitos e Princípios
Artigo 1
Os propósitos das Nações unidas são:
- Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz;
- Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal;
Nesta declaração existem dois limites: de um lado a garantia da Paz e do outro o princípio da autodeterminação dos Povos. Ou seja, no Direito Internacional, se consolidou o princípio da não ingerência em questões internas nos Estados nacionais. Todas as soluções existentes na Carta da ONU condicionam qualquer intervenção a uma aprovação prévia no Conselho de Segurança da ONU. No Artigo 2º, item 7, determina expressamente que: “Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os membros a submeterem tais assuntos a uma solução (…)”.
No Capítulo VII, da Carta da ONU, trata da “AÇÃO RELATIVA A AMEAÇAS À PAZ, RUPTURA DA PAZ E ATOS DE AGRESSÃO”. Em essência, tal capítulo condiciona qualquer medida a sua aprovação no Conselho de Segurança da ONU. Aqui entra um elemento estrutural da ONU: o seu Conselho de Segurança, nos termos do Art. 23, tem cinco membros permanentes, os quais cada qual tem poder de veto. Os membros permanentes são: China, França, Rússia, Grã-Bretanha e os Estados Unidos da América.
O Conselho de Segurança da ONU já teve várias reuniões para debater o tema Venezuela. Entretanto, as propostas apresentadas foram vetadas pelos membros permanentes. De modo que, não existe base jurídica para uma intervenção na Venezuela. Mas, as ações do imperialismo não respeitam bases jurídicas ou mesmo as suas instituições internacionais. Por várias vezes vimos o Conselho de Segurança da ONU se posicionar contra invasões e guerras mundo afora, sem que os países membros levassem isso em consideração. Caso os EUA resolvam invadir militarmente a Venezuela, não será a ONU que irá impedi-lo.
A Venezuela conta com o apoio da China e da Rússia. Como também da Turquia e do Irã. Houve uma declaração da União Africana reconhecendo Nicolás Maduro como presidente da Venezuela. A Índia está comprando petróleo da Venezuela. O governo Maduro é reconhecido por mais de 50 países. Mesmo na América Latina, existe um grupo de países que busca uma solução diplomática, como o grupo de Montevidéu, que envolve Uruguai, Bolívia e México. Até mesmo na Europa não há um consenso em torno de Guaidó, e menos ainda sobre a intervenção militar. Mesmo o governo de direita na Itália se recusa a reconhecer Guaidó. Portanto, não há um bloco do mundo todo contra o “ditador Maduro”. Isso não é verdade. A comunidade internacional no mínimo está dividida, e apenas os EUA querem a solução militar. Nesse sentido, os EUA têm menos apoio do que no Iraque em 2003. Parece improvável que os países europeus, em meio ao Brexit, venham a se meter em uma aventura militar sob o comando de Trump.
Tanto Trump quanto Bolsonaro passam por crises internas em seus governos. Existe uma percepção de que as Forças Armadas no Brasil não estariam de acordo com a guerra. Bolsonaro não é, de fato, um militar, é um político há três décadas. O vice-presidente, Mourão, que está mais antenado com a tropa, fala que “a opção militar nunca foi opção . Por outro lado, Trump e sua trupe insistem em dizer que “todas as opções estão na mesa”, insinuando a opção militar, como forma de pressão sobre o povo venezuelano, para conseguir uma saída para a crise que atenda os interesses americanos.
No meio disso tudo, é incrível o papel de mercenário que Juan Guaidó desempenha. Uma pessoa conspira abertamente com uma potência estrangeira para invadir o seu próprio país. Trump já declarou que quer invadir a Venezuela pelo petróleo, quem falou isso foi o ex-chefe do FBI, Tendo declarado: “eles têm todo esse petróleo e estão na nossa porta dos fundos”. Ou seja, trata-se de um caso mais descarado do que foi a invasão o Iraque.
Os EUA já foram condenados na Corte Internacional de Justiça por conta do caso “Nicarágua e ‘Contras’”. Neste caso, foi violado o princípio internacional da não intervenção. Os EUA apoiaram mercenários para tentar desestabilizar o governo da Nicarágua. Também com o verniz de uma suposta ajuda humanitária, os EUA interferiram na política da Nicarágua, enviando armas e suprimentos para seus mercenários.
No início do século XX, Theodore Roosevelt, presidente dos EUA, implementou uma política imperialista dos EUA na América Latina. A política foi chamada “Big Stick”, ou seja, grande bastão. Há uma expressão que diz: “Fale suave, mas carregue consigo um rande bastão e você vai longe.” Com esta lógica, os EUA passaram a intervir na América Latina. Em 1902, por exemplo, houve um bloqueio naval imposto pela Grã-Bretanha, Alemanha e Itália contra a Venezuela, como resultado da recusa do presidente Cipriano Castro em pagar as dívidas externas e os prejuízos sofridos pelos cidadãos europeus em uma guerra civil recente no país. O bloqueio teve apoio dos EUA, com base na Doutrina Monroe, que permite aos EUA intervir em qualquer país da América Latina e do Caribe que não pague suas dívidas internacionais.
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